Ilustração de Paula Cardoso
Quilometragem extra na pandemia
Na Câmara, um em cada cinco deputados aumentou gastos com transportes durante o isolamento social – muitos alugando carros de empresas de amigos e aliados
Juninho do Pneu (DEM-RJ) despontou profissionalmente vendendo pneus. Ao se lançar na política, trocou o nome de batismo – Rogério Teixeira Júnior – pelo apelido e se elegeu vereador por Nova Iguaçu, cidade onde nasceu, na Baixada Fluminense. Cumpriu mandato de 2013 a 2018, até que, aos 41 anos, se elegeu deputado federal. Mas, mesmo estando longe, em Brasília, Juninho continuou nutrindo uma relação umbilical com o ramo de automóveis no Rio de Janeiro. Desde o começo da pandemia, empresas ligadas à sua família e a ex-assessores receberam ao menos 234 mil reais de dinheiro público prestando serviço de aluguel de carros a deputados federais. O próprio Juninho destinou 42,5 mil reais de cota parlamentar para a Brasvil, empresa de um ex-assessor da Câmara de Nova Iguaçu. Com isso, o deputado conseguiu gastar mais dinheiro com aluguel de carros e combustível este ano, durante a quarentena, do que no mesmo período do ano passado. Mesmo sem comícios, convenções partidárias ou o corpo a corpo da política. E Juninho não foi o único.
Levantamento feito pela piauí mostra que, no período de maior isolamento social, de março até maio, cem deputados federais aumentaram gastos de gabinete com aluguel de veículos, combustível e táxis na comparação com o mesmo período de 2019. Cem deputados são um quinto da Câmara, mas, juntos, gastaram o equivalente a um terço: 2,3 milhões de reais. O aumento, porém, foi compensado pelos demais quatrocentos deputados. Ao todo, de março a maio, a Câmara teve uma diminuição esperada desse tipo de despesas. Foram gastos 7,9 milhões de reais este ano, contra 11,8 milhões de reais no mesmo período do ano passado. A verba usada em hotéis despencou, passando de 480,5 mil reais para 104 mil reais.
Dos vinte deputados que mais gastaram com carros e combustível entre março e maio, cinco são do PP, quatro são do PSL e três do MDB. Os demais se dividem entre PL, PSDB, PSC, DEM, PT e PDT. Juninho do Pneu ocupou a oitava posição entre os que mais usaram a verba de gabinete para transporte. O grosso desses valores vem do aluguel de veículos.
A Brasvil, empresa contratada por Juninho, está no nome de Vilmar Rosário, que trabalha como assessor da Presidência da Câmara de Nova Iguaçu. Até 2018, era funcionário direto de Juninho, que presidia a Casa. Naquele ano, quando o então vereador se candidatou a deputado federal, Vilmar fez uma doação de 6,3 mil reais à campanha do então chefe. Investimento que deu frutos: as notas fiscais de Juninho mostram que, de março a julho deste ano, o deputado fechou cinco contratos de 8,5 mil reais cada para alugar um SUV, mês a mês, na loja de seu ex-assessor.
O próprio Juninho é empresário do ramo de locação de carros. É sócio, junto com a mãe, da Júnior de Iguaçu Locações, empresa que tem capital social de 2 milhões de reais, segundo o cadastro da Receita Federal. Seu pai, Rogério Teixeira, é dono de uma empresa quase homônima, a JR Locações. A empresa do pai tem capital muito menor que a do filho (o equivalente a 5%), mas teve a sorte de ser contratada por quatro deputados federais do Rio de Janeiro – dois do PSL, um do DEM e um do PL. Desde março, a JR Locações faturou 120 mil reais em contratos de aluguel de carros. No ano passado, de janeiro a dezembro, foram 146 mil reais com esses mesmos deputados.
O cunhado de Juninho, Denis Visnadi, também participa dos negócios. Além de fazer parte da família Teixeira, Visnadi trabalhou como assessor de Juninho na Câmara de Nova Iguaçu. Suas redes sociais estão repletas de fotos com o deputado, inclusive em Brasília. Ele é dono da Visnadi Construção e Locação de Transporte. A empresa, que fica em Nova Iguaçu, recebeu 22 mil reais de um deputado federal do Mato Grosso do Sul, Loester Trutis (PSL-MS). Os contratos são para aluguel de um carro de abril a julho deste ano, mas na agenda do deputado não constam viagens a Nova Iguaçu. Em 2019, a empresa recebeu 74 mil reais em contratos com a Câmara, dos quais 18 mil foram pagos por Trutis.
Procurada pela piauí, a assessoria de Juninho do Pneu afirmou que “o deputado não conseguiu ficar em quarentena”, porque “percorreu várias cidades atendendo às demandas da população”, e que a Brasvil, empresa de seu ex-assessor, “foi a que apresentou o melhor custo benefício”. Quanto aos negócios de seu pai e seu cunhado, Juninho disse que “não pode responder por contratos de terceiros”. A assessoria do deputado Loester Trutis não retornou os contatos até o fechamento desta reportagem.
Os gastos com cota parlamentar despencaram na Câmara assim que a pandemia chegou de vez ao Brasil. As despesas com carro, combustível, passagens de avião e hospedagem caíram pela metade: de 5,2 milhões, em fevereiro, passaram para 2,6 milhões de reais em abril. A queda era de se esperar, já que, desde o final de março, o Congresso adotou a votação à distância. Deputados e senadores passaram a trabalhar de casa, assim como seus assessores, e as agendas, se não pararam, diminuíram de intensidade.
Uma das despesas que menos caiu proporcionalmente foi a de aluguel de veículos. Diferentemente do que acontece com passagens de avião, adquiridas com as grandes empresas do setor, os contratos para locação de carros muitas vezes são firmados com empresas locais, pequenas e desconhecidas. A fiscalização é pouca ou inexistente, e os critérios para contratação, pouco transparentes. Contratos analisados pela piauí mostram que é comum que deputados escolham empresas que têm vínculo direto com amigos, ex-assessores, aliados políticos e doadores de campanha – padrão que se manteve na pandemia.
É o caso da Locar 1000, cuja sede é uma sala alugada dentro de um prédio comercial em Brasília. A empresa está no nome de Ghislaine Maria de Oliveira Barros e Letícia Barros Novaes da Fonseca – respectivamente, mulher e filha de Joel Novaes da Fonseca, assessor especial do presidente Jair Bolsonaro. Antes de chegar ao Planalto, Fonseca trabalhou como assessor de Jair e Eduardo Bolsonaro na Câmara. Desde o começo do ano, a Locar 1000 faturou 140 mil reais alugando carros para deputados, sendo 97,5 mil reais de março a julho, ou seja, durante a pandemia – mais que os 91,3 mil que ganhou em contratos com deputados no mesmo período do ano passado.
Desde janeiro de 2019, um grupo de nove deputados, quase todos do PSL, pagou 358 mil reais em contratos de aluguel de carros com a Locar 1000. Em janeiro deste ano, a revista Época noticiou que a Locar 1000 recebera repasses de 160 mil reais de deputados bolsonaristas em 2019, dentre eles Eduardo Bolsonaro. O Zero Três fechou, no começo daquele ano, um pequeno contrato de 960 reais com a empresa e desde então não voltou a contratá-la. O mesmo não se pode dizer de seus colegas. O fluxo de dinheiro para a família do assessor de Bolsonaro continuou ao longo de 2020.
A empresa existe desde 2013, mas sua arrecadação na Câmara aumentou significativamente desde que Bolsonaro foi eleito. Em 2017, a empresa obteve 47 mil reais em contratos com deputados. No ano seguinte, foram 90 mil reais. Já em 2019, primeiro ano de governo, esse valor mais que dobrou, chegando a 218 mil reais. Em 2020, de tudo que foi arrecadado pela Locar em contratos com a Câmara, 80% saiu das mãos de cinco deputados bolsonaristas. Os clientes mais assíduos são do núcleo mais próximo ao presidente: Helio Lopes (PSL-RJ), sozinho, fez repasses de 80 mil reais à empresa de Fonseca, enquanto Bia Kicis (PSL-DF) e Vitor Hugo (PSL-GO) repassaram 62,5 mil e 38 mil reais, respectivamente.
A piauí ligou para o telefone registrado pela Locar 1000 na Receita Federal. Quem atendeu foi justamente Fonseca, assessor de Bolsonaro. Ele negou que haja favorecimento à sua família. “Os contratos são com a empresa da minha filha e da minha esposa, não é comigo. É livre concorrência. Não estou batendo nas portas dos gabinetes para oferecer carros, é o funcionário da empresa que faz isso”, afirmou Fonseca. Segundo ele, a empresa é procurada porque oferece os preços mais baixos do mercado. Perguntei por que então os contratos são, em maioria, com deputados aliados de Bolsonaro. “O Bolsonaro já foi de vários partidos e hoje nem é mais do PSL. Não vejo desonestidade nisso de jeito nenhum. A maioria dos deputados sequer sabe que eu existo.” No final de 2018, Bia Kicis postou nas redes sociais uma foto ao lado de Fonseca – “homem de confiança do nosso presidente”.
Em nota enviada à reportagem, a assessoria do deputado Vitor Hugo disse que a Locar 1000 ofereceu “a proposta de melhor preço para o serviço desejado” e que o parlamentar firmou, em novembro de 2019, um contrato de doze meses com a empresa. Além disso, o deputado atribuiu o aumento de seus gastos de gabinete na pandemia à contratação de um carro blindado. Os demais parlamentares não responderam aos pedidos de informação. O espaço segue aberto caso desejem se manifestar.
Casos como esses se desenrolam com pouca ou nenhuma fiscalização. A assessoria de imprensa da Câmara informa que não são permitidos, por norma interna da Casa, gastos de cota parlamentar com empresas na qual o deputado, ou algum de seus parentes até o terceiro grau, ou um servidor da Câmara tenham participação. As notas fiscais, porém, são de responsabilidade de cada parlamentar. Não há vigilância. A Mesa Diretora só se debruça sobre possíveis irregularidades caso elas sejam formalizadas como denúncias.
As regras abrem uma série de brechas. Os casos de Juninho do Pneu e do assessor de Bolsonaro, por exemplo, não podem ser enquadrados em qualquer regra da Câmara. E, como esses, há uma série de outros casos. Durante a pandemia, o deputado federal Santini (PTB-RS) gastou mais de 38 mil reais alugando carros na LH Transportes, empresa que pertence à primeira-dama de Barra do Rio Azul, no Rio Grande do Sul, Rafaela Sette. O prefeito da cidade, Marcelo Arruda, é do mesmo PTB de Santini. No ano passado, foram outros 51 mil reais. Por telefone, Sette disse à piauí que não vê problema em ter sua empresa contratada por um aliado político do marido. “Não vejo [constrangimento]. São coisas bem distintas. Temos uma frota de trinta carros e já trabalhamos para vários órgãos de governo. Hoje temos esses contratos de locação com a Câmara.” Santini afirmou, por meio de sua assessoria, que a LH foi escolhida pelo fato de prestar serviços em Brasília e no Rio Grande do Sul, e que o gabinete do deputado se manteve ativo durante a pandemia.
Já as notas fiscais do deputado Júnior Bozzella (PSL-SP) mostram que, de março a julho deste ano, ele pagou 46,5 mil reais de cota parlamentar à Akta Motors, concessionária que fica na zona Leste de São Paulo. No ano passado inteiro, foram 55,4 mil reais para a Akta, com aluguel de SUVs e carros esportivos. Bozella foi o único deputado federal, nesses dois anos, a contratar a empresa. E foi, também, o único que recebeu doação eleitoral (5 mil reais) do dono da concessionária, o empresário Gustavo Gotfryd, na campanha de 2018. Por meio de nota, o deputado afirmou que recorreu à Akta em busca de um veículo blindado, após ter sofrido ameaças de morte denunciadas por ele em 2019. Segundo Bozzella, são poucas as empresas que oferecem esse serviço. O deputado não explicou, no entanto, sua relação com Gotfryd e se houve intenção de favorecê-lo com verbas públicas.
O deputado Doutor Luizinho (PP-RJ), que, assim como Juninho do Pneu, fez carreira em Nova Iguaçu, pagou 35 mil reais desde março para alugar carros na Gávea Locações. A empresa está no nome de Rafael Licurci, advogado e amigo pessoal do deputado. De 2016 a 2018, quando Luizinho era secretário de Saúde do estado do Rio, Licurci foi nomeado para um cargo comissionado na pasta. Deixou a função em agosto de 2018. Em outubro, dias após Luizinho ter sido eleito deputado federal, Licurci fundou a Gávea Locações. Por meio da empresa, ele embolsou, só no ano passado, mais de 57 mil reais alugando sedans e SUVs para o deputado. Até hoje, ninguém na Câmara, além de Luizinho, contratou a empresa. Procurando por Gávea Locações no Google, não se encontra qualquer registro físico ou digital da loja, cujo endereço remete a uma galeria comercial no Centro do Rio.
À piauí, Doutor Luizinho reconheceu que Licurci é seu amigo, mas disse não ver problema na contratação da empresa. “Não tem nenhuma ilegalidade nisso, as regras da Câmara não proíbem você de contratar um conhecido seu. Ele me ofereceu a locação de veículos e achei que a economicidade era boa. Se não fosse boa eu não teria contratado”, afirmou o deputado. Por e-mail, Licurci disse que sua empresa foi contratada pelos preços e pela qualidade dos carros. Não respondeu sobre o fato de ter sido funcionário de Luizinho.
A deputada Liziane Bayer (PSB-RS), mesmo sendo do Sul, deu 37 mil reais à Nevada Rent a Car, empresa que fica em Guarulhos, São Paulo, e que pertence a Victor Elias Carbone Mudalen, filho do ex-deputado federal Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP). Isso só durante a pandemia. No ano passado, Bayer destinou 94 mil reais à empresa. A deputada é pastora da Igreja Internacional da Graça de Deus, do missionário e empresário R.R Soares. Mudalen pai, além de frequentador da mesma igreja, é amigo e apadrinhado político de Soares, e já esteve ao lado de Bayer em diferentes ocasiões. Procurada, a assessoria da deputada afirmou que ela manteve uma agenda movimentada em Brasília mesmo na pandemia, e que a Nevada Rent a Car oferece preços abaixo da média do mercado. Ela não comentou, porém, seu vínculo com o ex-deputado Mudalen ou o fato de a empresa ficar em Guarulhos. A Nevada, por sua vez, não retornou os contatos da reportagem.
De migalha em migalha, a soma fica grande. Levando em conta só a rede de contratações dos deputados Juninho do Pneu, Santini, Bozzella, Dr. Luizinho, Bayer e dos bolsonaristas da Locar 1000, foram gastos 550 mil reais de dinheiro público, durante os meses da pandemia, em contratos indevidos ou com possível conflito de interesses. Considerando todos os pagamentos de 2019 e 2020, as empresas citadas acima – Brasvil, JR Locações, Visnadi, Locar 1000, LH Locações, Akta Motors, Gávea Locações e Nevada Rent a Car – faturaram mais de 1,6 milhão de reais com a cota parlamentar para aluguel de carros.
A novidade é que, ao menos para a turma de Juninho do Pneu, há mudanças no horizonte. A assessoria da Câmara informou que, a partir do dia 26 de agosto, houve uma mudança na interpretação das regras da Casa, devido a “dúvidas surgidas no processo de reembolso”. Desde então, o nepotismo cruzado também passou a ser vetado nos gastos de cota parlamentar – ou seja, nenhum deputado pode contratar a empresa de parente de até terceiro grau de nenhum deputado. A nova regra, em vigor há pouco mais de duas semanas, não tem efeito retroativo. Juninho e seus familiares escapam à punição pelos contratos já vencidos. Em tese, não poderão repeti-los. Quanto aos demais casos citados na reportagem, estes continuam passando ao largo de qualquer fiscalização.
*
A reportagem foi atualizada às 12h14 do dia 10 de setembro para incluir a resposta da deputada Liziane Bayer (PSB-RS).
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí