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    Nas comunidades sob domínio do CV regra do proibido roubar é adotada como forma de evitar presença da polícia, atrapalhando a atividade principal do grupo: o comércio de drogas. Crédito: Ramon Aquim

questões criminais

“Proibido roubar. Risco de morte”

Facções consolidam hegemonia na Amazônia e impõem falsa pacificação em áreas dominadas

Fabio Pontes | 20 jun 2023_09h11
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Na noite do último dia 20 de março, jovens integrantes de facções criminosas da Baixada da Sobral, região com a maior concentração populacional de Rio Branco, receberam um “salve” para sair às ruas. A ordem era marcar território pichando os muros com as iniciais do Comando Vermelho (CV) e o aviso “Proibido Roubar”. Tudo deveria ser registrado em vídeo, para ser enviado aos superiores. Um dos vídeos vazou nas redes sociais. Mostra os “soldados do CV” iluminados pelas luzes de um carro, pichando muros às pressas. Como se ouve no áudio da gravação, a pressa tem motivo: “os homem [polícia] tão atrás de nós, doido, denunciaram”, diz um dos “soldados” na conversa com o chefe. Antes de deixar o local, eles fazem três disparos na direção de uma pessoa que observa, do alto do muro, a “operação”. O alvo não é atingido. 

Novidade nos muros da periferia da capital do Acre, as pichações explicitam uma conquista na guerra travada desde 2016 entre o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC) nas regiões de fronteira da Amazônia. O domínio da região é estratégico para a sobrevivência desses grupos criminosos, que têm no tráfico de drogas a principal fonte de financiamento. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o tráfico de cocaína faz circular o equivalente a 4% do PIB brasileiro, o que daria uma cifra em torno de  64 bilhões de dólares.  E as rotas que passam pelos estados da Amazônia Legal responderiam por 40% desse volume de dinheiro, cerca de 25 bilhões de dólares.

A Baixada da Sobral é um dos palcos da guerra entre CV e PCC, que no Acre se aliou à facção local Bonde dos Treze (B13). Pelos muros e postes dos bairros, é possível encontrar as iniciais das facções. Além de marcar território, os “soldados” transmitem mensagens de intimidação que impõem suas regras de proibição de roubos e furtos, ou alertam os não moradores da região a andarem com os vidros dos carros baixados. Em alguns casos, avisam que é proibido apagar as pichações.

“Abaixe o vidro para sua segurança”, diz uma pichação característica das áreas dominadas pelo PCC/B13. “Proibido roubar morador”, lê-se em outra parede. “Passa nada”, ou “Não passa nada”, uma gíria de intimidação aos inimigos, deixando claro que entrar ali é um risco. “Proibido rouba na quebrada. Pagar com a vida”, ou “Proibido roubar. Risco de morte”, avisam os recados cercados pelas iniciais do CV. Apesar de ser mais comum encontrar marcações do PCC/B13, a maior parte dos bairros da periferia de Rio Branco está sob controle do Comando Vermelho.

Em outros estados onde há domínio de facções, como o Rio, é comum que os traficantes castiguem de modo violento quem rouba. Crianças e adolescentes que furtam são punidos com tiros na mão.

O Comando Vermelho alcançou uma quase hegemonia territorial no Acre — o que lhe assegura o domínio da rota do tráfico da cocaína produzida no Peru e na Bolívia, além de monopólio no mercado local de drogas. Com isso, impôs em suas áreas uma falsa sensação de pacificação e segurança. Impõe uma norma, e quem desrespeita é levado a julgamento pelo “tribunal do crime”, quase sem chance de absolvição. A pena mais comum é a morte.

“Qual a motivação desse tipo de ‘salve’? Se eu não tenho o roubo, eu não tenho a vítima que vai ligar para a polícia, e a polícia não vai estar dentro do bairro comandado pelo Comando Vermelho, incomodando o traficante. Eles não fazem isso [proibir o roubo] porque são bonzinhos, o que eles não querem é o incômodo que atrapalhe a atividade econômica principal, que é a venda de drogas”, diz o promotor Bernardo Albano, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público Estadual (MP-AC).

O diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Renato Sérgio de Lima, diz que o objetivo da facção, além de impor medo, é angariar legitimidade diante da população das áreas dominadas. “É claro que é uma lei do terror, do medo, mas não é só do medo. Eles estão tentando angariar legitimidade diante da população para poder se fazer presente ali. Evitando que os roubos aconteçam, eles não querem que a polícia vá ao lugar, mas também querem que a população proteja o negócio deles. É uma relação de troca muito perversa, porque quem está com as armas são eles.” Com isso, diz, a população se torna refém desse clima de falsa paz — que na verdade é um clima de guerra.

Conforme relatos obtidos pela piauí, nessas áreas sob domínio do CV, ao invés de procurarem a delegacia para o registro de um B.O, os moradores recorrem aos líderes da facção para fazer a queixa e solicitar a devolução dos bens furtados — o que quase sempre acontece com êxito. Por sua vez, quem cometeu a infração vai ser punido, como alertam as pichações nos muros. 

“Muitas das vezes, para a população, de fato acabou o roubo, aquela população que sai para trabalhar e era roubada. E aí eles [criminosos] têm essa expectativa de que, ajudando a população nesse dia a dia, eles podem fazer tranquilamente os seus negócios”, completa Lima. 

O promotor do Gaeco lembra que, quando a comunidade não vai à delegacia denunciar o roubo, acaba gerando a subnotificações dos casos de crimes contra o patrimônio, criando uma falsa sensação de tranquilidade ou pacificação nos territórios dominados. Ao ser flagrado cometendo furto, o ladrão (geralmente dependentes químicos que roubam para comprar drogas) vai recebendo advertências, ou “corretivos”.

Se for reincidente contumaz e causar muitos incômodos na vizinhança, o ladrão recebe a pena máxima: a morte. E uma morte geralmente violenta, a golpes de pau. O castigo brutal é para servir de exemplo. “Nós temos o registro de cenas dignas de um estado islâmico. Pessoas que têm as mãos cortadas, são torturadas”, comenta Albano.

 

No começo de maio, um homem identificado como Josué Vieira dos Santos, de 55 anos, foi morto a pauladas por faccionados do Comando Vermelho, conforme noticiou a imprensa policial local. O crime, cujas cenas foram gravadas, aconteceu no bairro Custódio Freire, zona rural de Rio Branco. O “corretivo” foi aplicado como punição por ele ser suspeito de praticar furtos na comunidade. Ele chegou a ser hospitalizado, mas não resistiu.

 

Na avaliação do promotor Albano, o domínio dos negócios do crime por uma única facção costuma passar a falsa sensação de pacificação. “Você pode ter, num primeiro momento, a redução dos casos de mortes violentas intencionais porque não vai ter os assassinatos decorrentes da disputa entre facções. Eu não vou deixar de ter um cenário de mortes nessa situação, mas as decorrentes de confrontos cairão.” Com a facção fortalecida, há porém mais risco de ataques à estrutura estatal de segurança pública, como a registrada no Rio Grande do Norte.

No Acre, o fortalecimento do CV coincide com a queda nos registros de mortes violentas intencionais (MVI): homicídios dolosos, latrocínios, mortes decorrentes de ações policiais e lesões corporais seguidas de morte. Parte da redução pode ser atribuída, justamente, ao fim do confronto entre o CV e o grande rival local, formado pela parceria entre a facção paulista PCC e a local Bonde dos Treze (B13). 

De acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2017 o Acre ocupou a segunda posição no ranking nacional de MVI, com 63,9 assassinatos para cada 100 mil habitantes. O Rio Grande do Norte ocupou o topo, com 68 assassinatos por 100 mil habitantes. Entre as capitais, Rio Branco foi a campeã de mortes violentas: 83,7 por 100 mil, seguida de Fortaleza (77,3) e Belém (67,5). De 2011 a 2021, 2017 foi o pior ano no registro de MVIs no Acre, exatamente o auge do confronto entre as facções.

A partir de 2019, o CV consolidou seu domínio no Acre. Reportagem da piauí mostrou como jovens filiados ao PCC (B13) em diferentes cidades lotaram os templos evangélicos em busca de conversão religiosa. A outra conversão possível era ao próprio CV. Quem recusasse uma das duas opções era morto. A dupla PCC/B13 ficou restrita a atuar em poucos pavilhões dos presídios e bairros mais afastados.

De lá para cá, o Acre acompanhou a redução nas MVIs observada em todo o país. Em 2021, segundo o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil teve taxa de 22,3 assassinatos por 100 mil habitantes, redução de 6,5% na comparação com 2020. No ranking dos estados, o Acre ficou com a 20ª taxa de assassinatos mais alta em 2020, 36 assassinatos por 100 mil habitantes. Em 2021, a taxa de mortes no Estado caiu para 21,2 por 100 mil, uma redução de 41,2% – mas outros estados conseguiram reduções mais altas, e o Acre foi o 8º do ranking.

Para o FBSP, não há uma causa única para a redução das mortes violentas intencionais e sim um conjunto de fatores associados, como as estratégias de segurança pública adotadas pelos governos estaduais, bem como as dinâmicas regionais do crime. “Não há uma única causa capaz de explicar a tendência das MVI, que é a associação de múltiplas causas e fatores. Assim, podemos falar de fatores preponderantes, mas jamais de causa única”, diz trecho do Anuário da Violência 2022. Renato Sérgio de Lima destacou, porém, que a redução dos confrontos entre grupos criminosos influencia sim as estatísticas de mortes violentas na região.

Após período de trégua, o Acre voltou a apresentar no ano passado alta nas mortes violentas intencionais. Foram 236 casos contra 194 de 2021. De janeiro a maio deste ano o estado teve 94 assassinatos – um a menos que no mesmo período do ano passado. A maioria das vítimas, aponta a análise, foi morta com o uso de arma de fogo. Já os crimes de roubo apresentaram uma queda mais expressiva na mesma comparação: 15%, segundo dados da Sejusp.

Para o coronel da Polícia Militar José Américo Gaia, atual secretário de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) do Acre, todos esses casos de proibição de roubos e a implementação do “tribunal do crime” não passam de uma estratégia de marketing das facções, para passar a impressão de perda de autoridade por parte do Estado. Ele classifica como hollywoodianos os relatos de moradores recorrerem aos chefes das facções para reaver bens furtados. Para Gaia, as marcações com as iniciais CV e PCC são pichações como quaisquer outras. Além disso, afirma ele, as investigações não apontam as mortes consideradas consequência de “corretivos” como fruto de uma sentença do “tribunal do crime”.

“Eu não diria que no Acre existe uma ausência do Estado. Eu diria que existe uma propaganda de algumas coisas que eles querem implementar. Eles querem colocar isso nos bairros, sendo que no Acre não podemos dizer que a gente perdeu o controle sobre a segurança pública nos bairros”, afirma o secretário. “Isso é uma propaganda. Não retrata e não condiz com a realidade.”

Após período de certa
Após período de certa "hegemonia" do CV, B13 (PCC) começa a reocupar territórios para garantir controle na venda de drogas; retorno de dispustas leva ao aumento das MVIs. | Crédito: Ramon Aquim
Desde o ano passado, Acre volta a apresentar aumentos nos casos de mortes violentas; elevação acontece em meio ao recrudescimento da guerra entre CV e PCC nas fronteiras amazônicas. | Crédito: Ramon Aquim
Desde o ano passado, Acre volta a apresentar aumentos nos casos de mortes violentas; elevação acontece em meio ao recrudescimento da guerra entre CV e PCC nas fronteiras amazônicas. | Crédito: Ramon Aquim
"Não passa nada." Recado dado pela facção de que a presença do inimigo é proibida; não entra oponente nem polícia. Território controlado. | Crédito: Ramon Aquim
Desde o fim de março, CV intensificou sua demarcação territorial pela periferia de Rio Branco, impondo a lei do
Desde o fim de março, CV intensificou sua demarcação territorial pela periferia de Rio Branco, impondo a lei do "proibido roubar". | Crédito: Ramon Aquim
Nas comunidades dominadas pelo B13 é mais comum se deparar com as marcações de área e
Nas comunidades dominadas pelo B13 é mais comum se deparar com as marcações de área e "regras de comportamento". | Crédito: Ramon Aquim
Em diferentes zonas da capital acreana,
Em diferentes zonas da capital acreana, "soldados" das facções picham muros e paredes como sinal de território dominado. | Crédito: Ramon Aquim
Em bairros dominado pela facção B13, aliada do PCC, pichações orientam motoristas a andar com vidros baixados. | Crédito: Ramon Aquim
Em bairros dominado pela facção B13, aliada do PCC, pichações orientam motoristas a andar com vidros baixados. | Crédito: Ramon Aquim
Após período de certa
Após período de certa "hegemonia" do CV, B13 (PCC) começa a reocupar territórios para garantir controle na venda de drogas; retorno de dispustas leva ao aumento das MVIs. | Crédito: Ramon Aquim
Desde o ano passado, Acre volta a apresentar aumentos nos casos de mortes violentas; elevação acontece em meio ao recrudescimento da guerra entre CV e PCC nas fronteiras amazônicas. | Crédito: Ramon Aquim
Desde o ano passado, Acre volta a apresentar aumentos nos casos de mortes violentas; elevação acontece em meio ao recrudescimento da guerra entre CV e PCC nas fronteiras amazônicas. | Crédito: Ramon Aquim
"Não passa nada." Recado dado pela facção de que a presença do inimigo é proibida; não entra oponente nem polícia. Território controlado. | Crédito: Ramon Aquim
Desde o fim de março, CV intensificou sua demarcação territorial pela periferia de Rio Branco, impondo a lei do
Desde o fim de março, CV intensificou sua demarcação territorial pela periferia de Rio Branco, impondo a lei do "proibido roubar". | Crédito: Ramon Aquim
Nas comunidades dominadas pelo B13 é mais comum se deparar com as marcações de área e
Nas comunidades dominadas pelo B13 é mais comum se deparar com as marcações de área e "regras de comportamento". | Crédito: Ramon Aquim
Em diferentes zonas da capital acreana,
Em diferentes zonas da capital acreana, "soldados" das facções picham muros e paredes como sinal de território dominado. | Crédito: Ramon Aquim
Em bairros dominado pela facção B13, aliada do PCC, pichações orientam motoristas a andar com vidros baixados. | Crédito: Ramon Aquim
Em bairros dominado pela facção B13, aliada do PCC, pichações orientam motoristas a andar com vidros baixados. | Crédito: Ramon Aquim

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