ILUSTRAÇÃO: CARVALL
Poupando energia, aumentando emissões
Para remediar a crise energética, governo federal vai na contramão do mundo, estimula fontes de energia poluentes e aprofunda outra crise: a climática
Desde o fim de agosto, trechos da hidrovia Tietê-Paraná, uma das mais importantes do país, estão paralisados. Neles, o nível da água está tão baixo que não permite a passagem das embarcações de forma segura, sem o risco de encalhar. A hidrovia conecta estados do Centro-Oeste a portos importantes de São Paulo e corta a principal bacia hidrográfica da região Sudeste, a do Rio Paraná. Por essa rota são escoados produtos brasileiros para exportação, como soja e milho. Interditar uma hidrovia como a Tietê-Paraná pode causar um prejuízo estimado em 3,5 bilhões de reais até o fim de dezembro, levando em conta a renda dos municípios à margem da hidrovia e a dos pescadores. Segundo o presidente da Federação de Pescadores e Aquicultores de São Paulo, Edivando Soares, algumas partes do Tietê secaram tanto que a borda do rio encolheu. “Os pescadores estão com menos espaço para trabalhar e estão ficando sem peixe. Toda a agricultura familiar que depende do rio também está prejudicada”, ele lamenta. “E nada do reservatório liberar água.”
Empresas que operam parte da hidrovia estavam contando com a ajuda de usinas hidrelétricas da região para liberar água de seus reservatórios e com isso aumentar o nível do rio. Essa é uma regra imposta pela Agência Nacional de Águas (ANA): as usinas devem sempre liberar parte de sua água para ser usada em outras atividades. O procedimento, no entanto, foi interrompido em agosto, depois que reservatórios de hidrelétricas na região Sudeste e Centro-Oeste chegaram a um nível crítico, o menor desde 2001. Com aval do Ministério de Minas e Energia, que passou a ser assombrado pela possibilidade de um apagão, a regra foi flexibilizada para garantir que as hidrelétricas não ficassem sem água. Ou seja: chuva pouca, o pirão do setor energético primeiro.
“Não era para estarmos nesse aperto”, opina a pesquisadora Clarice Ferraz, que faz parte do Grupo de Economia de Energia da UFRJ e estuda o assunto há anos. Ela avalia que o governo deveria ter adotado medidas de eficiência energética ainda em maio, quando despontou o primeiro alerta da crise, antes de deixar as reservas chegarem a níveis críticos. Isso porque a região Sudeste enfrenta a pior seca em 91 anos e a água estocada nos reservatórios não serve apenas para gerar energia: ela também garante a navegabilidade dos rios, a vida dos peixes, a renda dos pescadores e o abastecimento de água encanada nos domicílios.
Segundo Ferraz, a medida adotada pelo governo para preservar a produção das hidrelétricas não é sustentável a longo prazo, sobretudo num cenário de crise climática, em que o regime de chuvas vem se tornando instável e pode fazer com que estiagens como essa passem a ser corriqueiras. “Nesse cenário, os reservatórios serão requisitados para exercer muitos papéis, não só o de fornecer energia elétrica”, explica a pesquisadora.
Além de não oferecer soluções a longo prazo para a crise energética, o governo tem feito por onde agravar a crise climática, avaliam especialistas ouvidos pela piauí. A flexibilização da resolução da ANA foi apenas uma das medidas adotadas. O governo brasileiro também acionou usinas termelétricas para tentar tapar o déficit de energia – hoje, todas as usinas desse tipo no país estão em operação. As termelétricas são a fonte energética mais cara e poluente de todas, e ainda por cima demandam a utilização de água para resfriar suas máquinas. Para piorar, o projeto de privatização da Eletrobras prevê a construção de mais termelétricas que terão, ao todo, capacidade para gerar 8 GigaWatt – o equivalente a quase 60% da capacidade de produção energética da usina de Itaipu, uma das maiores do mundo.
Esse conjunto de medidas cria um ciclo danoso: o governo investe em fontes poluentes de energia que contribuem para a crise climática; esta, por sua vez, caso continue a se agravar, deve produzir novas estiagens que vão culminar em novas crises energéticas.
“Nos Estados Unidos, pesquisadores concluíram que, para descarbonizar o setor elétrico com menor custo, é preciso conectar o país inteiro ao sistema de energia elétrica. Assim você aproveita as potencialidades de cada região e uma fonte de energia complementa a outra”, explica Ferraz, referindo-se à necessidade de limitar o uso de fontes que emitem carbono e, com isso, reduzir a emissão de gases do efeito estufa. Nesse quesito, o Brasil poderia ser uma potência mundial, ela diz. Além de já ter um sistema integrado, o país tem geração de energia eólica no Nordeste, uma grande capacidade de gerar energia solar próximo à linha do Equador e poderia aproveitar até a força das marés no litoral. “Poderíamos deixar as hidrelétricas só para complementar as energias renováveis e equilibrar esse sistema”, sugere Ferraz. Isso melhoraria o desempenho energético do país e evitaria o estresse dos reservatórios. Além de tudo, poderia gerar novos empregos.
O governo federal, no entanto, vem seguindo o caminho contrário. Há poucos meses, o Ministério de Minas e Energia anunciou que, a partir do ano que vem, não oferecerá mais subsídios a projetos de energia eólica e solar. A cereja do bolo veio em agosto, quando a pasta lançou um programa para incentivar o uso de carvão mineral na geração de energia. Ironicamente, leva a palavra “sustentável” no nome: chama-se “Programa para Uso Sustentável do Carvão Mineral Nacional”, que alavanca a mineração de carvão na região Sul. Para a meteorologista Michelle Reboita, que pesquisa mudanças climáticas pela Universidade Federal de Itajubá, o programa é um claro retrocesso. “A ciência já mostrou diversas opções de energia limpa para o país. Para que queimar carvão?”, ela questiona.
Questionado pela piauí a respeito do impacto dessas medidas, o Ministério de Minas e Energia alegou, por meio de nota, que o carvão responde por parte expressiva da energia no mundo – mas não mencionou o fato de que a maioria dos países não dispõe de tantos recursos renováveis quanto o Brasil. A nota afirma ainda que o programa de estímulo à queima de carvão é importante para as economias do Sul do país e prevê termelétricas sustentáveis. Segundo o Ministério, “o Brasil buscará a neutralidade climática até 2050”.
As escolhas do Brasil vão na contramão do debate internacional sobre o clima. Uma pesquisa divulgada nesta terça-feira (14) pelo Pew Research Center – organização americana que realiza pesquisas sobre diversas questões da atualidade – mostra que, em dezessete países com economia avançada, a preocupação com o impacto das mudanças climáticas é generalizada, principalmente entre os mais jovens. Os países analisados foram os Estados Unidos, Canadá, Bélgica, França, Alemanha, Grécia, Itália, Holanda, Espanha, Suécia, Reino Unido, Austrália, Japão, Nova Zelândia, Cingapura, Coréia do Sul e Taiwan.
Nesses países, 80% dos entrevistados disseram estar dispostos a mudar a forma como vivem e trabalham para combater pelo menos alguns efeitos do aquecimento global. Na maioria dos locais, houve um crescimento na proporção de pessoas preocupadas entre 2015 e 2020 (a exceção é o Japão, onde essa proporção diminuiu). De lá para cá, os alertas sobre a crise climática se tornaram mais frequentes e incisivos. Um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, lançado em agosto deste ano, mostrou que a temperatura média do planeta pode aumentar 1,5ºC nos próximos vinte anos – um cenário que transformaria profundamente as condições de vida na Terra.
Esse relatório, divulgado no mesmo dia em que o Ministério de Minas e Energia lançava o detalhamento de seu programa para incentivar o uso de carvão, explica quais podem ser as consequências de um aumento de temperatura dessa magnitude. Uma delas é a ocorrência cada vez mais frequente de eventos extremos, como enchentes em algumas regiões e secas prolongadas em outras. Para a espécie humana, isso significa mais riscos relacionados à saúde, meios de subsistência, segurança alimentar e abastecimento de água. Na pesquisa do Pew Research Center, 72% dos entrevistados disseram se preocupar em ser afetados pelas mudanças climáticas no futuro. Vale notar: a pesquisa foi realizada antes das queimadas na Grécia, das enchentes que mataram centenas de pessoas na Alemanha e na Bélgica e das tempestades de gelo que provocaram apagões no Texas – tudo isso em 2021.
Daqui a dois meses, em novembro, líderes de 196 países vão se reunir na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP-26), principal evento da ONU sobre o assunto. O encontro pode ser crucial para determinar como o mundo vai lidar com a crise climática nos próximos anos. Até o momento, há uma grande descrença com relação às medidas adotadas para mitigar a crise. Na pesquisa do Pew Research Center, 52% dos entrevistados disseram não acreditar que as ações adotadas pela comunidade internacional até aqui possam reduzir significativamente os efeitos das mudanças climáticas.
No Brasil, a meteorologista Michele Reboita pesquisa, em parceria com colegas da Universidade de São Paulo, as causas da grave estiagem nas regiões Sudeste e Sul do Brasil que deu origem à atual crise energética. “As análises ainda estão em andamento, mas muito provavelmente isso também é um efeito do aquecimento global”, ela diz. O aumento médio das temperaturas do planeta, explica Reboita, altera o regime de ventos, de chuvas e das condições atmosféricas. “De 2014 até agora, o nível dos reservatórios nas hidrelétricas do Sudeste não foi restabelecido. O cenário é pior do que as pessoas imaginam”, afirma.
Segundo informações do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), a média do nível dos reservatórios do Sudeste entre 2000 e 2010 foi de 66%. Na década seguinte, caiu para 40%. Michele Reboita explica que valores médios tão discrepantes assim podem ser um sinal da mudança climática. “Será que esse vai ser nosso novo normal?”, ela questiona. Reboita ainda não tem a resposta para essa pergunta. Mas as previsões são de menos chuva durante a próxima década na região Sudeste, onde estão as principais hidrelétricas do Brasil. Além disso, não basta chover: é preciso que chova nos lugares certos – isto é, na região de cabeceira dos principais rios. Um estudo coordenado por Reboita e publicado no mês passado mostra que a precipitação sazonal da Floresta Amazônica pode ter redução de até 10%, à medida que as temperaturas médias aumentem no Brasil. Uma Amazônia mais seca significa que menos umidade será transportada para o Cerrado, região apelidada de berço das águas, e, consequentemente, para os rios das regiões Sul e Sudeste.
Os efeitos da crise climática são sentidos hoje pelos brasileiros que estão à beira de um apagão e pagando mais caro pela conta de luz. Mas os resultados também são visíveis em imagens de satélite. De acordo com a plataforma MapBiomas Água, o Rio Paraná – cuja bacia e afluentes alimentam os principais reservatórios do Sudeste e que comporta parte da hidrovia Tietê-Paraná – perdeu 35% de sua cobertura de água desde 1985. Essa área que foi perdida equivale a oito vezes a área da cidade de São Paulo. Para a pesquisadora Clarice Ferraz, trata-se de uma tragédia anunciada. “Há décadas temos estudos mostrando que a hidrologia brasileira estava mudando, que o clima estava mudando. O nível dos reservatórios hoje é a prova disso”, ela analisa. “Agora ninguém fala desse assunto porque está todo mundo apavorado com o apagão. Mas são problemas que vieram para ficar.”
Uma pesquisa realizada pelo Fórum Econômico Mundial em dezembro de 2019 mostrou que os brasileiros também se preocupam com o meio ambiente e desejam fazer algo a respeito. Quase 70% da população respondeu que já havia mudado algum hábito tendo em vista a preocupação com as mudanças climáticas – uma proporção maior que a observada em países ricos, como Alemanha, Holanda e Estados Unidos. Pouco mais da metade disse que mudou a frequência com que fazia reciclagem do lixo. Outra fatia importante (52%) também disse ter ajustado o uso de energia elétrica. Mas a medida mais citada pelos brasileiros para ajudar o meio ambiente foi justamente a economia de água, a resposta mais frequente entre os países emergentes. Na esteira da crise climática, a tendência é de que essa proporção aumente nos próximos anos.
* Reportagem atualizada às 12h23 para incluir o posicionamento do Ministério de Minas e Energia.
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