Foto: Andrew Caballero-Reynolds/AFP
Precisamos ouvir Robert Kennedy Jr.
Seus disparates antivacina são execráveis, mas é preciso compreendê-los como um sintoma profundo da nossa crise democrática
Para o crítico literário Harold Bloom, a força de Macbeth deriva sobretudo da capacidade de Shakespeare de nos fazer sentir empatia por um protagonista que é um monstro. Isso acontece porque o dramaturgo nos faz concluir que, como o rei Macbeth, somos todos vividos por forças muito maiores que nós. Macbeth é terrível, mas profundamente humano, e nos angustia porque nos obriga a admitir que, diante das circunstâncias vividas por ele, provavelmente também cederíamos à ambição e nos tornaríamos igualmente cruéis.
Nestes tempos em que a demonização do outro virou coisa rotineira no debate público, é importante pensarmos nas pessoas mais como expressões de suas circunstâncias e de seu tempo do que como indivíduos autônomos e plenamente livres em suas decisões. Temos, claro, possibilidade de escolha, agência e, portanto, responsabilidades, mas mesmo assim controlamos pouco do mundo. Quase sempre, nossas ações refletem muito mais essas forças maiores do que as nossas vontades pessoais. Pensar dessa forma nos permite suspender temporariamente o julgamento moral sobre pessoas de quem discordamos e tentar entender o que elas têm a nos ensinar sobre o momento que vivemos.
Como Macbeth, figuras contemporâneas também comportam contradições morais que nos revelam mais sobre o tempo histórico do que sobre elas mesmas. Um personagem que tem me fascinado ultimamente é Robert F. Kennedy Jr., secretário de saúde de Donald Trump, conhecido por sua militância antivacina e pela propagação de desinformação científica. Em termos de comportamento, não é nada que não tenhamos visto por aqui com figuras da extrema direita, como Jair Bolsonaro, Eduardo Pazuello ou Osmar Terra. Kennedy, porém, tem uma trajetória muito mais contraditória e conectada, de maneiras profundas, à política americana. Sua biografia condensa duas forças em choque: o idealismo liberal-progressista de uma época passada e o ceticismo corrosivo da atual.
Filho do ex-senador Robert Kennedy, o secretário trumpista viu, aos 9 anos, o tio JFK ser assassinado e, aos 14, o próprio pai – morto, vale lembrar, por um militante palestino de nacionalidade jordaniana, quando caminhava para ser o candidato democrata à presidência, em 1968. Robert havia declarado, pouco tempo antes, seu apoio irrestrito a Israel, e isso enfureceu Sirhan Bishara Sirhan, que tinha 24 anos na época e hoje é um dos detentos mais antigos do sistema penitenciário americano, cumprindo pena de prisão perpétua na Califórnia.
Herdeiro, portanto, da família mais emblemática da política americana, RFK Jr. – como é conhecido – se formou em direito e começou a carreira como um dos mais combativos defensores do meio ambiente, processando grandes poluidores e denunciando crimes ecológicos. Alguns desses processos se tornaram marcos históricos da luta ambiental nos Estados Unidos e ajudaram a estabelecer precedentes que ainda hoje orientam a proteção ambiental no país. Kennedy Jr. advogou, por exemplo, em prol da comunidade indígena Ramapough Mountain, situada na fronteira entre os estados de Nova Jersey e Nova York, que acusava a Ford de contaminar seu território com resíduos tóxicos. Os indígenas ganharam a ação e foram indenizados pela empresa. RFK Jr. também teve sucesso à frente de ações milionárias contra a DuPont, multinacional da indústria química condenada por contaminar a água nos estados de Ohio e West Virginia. Além disso, foi um dos fundadores da Waterkeeper Alliance, uma importante rede internacional de organizações ambientais focada na preservação da água.
A partir de certo momento, no entanto, Kennedy se tornou uma das vozes mais proeminentes do movimento antivacinas, propagando informações falsas e teorias conspiratórias – como aquelas que sugerem haver uma ligação entre vacinas e autismo, negacionismo do vírus HIV como causa da Aids e a ideia de que os rastros deixados por aviões no céu conteriam substâncias deliberadamente pulverizadas por governos ou corporações com fins secretos. Nos Estados Unidos, sua militância e declarações ajudaram a causar surtos e as primeiras mortes por sarampo no país em mais de uma década.
Como alguém com esse currículo pôde se tornar símbolo da desinformação científica?
A transformação de RFK Jr. – de advogado ambientalista respeitado em porta-voz do negacionismo científico – não é apenas uma história pessoal de contradição, mas um sintoma de algo mais profundo e fundamental de nosso tempo: o esgarçamento das fronteiras entre conhecimento especializado e opinião pública e a crescente dificuldade das democracias contemporâneas em produzir consensos legítimos sobre riscos e incertezas. Uma figura como ele emerge num contexto de desconfiança nas instituições, falhas de comunicação científica e politização extrema do conhecimento. Sua história ilustra o impasse que acontece quando a expertise científica perde credibilidade, e a ciência, em vez de orientar a deliberação coletiva, torna-se mais um campo de disputa simbólica e política.
Toda sociedade se organiza em torno de conhecimentos que são base da própria vida coletiva. Direitos e deveres, afinal, não surgem de ideias abstratas, mas como respostas práticas a problemas da vida em sociedade e se embasam em conhecimentos que oferecem respostas. Com que poder o Estado brasileiro nos obriga a nos vacinarmos ou determina que um proprietário rural deve preservar um percentual de sua fazenda por razões ambientais? Isso ocorre porque determinados conhecimentos foram considerados publicamente verdadeiros e legítimos e criou-se um consenso de que, seguindo essas determinações, as nossas vidas e as das futuras gerações estarão mais bem amparadas.
Decisões como essas nos cercam, compõem o mundo em que existimos e são parte tão intrínseca da nossa cultura que parecem dadas. Mas não há nada de natural ou tranquilo nesse processo no qual conhecimento e poder interagem para organizar nossa vida coletiva. A cientista social Sheila Jasanoff chama de “razão pública” essa dinâmica por meio da qual as sociedades legitimam conhecimentos que sustentam normas, formais ou tácitas, e mostra como ela é historicamente condicionada, fruto de um processo constante de ajuste e adaptação. “A razão não nos é dada, é construída”, explica Jasanoff. E, por isso, “a razão pública é tanto resultado da lei quanto da expertise científica e técnica”.
A pandemia tornou mais explícita a necessidade de pensarmos sobre a dinâmica da razão pública no mundo de hoje. Diante da situação desconhecida (um novo vírus) e do enorme risco, foi natural e razoável que os cientistas aconselhassem – e que os governantes colocassem em prática – a adoção de medidas de isolamento social. Mas, para os que foram mais afetados – trabalhadores autônomos que ficaram sem garantia de renda, por exemplo, ou aqueles que tinham que se expor de toda forma para assegurar a manutenção de atividades essenciais –, como podemos esperar que não achassem autoritárias ou injustas essas medidas? Ou, voltando a RFK Jr.: em sociedades democráticas, fundadas exatamente sobre a ideia de garantias contra o abuso do poder do Estado, não é legítimo que famílias se sintam desconfortáveis com a obrigatoriedade das vacinas? A pergunta, claro, não relativiza a importância da vacinação, plenamente comprovada, mas aponta para o dilema democrático básico e nada trivial entre liberdade individual e bem comum.
Sou favorável à obrigatoriedade da vacinação porque sigo confiando suficientemente na ciência médica e nos mecanismos de controle existentes para que vacinas sejam colocadas no mercado. Os benefícios da imunização de rebanho – cuja lógica sou capaz de entender – me parecem superar em muito os riscos de efeitos colaterais não previstos. Não nego, por outro lado, as evidências de mau comportamento da indústria farmacêutica e de seus laços sombrios com governos e com a classe médica. Não me surpreende que esses vínculos deixem as pessoas desconfortáveis. Para além do fato inegável de que interesses econômicos privados muitas vezes se sobrepõem ao interesse público, grande parte dessas controvérsias envolve elementos técnicos que não são de entendimento simples.
Por isso, ao menos até aqui, seguimos delegando aos especialistas – cientistas, técnicos, gestores públicos – o poder de tomarem decisões em nosso nome. Isso vale para vacinas, para o licenciamento de atividades potencialmente poluidoras, para o uso de celulares e acesso a redes sociais por crianças, para a liberação de produtos geneticamente modificados no meio ambiente, para as mudanças necessárias para evitar os efeitos das mudanças climáticas etc. Em todos esses casos, seja dentro de países ou em arenas supranacionais, a razão pública tenta dar conta de uma gama extremamente complexa de problemas manifestos, de riscos em potencial, das limitações de nosso conhecimento e de como se distribuem os ônus das decisões tomadas.
A trajetória e os delírios perigosos de RFK Jr. apontam para duas questões importantes. Em primeiro lugar, o fato de que setores da esquerda convergem com partes da extrema direita na desconfiança em relação ao establishment. Há algo de podre para ambos os grupos nas relações espúrias entre o capital e o Estado. A esquerda ambientalista e alternativa, herdeira da contracultura e do misticismo dos anos 1960, foi precursora no questionamento à indústria farmacêutica e química. Quem, afinal, não conhece pais progressistas que ainda hoje também questionam vacinas? O caminho de chegada da direita percorre veredas distintas, mas, nesse tema, chega ao mesmo lugar, com diferença apenas na ênfase em relação ao desrespeito às liberdades individuais. Não deveríamos nos surpreender quando um advogado como Kennedy, que atacou e viu de perto a negligência das grandes corporações, adere ao ressentimento e à paranoia.
Em segundo lugar, e mais importante, tanto RFK Jr. como os pais hippies ou menonitas que não vacinam os filhos são sintomas de nossa época e desse desgaste de nossas formas de razão pública, fundadas na ideia de uma ciência neutra e superior, e na delegação de decisões a experts com pouca permeabilidade ao diálogo e à participação.
É triste, mas ao mesmo tempo humano e compreensível, que, diante da angústia trazida pelas falhas da razão pública, tanta gente caia refém de conspirações e decida jogar fora o bebê com a água do banho – negando a ciência e a democracia por completo em função dessas falhas. Mas faríamos bem se, por um momento, ao invés de demonizá-los e tratá-los como inimigos ou culpados pelos problemas, pudéssemos ouvi-los como sinais distorcidos de questões sérias que precisam ser discutidas e respondidas na esfera pública.
Como Macbeth, em meio à sua loucura, RFK Jr. também fala de coisas que importam – mas, como o rei da Escócia, o faz num palco em que razão e delírio se confundem perigosamente.
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