Fotos de guardas circularam em grupos de WhatsApp de conhecidos dos presos, com a ameaça: “Marcados para morrer” ILUSTRAÇÃO: JOÃO BRIZZI
Presos vigiam e ameaçam carcereiros no WhatsApp
Em cadeia sob o domínio da facção acusada pela maior chacina do Ceará, detentos "proíbem" agentes penitenciários de circular após as 22 horas
Os papéis se inverteram na Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto, a CPPL 2, na região metropolitana de Fortaleza. Na prisão apontada como quartel-general da facção Guardiões do Estado, a GDE, acusada pela chacina que deixou quatorze mortos na capital cearense em 27 de janeiro, não são os agentes penitenciários que vigiam os presos, e sim o contrário.
Um relatório emergencial do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará, enviado na semana passada ao governo estadual, aponta que a cadeia está “sob o domínio” dos 1 124 presos, a maioria ligada ao grupo criminoso, e que há risco de “fuga em massa”. Da CPPL 2 costumam partir os “salves” da GDE, ordens para que se iniciem ataques como o de 2016, quando 20 veículos foram incendiados em Fortaleza. Uma das características da facção – que disputa o comando do tráfico de drogas na cidade com o Comando Vermelho – tem sido o uso de métodos de terror, como no massacre das Cajazeiras, durante uma festa de forró, em que oito das vítimas eram mulheres sem antecedentes criminais. O grupo é apontado pelas forças de segurança como responsável pelo crime.
Na CPPL 2, os internos fotografam os carcereiros e depois compartilham as imagens nas redes sociais como forma de ameaça. Sob condição de anonimato, um dos vigilantes da cadeia, lotado na unidade há três anos, relatou à piauí que, da guarita onde trabalha, é possível ver quando os internos filmam os colegas de serviço. A balaclava, por isso, se tornou item quase obrigatório na unidade. “Já fui filmado e fotografado, não dá mais para trabalhar sem balaclava. Se não esconder o rosto, posso sofrer algo lá fora. Posso morrer”, disse.
Semanas atrás, ele conta, fotos de agentes carcerários passaram a circular em grupos de WhatsApp de conhecidos dos criminosos e dos próprios presos do complexo de seis cadeias em Itaitinga, a 30 quilômetros de Fortaleza. Abaixo das imagens, a ameaça: “Marcados para morrer.” “Ficamos todos apreensivos. Por milagre, não aconteceu nada”, contou.
O relatório produzido pelo Conselho Penitenciário, ligado à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do estado, também trata das ameaças aos guardas por meio de imagens feitas pelos presos. “Os agentes são submetidos a filmagens e fotos, sendo ameaçados pelos internos”, que depois divulgam o material “nas redes sociais”, aponta o documento. “Mesmo o interno sendo identificado pelo agente (…), o procedimento [de denúncia do detento à direção da penitenciária] não pode ser feito devido à total falta de segurança.”
Na CPPL 2, os presos tentam controlar até os horários dos agentes penitenciários, com uma espécie de toque de recolher. Num dos corredores da carceragem, lê-se uma ordem sumária: “Proibido agente no piso superior a partir das 22 horas.” Ao lado, escrita na parede escurecida por um incêndio recente, é possível ver a assinatura da GDE seguida do numeral “745”, uma referência à ordem das letras da facção no alfabeto.
Os detentos decidem por onde os vigias estão autorizados a transitar dentro da unidade. “Há um risco absurdo. Se o agente passa em alguns lugares, como na porta de um dos pavilhões, ele pode ser apanhado como refém na mesma hora”, disse o vigilante.
Elaborado quatro dias após o massacre das Cajazeiras, na Região Central de Fortaleza, o estudo apresentado à Secretaria da Justiça e ao governo do estado contém uma recomendação expressa: “Início imediato de intervenção e reforma” da CPPL 2. Traz também o alerta de “risco de fuga em massa e/ou algum ataque aos servidores é muito alto”, pois “não há disciplina prisional”. E constata que “toda atividade de ressocialização dos presos encontra-se inviabilizada na unidade por conta do problema de segurança”.
O documento ainda aponta que, na prisão onde a GDE dita as regras a presos e carcereiros, as “grades de proteção” que separam as alas “são soldadas diariamente, pela manhã, para logo depois serem serradas pelos internos, no período da noite”, “posto que estão soltos e circulando por toda unidade, inclusive de madrugada”.
Os responsáveis pelo levantamento destacam, além das ameaças físicas aos agentes, problemas estruturais e de segurança no prédio, como “rachaduras no chão ao redor das grades” e possibilidade de “desabamentos e graves acidentes com internos e agentes”, com “risco de curto-circuito e incêndio”.
Para subsidiar a análise, uma equipe do Conselho Penitenciário visitou a CPPL 2 a pedido de um grupo de vigilantes que registrou boletim de ocorrência na Delegacia Metropolitana de Itaitinga dez dias antes da chacina em Fortaleza. Na madrugada de 16 de janeiro, segundo o B.O., detentos lançaram um “artefato explosivo” contra os carcereiros que, horas antes, haviam descoberto falhas em grades e buracos nas paredes de um setor da prisão.
Para um dos 24 carcereiros que se alternam em turnos na segurança da CPPL 2, a unidade dominada pela GDE é um “queijo suíço”. “A unidade está cheia de ‘espirro’, que é quando a grade é serrada e escondida com fita isolante pelos presos. E eles quebraram todas as câmeras, estamos às cegas”, descreveu. Os presos circulam livremente pela unidade, segundo o agente. “Há mais de um ano eles não voltam para as celas. E isso facilita muito a organização das facções. Os presídios no Ceará se tornaram quartéis do crime.”
Presidente do Sindicato dos Agentes e Servidores Públicos do Sistema Penitenciários do Ceará, Valdemiro Barbosa confirma as queixas dos servidores da CPPL 2. “Essa unidade está caótica. É, de longe, a que tem piores condições no Ceará. Lá, o agente chama o nome do preso no portão de acesso. Se for do interesse do preso, ele vai. Se não for, ele não vai”, afirmou.
Para o defensor público Emerson Castelo Branco, que acompanha familiares das vítimas da chacina de Itapajé, na qual dez presos foram assassinados na cadeia pública da cidade dois dias depois de Cajazeiras, o governo não perdeu controle apenas da CPPL 2, mas do território cearense. “Houve um momento em que era possível evitar no estado esse domínio do crime organizado. E se perdeu esse momento. As autoridades sabiam do problema, mas menosprezaram o poder das facções”. Desde a matança em Fortaleza, o governo tem repetido que as ações desses grupos são pontuais e que o estado mantém controle sobre o sistema carcerário.
Os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça, mostram que o sistema prisional cearense tem hoje 27 647 presos, o segundo mais superlotado do país, atrás apenas do Amazonas. O excedente estadual é de 59%. O Ceará também apresenta o segundo pior índice do país de presos provisórios em relação ao total de detentos: mais da metade dos encarcerados do estado ainda esperam julgamento.
Uma demonstração simbólica do poderio da GDE na CPPL 2 foi dada na semana passada. Os presos hastearam uma bandeira dentro do presídio, com o nome da facção. “Ela ficou lá por dois dias, e ninguém pôde mexer”, contou um agente penitenciário. A flâmula só foi retirada depois que os policiais do Batalhão de Choque da Polícia Militar chegaram para reforçar a segurança na prisão.
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