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    "Tá brabo, né? Grana curta para pagar as contas?", diz a promoção da FM O Dia patrocinada pelos cantores Ley e Paloma, limitada a faturas de até 200 reais Foto: Reprodução/Instagram

anais da comunicação

Boletos pagos, o prêmio da vez nos sorteios das rádios

No país de 70 milhões de endividados, a quitação de contas de consumo faz sucesso nas promoções das FMs

Lílian Cunha | 20 out 2023_08h53
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“Está com aquela conta atrasada? passando todo mês no sufoco? Não sobra nadinha nem para o pão? Então essa promoção vai te dar uma ajudinha! Mande uma foto ou um print de umas de suas contas de consumo como luz, água, gás encanado, telefone ou internet até o valor de 5 mil reais. Pronto, você já concorre ‘ao Nativa paga suas contas!’”

A voz masculina entusiasmada na rádio Nativa de São José, na frequência 97,5 FM, anuncia um dos hits da emissora, o sorteio que tem como grande prêmio o pagamento de um boleto. Nas redes sociais, os posts que citam a promoção também movimentam a audiência. “Nativa, obrigado por ter pago minha água”, testemunha uma ouvinte, que relata ter tido a fatura da Sabesp  (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), no valor de 100 reais, liquidada pela rádio. “Agora estou mandando a de luz”, avisa. 

Empresa do grupo Bandeirantes, com emissoras em São Paulo e mais cinco cidades do interior paulista, a Nativa FM não está sozinha na iniciativa. Pagar as contas de luz, água, gás, internet ou o carnê atrasado da audiência está virando um dos prêmios da vez no rádio brasileiro.

“Muita gente participa. A gente chega a receber uns 5 mil boletos por sorteio”, conta Tiago Silvares, gerente da capixaba Litoral FM, líder em audiência com média de 530 mil ouvintes na grande Vitória, segundo o site especializado Tudo Rádio, com dados da Kantar IBOPE Media. Ali, a promoção é sempre feita em parceria com algum artista, que fica na berlinda. “São eles que financiam o pagamento do boleto. A gente não fala o nome deles na promoção, embora o dinheiro venha da banda ou do cantor. E em troca a gente promove a música deles, toca mais.” A Litoral FM toca um pouco de tudo: pagode, sofrência, sertanejo, pisadinha, funk. 

Em cada rádio, a promoção tem sua mecânica. Na Cultura FM da cidade sul-mato-grossense Três Lagoas, do Grupo RCN de comunicação, para participar o ouvinte precisa também fazer uma compra nas lojas parceiras. Na hora de divulgar o resultado, a locutora Larissa Dandara se empenha na animação:

“Chegou a hora da gente saber quem vai levar para casa – ééé, minha gente… – 400 reais! Isso mesmo! Levou para casa essa bolada maravilhosa, vai quitar um boletinho amigo que tava perturbando a cabeça…” E crava então o nome da vencedora. O nome da promoção é “Grupo RCN paga o meu boleto” (sic). No desfecho, a radialista alimenta as esperanças dos preteridos: “Tenho certeza absoluta de que o próximo vai ser você”.

“O rádio é aquele veículo que espanta a solidão. Quando a gente se dispõe a pagar a conta do ouvinte, a proximidade aumenta ainda mais”, explica Alan Oliveira, locutor na carioca de samba e pagode FM O Dia, a rádio com maior alcance do Brasil, com mais de 3,4 milhões de ouvintes, segundo a  Kantar Ibope Media. “É uma das promoções que mais faz sucesso aqui. Falou em grana, em pagar conta, os ouvintes participam em peso. E a gente sabe que todo dinheirinho ajuda.”

Esse auxílio pode vir de outras maneiras. Na rede Massa FM (com sede em Curitiba e filiais em mais 74 cidades de todo o país), faz sucesso o sorteio de botijão de gás. A Nativa de São José dos Campos vem oferecendo desde agosto dois quilos de carne diariamente, na promoção “Mistura da Nativa”. Para concorrer à mistura (ou seja, ao principal item do prato, que acompanha os mais básicos, como o arroz e o feijão), o ouvinte precisa enviar uma mensagem de WhatsApp com seus dados e escrever a frase “Eu quero mistura Nativa”.  

A auxiliar de limpeza Marina Cardoso, de São José dos Campos, nunca teve sucesso nos sorteios de boletos pagos, mas ganhou a promoção da proteína, no começo de outubro. “Faz muito tempo que eu não compro dois quilos de carne assim. Só compro de pouquinho, no máximo uns 800 gramas.”

 

“O básico agora virou prêmio”, conclui Verusca Casciano, diretora de mídia da agência de publicidade e propaganda WMS/Grey Brasil, de São Paulo. Não é para menos. Mais de 70 milhões de brasileiros estão endividados. São cerca de 323 bilhões de reais em contas atrasadas com contas de água, luz e energia, empresas varejistas, bancos e cartões de crédito, segundo dados da Serasa Experian.

“Quando você diz que vai pagar uma conta em atraso, a audiência sente que aquela emissora sabe da situação pela qual o ouvinte dela está passando. Isso gera uma conexão emocional  – além de muito ‘talkability’”, avalia Verusca.

“Talkability”, palavra da moda entre os publicitários, é potencial de um assunto cair na boca do povo. Essas promoções de boletos são comentadas e compartilhadas nas redes sociais. Pedro Sader, diretor de marketing e promoção da carioca FM O Dia, diz que o objetivo é fortalecer a marca da emissora. “A gente mantém a audiência grudada e garante a sustentação da nossa marca”, diz ele. 

Daniel Starck, jornalista criador do site Tudoradio.com, diz que outro objetivo é evitar a troca constante no dial. “O rádio é um meio que tem muito alcance. Mas ele precisa reter essa audiência. Não adianta nada chegar a milhões de ouvintes se eles ficam sintonizados só por alguns minutos. As promoções ajudam nisso”, explica.

A tática existe no mundo todo. Em alguns casos, o desafio foi longe demais. No ano de 2007, a emissora norte-americana KDND FM, baseada em Sacramento, armou um concurso que daria ao vencedor um videogame Nintendo Wii. Ganhava quem bebesse a maior quantidade de água possível sem ir ao banheiro. Depois de forçar a bexiga, uma das participantes teve uma intoxicação aguda e morreu. A KDND FM foi condenada a indenizar sua família em 16 milhões de dólares.

Das criativas às duvidosas, as estações brasileiras já criaram toda sorte de iniciativa. Nos anos 2000, a extinta OK FM, no Distrito Federal, sorteou testes de DNA para ouvintes que desejavam esclarecer questões de paternidade, como recorda  Starck, do Tudoradio.com. A rádio Liberdade FM, de Betim, já rifou um salário-mínimo para os ouvintes, em 2017. Agora, a FM mineira premia os vencedores de suas promoções com um vale combustível de 150 reais. Outros brindes vão da cesta básica à transformação estética, com direito a cabeleireiro, design de sobrancelha, manicure e tudo. 

Promoções de rádio, porém, não são (ou não deveriam ser) uma terra sem lei. “Elas precisam estar de acordo com os regulamentos da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda”, esclarece Rodolfo Moura, advogado especializado no setor. As emissoras podem, segundo ele, sortear vales e brindes em geral, mas não podem premiar com bebidas, armas – e nem dinheiro. 

É o que informa o Ministério da Fazenda, com base na lei 4.768/71, art. 1º, §3º, em nota enviada à piauí. “E dinheiro é entendido conforme sua liquidez, em sentido amplo. Ou seja, são vedados prêmios em dinheiro em espécie (cédulas e moedas), transferência de propriedade de saldos em depósitos bancários, depósitos de poupança ou disponibilidades em contas de pagamento, transferências de dinheiro (via TED, DOC, PIX ou pagamento de boletos), entre outros.” Assim, o pagamento “daquele boletinho amigo” é ilegal. O intuito da regulação é evitar mecanismos que possam ser usados como lavagem de dinheiro.

 A irregularidade dessas promoções deve, segundo o ministério, ser denunciada pelo cidadão por meio da plataforma Fala.BR, no endereço eletrônico falabr.cgu.gov.br. Consultadas pela reportagem, nenhuma das emissoras citadas na reportagem comentou o assunto. A Massa FM é a única que tem o registro do Ministério para o sorteio. A diferença é que ela não distribui dinheiro, mas um vale que geralmente é emitido por um patrocinador, como uma financeira.

O rádio é ainda muito presente na vida do brasileiro. Ele chega a 80% da população nas 13 regiões metropolitanas brasileiras, segundo o estudo Inside Audio 2023, realizado em setembro pela Kantar Ibope Media. Cada ouvinte dessas localidades, segundo a pesquisa, passa, em média, 3 horas e 55 minutos diariamente escutando rádio, principalmente em casa durante atividades cotidianas (58%), no carro ou na moto (27%) e no trabalho presencial (12%). Nos Estados Unidos, de acordo com a Nielsen, a audiência média das rádios entre pessoas de 18 e 49 anos foi 3% maior do que a da televisão no final do ano passado.

As promoções, portanto, parecem menos um grito de socorro das FMs em meio à ascensão de streamings de vídeo e áudio, e mais uma sintonia fina com as demandas dos ouvintes. “A gente só espera que a situação melhore e que, em breve, as emissoras voltem a sortear jantares para namorados, celulares, viagens e outros prêmios que não sejam necessidades básicas”, diz Verusca.

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