Raimundo Esmeraldino Silva, ativista e pescador artesanal de Cova da Onça Foto: Arquivo Pessoal
“Querem tornar a gente insignificante para ficar com o que é nosso”
O relato de um pescador sobre a instalação de um megaprojeto turístico num paraíso ambiental
Com piscinas naturais de águas cristalinas e localizada a 85 km da capital Salvador, a Ilha de Boipeba, no município de Cairu, maior cidade-arquipélago do Brasil, é um destino muito procurado por turistas que vão à Bahia. No mês de março deste ano, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) do estado da Bahia autorizou a construção de um megaempreendimento turístico-mobiliário, que inclui 69 lotes residenciais, aeródromo, pousadas e píer no Sul da ilha, na região conhecida como Ponta dos Castelhanos. Esta semana, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), do governo federal, suspendeu temporariamente a autorização. O terreno da construção é propriedade da empresa Mangaba Cultivo de Coco Ltda – dentre os sócios, estão José Roberto Marinho, herdeiro do Grupo Globo, e Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central. A área que pode vir a ser devastada para a construção está numa Área de Proteção Ambiental (APA). Em nota, o Inema afirmou que seguirá a determinação da SPU e que “o empreendimento foi licenciado com base na lei, seguindo o Código Florestal e atendendo a Lei da Mata Atlântica, os marcos legais e as resoluções federais e estaduais”. A Mangaba Cultivo de Coco Ltda afirmou que “sempre primou pelo cumprimento irrestrito da legislação e do devido processo legal”. Em nota, disse que “trabalha para promover impactos positivos para a comunidade, comprometida com o desenvolvimento sustentável da região. O projeto atende a todos os requisitos legais e regulamentares, e o Inema definiu condicionantes que buscam evitar qualquer inadequação ou prejuízo ambiental”.
Enquanto a situação não se resolve, os pescadores da região são os mais prejudicados. Raimundo Esmeraldino Silva – ou Raimundo Siri, como é conhecido –, ativista e pescador artesanal de Cova da Onça, comunidade da ilha, conta como o projeto vem afetando a região.
Em depoimento a Lianne Ceará e Francielle Nonato
A única lembrança que tenho do meu pai é o mar e a pesca. Ele me ensinou a pescar. Pegava na minha mão para irmos para o mar pescar. Quando eu tinha uns 10 anos, ele se separou da minha mãe. Só o vi depois de anos, de muito longe, sem sequer nos falarmos. Mas o meu respeito pelo mar ficou. Nasci e cresci em Cova da Onça, uma comunidade na Ilha de Boipeba, esse paraíso que fica na Bahia. Meu pai era pescador, minha mãe, agricultora e minha avó materna agregava todas essas funções: além de agricultora e pescadora, era parteira.
Carrego “Siri” como apelido desde a minha juventude, porque pesquei um siri com uma cor diferente, os colegas me apelidaram assim. Casei, tive filhos e netos, mas ainda hoje eu vivo da pesca, quase todos os dias vou ao mar aberto. Dependendo do tempo, acordo às três da manhã e fico lá até a hora que estiver bom. Com o mar, aprendi sobre os ventos, a lua, as marés e nunca precisei de GPS para trabalhar. Se falta bateria, essas tecnologias não funcionam, com o saber não é dessa forma. Consigo identificar um pesqueiro, um lugar bom para pescar, a partir da observação dos morros da ilha e das ondas. A pesca artesanal é isso: uma tradição que você aprende com seus ancestrais e com a natureza. Algumas iniciativas e pessoas têm interesses no território desse nosso paraíso para além do que é legal – por isso hoje também me envolvo em movimentos de defesa do nosso território e dos nossos direitos.
Sou um dos coordenadores da Associação de Pescadores e Pescadoras de Cova da Onça e também militante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil. Muitas vezes nos envolvemos com essas lutas pela paixão ou pela razão. No meu caso, foram as duas coisas. Em 2007, nosso município ingressou na concessão da Petrobras para explorar gás natural. Eu ainda não me envolvia com esses movimentos. Com essa concessão, passamos a refletir sobre a atuação de compensação ambiental. Surgiram os primeiros contrapontos, perseguições e, consequentemente, a resistência. Ficava questionando: “Por que nossas crianças continuam estudando e se formam sem saber ler e escrever?”, “por que esses royalties não chegam na gente?” Daí comecei a me envolver com essa luta porque percebi que dependia disso para nosso viver em Cova da Onça ser digno e não só um sobreviver.
Por causa dessas lutas, já fui ameaçado algumas vezes. Eu e minha mulher tínhamos um roçado, com uma pequena plantação e, um dia, quando cheguei lá, estava tudo destruído. Tive que me resguardar, mas não deixo de lutar. Minha luta mais recente é contra esse condomínio privado de luxo que querem construir em Cova da Onça, e que vai ocupar parte de uma Área de Preservação Ambiental da Ilha, domínio da União por lei. Aqueles que são a favor dizem que o empreendimento vai trazer o desenvolvimento que a Ilha precisa.
Nossa comunidade tem três fontes de renda relevantes: pesca da mariscagem, extrativismo das frutas mangaba, caju e outras, e também cito o turismo ecológico de base comunitária, aquele que respeita o nosso lugar. Quando a pescaria está num dia bom, a gente pesca para se alimentar e para vender, porque também precisamos comercializar. A minha fonte de renda é a pescaria e uma pequena roça dentro do território. Sempre preservamos o meio ambiente, porque a gente precisa dele saudável para viver e conviver. Enfrentar o mar aberto e estar disposto a enfrentar isso todos os dias é uma escolha que não canso de fazer, por mim e pelo coletivo. Já saí daqui quando jovem para tentar oportunidade de estudo e emprego em outra cidade, mas foi como se eu recebesse um recado de um ancestral que dizia “você vai, mas volta, porque vou precisar de você aqui”.
Cova da Onça é o meu lugar no mundo, um lugar que tudo me deu e tudo me dá. Boipeba é uma ilha turística e Cova está se desenvolvendo sim, porque aqui há uma riqueza sem fim vinda das comunidades tradicionais, pescadores artesanais e quilombolas, a gente tem tudo para ter o desenvolvimento de forma sustentável. Um pescador que faz um restaurante na praia e vende o peixe que pesca, uma artesã que vende seu artesanato para o turista, para mim, isso sim é o desenvolvimento de que a gente precisa.
No início de todo esse projeto absurdo, anos atrás, ficamos sabendo que os empresários chegaram até a pagar indenização para alguns donos de barracas de praia localizadas na Ponta dos Castelhanos, para que eles saíssem de lá. Para os barraqueiros que decidiram ficar, restou a nascente do Rio Catu entupida por eles, onde logo em seguida surgiu muito óleo diesel queimado, prejudicando vários pescadores. Que desenvolvimento sustentável é esse? Também lá atrás, em 2008, fomos surpreendidos com o Plano de Desenvolvimento Estratégico Cairu 2030, que nos excluiu do processo de discussão e territorialmente falando. Para esse projeto, é como se nós não existíssemos. No Cairu 2030, comparam o nosso município ao Principado de Mônaco e, para mim, isso exemplifica a invisibilidade que a comunidade tem. O ano de 2030 é logo ali e agora estão fazendo de tudo para dar andamento a um desenvolvimento que não tem nada de sustentável.
Depois de entender que isso tudo é um jogo de tabuleiro, fomos juntando as peças. E, como se não bastasse, as tais fake news também chegam aqui. Órgãos públicos começaram a desqualificar a atividade pesqueira na região, com o discurso de que as condições não permitiam mais pescar. Inventaram até que identificaram um peixe de espécie rara, que até hoje nenhum pescador encontrou em suas redes. Além de ser vergonhosa, essas atitudes são perigosas porque muitos dos nossos companheiros e companheiras podem ficar desanimados, muitas vezes se afastam da pesca, vão emprestar ou vender mão de obra para algum empresário ali por perto e, assim, perdem o direito previdenciário trabalhista que a pesca garante. É uma estratégia sorrateira para que a gente se sinta menos produtivo. Querem tornar a gente insignificante, ficar com o que é nosso, para a gente sair da comunidade e morar nas periferias de grandes cidades.
Caso esse empreendimento venha a ser instalado em cima da nossa comunidade, como prevê o projeto, ele vai causar um impacto irreversível nas nossas vidas, no bioma e no meio ambiente da Ilha. É muito preocupante. Além disso, o projeto é previsto para ser realizado na área de restinga, vegetação de mangabas, que corre o risco de ser eliminada do planeta, do Brasil e, claro, da nossa comunidade. O impacto afeta todas as outras comunidades na ilha. E também as comunidades de ilhas vizinhas.
O assunto do empreendimento imobiliário ganhou força no Brasil agora, mas, na verdade, aqui em Boipeba, ele já ronda há mais de dez anos. Fico pensando no que mais está por vir e no que são capazes de fazer para conseguirem dar andamento a esse absurdo. Nós somos muitos, mas muitos de nós têm medo. A empresa responsável carrega “mangaba” e “coco” no nome, dois dos cultivos mais tradicionais daqui, mas ao invés de respeitar nossas tradições, querem passar por cima delas sem ter sequer plantado um único pé de coco ou de mangaba.
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