Trânsito de veículos em Brasília Foto: Pedro França/Agência Senado
Quando a cidade se torna invisível
Planejamento urbano não pode ser assunto apenas dos municípios ou da União – falta presença firme do poder estadual
No Brasil, é comum pensar que as políticas urbanas são responsabilidade ou dos municípios ou da União, mas há outra instância que não pode ser desprezada: a dos estados. Políticas urbanas estaduais são tão importantes quanto as municipais e federais.
Os municípios são o ente da Federação diretamente responsável pelas cidades. Elaboram planos diretores, aprovam construções, cuidam de praças, calçadas e ruas e prestam serviços públicos. A União financia obras, concede crédito imobiliário e aprova as principais legislações nacionais – no caso do desenvolvimento urbano, são exemplos disso o Estatuto da Cidade, o Estatuto da Metrópole, as leis de Parcelamento de Solo, Regularização Fundiária e Desapropriações, além dos marcos regulatórios de políticas correlatas, como defesa civil, acessibilidade, saneamento básico, mobilidade, habitação.
É preciso, porém, resgatar o “elo perdido” da política urbana: competências atribuídas aos estados. Entre elas, destacam-se as de legislar sobre direito urbanístico, criar e fundir municípios, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, promover o zoneamento econômico-ecológico, gerenciar recursos hídricos, promover o licenciamento ambiental, executar políticas de habitação, saneamento básico e proteção do patrimônio cultural. Algumas dessas competências são concorrentes com a União. Outras são comuns a todos os entes da Federação. Essa sobreposição é uma característica da Constituição brasileira, que adota um federalismo cooperativo, no qual vários entes podem atuar simultaneamente sobre uma mesma matéria.
O primeiro ponto desse resgate seria que os estados venham a exercer a competência de legislar sobre o direito urbanístico. Em muitos países, as funções cumpridas no Brasil pela União são estaduais. É comum que a legislação geral de direito urbanístico seja editada pelos entes subnacionais – estados, províncias ou regiões autônomas, como ocorre nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália. Há também situações híbridas, como as da Espanha e da Alemanha, em que normas nacionais gerais convivem com normas subnacionais específicas. Esse pode ser considerado o modelo constitucional brasileiro, que se encontra incompleto devido à omissão dos estados.
A Constituição prevê a edição de leis urbanísticas estaduais, às quais caberia, inclusive, a regulamentação definitiva da matéria. As leis federais deveriam se limitar às chamadas “normas gerais”, que veiculam princípios e conceitos, mas não regras detalhadas. Contudo, até o momento, apenas os estados do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná exerceram essa competência.
Com isso, criou-se uma lacuna que tende a ser preenchida por leis municipais. A regulamentação dos instrumentos do Estatuto da Cidade, por exemplo, ocupa grande parte dos planos diretores, que deveriam estar focados no ordenamento do território.
Não existe um sistema de planejamento comum aos municípios que defina com clareza os planos a serem elaborados e o conteúdo de cada um. Em muitos casos, é preciso consultar várias leis municipais simultaneamente para saber o que pode ou não ser construído em determinado terreno. Cada plano adota conceitos e convenções gráficas próprias, que não podem ser comparadas entre si.
Precisamos de códigos estaduais de direito urbanístico que organizem sistemas de ordenamento territorial, abrangendo tanto as escalas regionais quanto as propriamente urbanas. Na escala regional, cabe aos estados elaborar o zoneamento ecológico-econômico (ZEE), que promove a distribuição espacial das atividades econômicas, de modo a proteger as áreas ambientalmente sensíveis. Na escala urbana, o plano diretor e os demais planos urbanísticos continuarão a ser elaborados pelo município, todavia deverão observar uma padronização estadual quanto aos seus conceitos, características e funções, passando a ter uma linguagem comum.
Os instrumentos de política urbana criados pelo Estatuto da Cidade, como a edificação compulsória, a outorga onerosa do direito de construir e a operação urbana consorciada podem ser regulamentados por leis estaduais. Além disso, outros instrumentos não previstos na lei federal, como a concessão urbanística, podem ser criados. Da mesma forma, seria possível editar códigos de obras estaduais com normas sobre a estrutura e o licenciamento das edificações.
A separação entre as funções de legislar e de executar a política urbana contribuiria para coibir casuísmos e aumentar a transparência e a segurança jurídica. Além disso, a medida levaria os municípios a se concentrar no que podem fazer de melhor, que é planejar, projetar e executar as obras e políticas públicas locais, em contato direto com a população.
O Brasil hoje tem nada menos que 5.570 municípios, muitos dos quais dependem exclusivamente de repasses de recursos federais e estaduais e não contam com condições materiais, humanas ou tecnológicas de executar suas funções constitucionais. A questão não é a quantidade de municípios e sim sua efetiva capacidade de gestão.
Ora, quem pode, por lei, criar, desmembrar, incorporar e fundir municípios são os estados. A preocupação com a criação de municípios inviáveis levou à aprovação, em 1996, de uma Emenda Constitucional prevendo a elaboração de Estudo de Viabilidade Municipal. É preciso elaborar esses estudos e adotar providências para os municípios que se revelarem inviáveis, como a incorporação ou fusão com outros maiores.
Os problemas decorrentes da conurbação – a fusão do tecido urbano de vários municípios – são dramáticos e atingem principalmente as grandes metrópoles, onde já não é mais possível distinguir a olho nu as divisas municipais. As pessoas residem em um município e trabalham em outro. A poluição de um prejudica o outro. Os mananciais de uns fornecem água aos demais e assim por diante. Nesses casos, a Constituição prevê a gestão integrada das chamadas “funções públicas de interesse comum”, aquelas que não podem ser exercidas em um município sem fazer uso do território ou causar impacto nos demais. Cabe aos estados instituir, por lei complementar, regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões e depois coordenar a gestão interfederativa, que deverá aprovar as políticas metropolitanas.
Em 2013, o STF definiu que essa integração é compulsória e que os municípios não têm poder de veto, entretanto precisam ser ouvidos. Cabe aos estados liderar esse processo, em permanente diálogo com os prefeitos e técnicos municipais. Um modelo exitoso é o da Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte, o órgão metropolitano mais bem institucionalizado do país.
A expansão urbana, que se dá pelo parcelamento do solo, depende de licenciamento municipal, mas este deve ser precedido de consulta a diversos órgãos estaduais. Uma experiência consolidada de centralização e agilização desse processo é a do Grupo de Análise e Aprovação de Projetos Habitacionais (GRAPROHAB) do Estado de São Paulo.
O abastecimento de água e o esgotamento sanitário são serviços públicos prestados na maior parte do país por Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs). Para atrair a iniciativa privada, foi editado em 2020 o “Novo Marco Legal do Saneamento Básico”, que impede a contratação dessas estatais sem licitação. Cabe aos estados editar leis dividindo seu território em “blocos”, que deverão ser objeto de uma única concessão, que poderá ser prestada pela própria empresa estadual, caso vença a licitação. Além disso, a maior parte dos serviços é regulada por agências reguladoras.
O saneamento básico tem relação direta com a gestão de recursos hídricos. Os rios brasileiros são federais ou estaduais – não existem rios municipais. Cabe aos estados proteger os rios estaduais e elaborar os planos de bacia hidrográfica, coibindo a ocupação das nascentes, impedindo que sejam poluídos e cobrando pelas outorgas de uso das águas. Ao mesmo tempo, as águas subterrâneas, que abastecem muitas cidades brasileiras, são estaduais, e sua exploração precisa ser controlada.
No tocante à habitação, mais que a provisão de moradia, as políticas estaduais devem apoiar os municípios no estabelecimento de programas eficientes e integrados à política urbana. Um bom exemplo é o Cidade Legal, do estado de São Paulo, que oferece suporte para a implementação de programas municipais de regularização fundiária.
Outra política estadual que afeta diretamente a política urbana é a proteção do patrimônio cultural. Em lugar de apenas tombar edificações isoladas, é preciso proteger, ocupar e promover a exploração econômica de conjuntos urbanos dotados de valor histórico e paisagístico. Uma iniciativa importante nesse sentido é o Programa Nosso Centro, do governo do Maranhão, que busca preservar e renovar o Centro Histórico de São Luís.
O apoio à gestão municipal é a política estadual mais urgente a ser desenvolvida. A criação de órgãos estaduais incumbidos de apoiar tecnicamente os municípios é fundamental e pode se inspirar em experiências passadas como a do Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal – Fundação Prefeito Faria Lima (Cepam), que assessorou os municípios paulistas entre 1967 e 2015, ou atuais, como o Paranacidade, que apoia os municípios paranaenses desde 1996.
As cidades são importantes demais para ser assunto apenas dos municípios e da União. É chegada a hora de os estados compartilharem essa responsabilidade.
Coordenador Adjunto do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e doutor em direito do Estado
Coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e doutor em Direito Econômico e Financeiro
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