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    Ilustração: Carvall

anais do crime

Sangue na pracinha

Facções criminosas ganham braços em cidades pequenas do Norte e Nordeste — onde a taxa de mortes violentas intencionais já é mais que o dobro da registrada no Brasil

Vitória Pilar | 15 mar 2022_13h03
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Quando seu filho mais velho foi preso, a mãe acreditou que tinha sido a maior dor da sua vida. “Descobri que estava errada quando vi ele dentro de um caixão”, contou à piauí a mãe do rapaz — que não será identificada em nome de sua segurança. Empregada doméstica, mãe solo de três garotos, criados com a ajuda das tias, ela lembra quando as primeiras histórias sobre a chegada da facção criminosa Bonde dos 40, à época aliada à facção carioca Comando Vermelho, chegaram aos terrenos de invasão ao redor do bairro Flores, em Timon, no Maranhão. Junto com os boatos, pichações com as assinaturas da facção davam o tom da instalação do grupo na região. O filho ainda estava na escola e, devido a várias reprovações, patinava no ensino fundamental. A chegada da facção na região acabou acompanhando a adolescência do rapaz, que passou a fugir repetidamente da sala de aula. Um dia, o jovem decidiu não ir mais à escola. Na porta de sua mãe, sempre alguma vizinha ou conhecida da família alertava sobre as más companhias com que o jovem era visto. 

Aos 19 anos, o filho mais velho foi preso por envolvimento com o tráfico de drogas e encaminhado ao Complexo Penitenciário de Pedrinhas. Após mais de um ano preso, o jovem foi liberado para a saída temporária de final de ano, mas acabou assassinado com onze tiros. Até hoje, a única informação que sua mãe recebeu foi  que o filho sofreu o que eles chamam de acerto de contas com o crime — uma história cada vez mais comum em Timon.

Com pouco mais de 170 mil habitantes, a cidade fica a 430 km da capital maranhense. É muito mais próxima da capital piauiense, Teresina, da qual é separada apenas pelo Rio Parnaíba. À margem de Teresina, longe de São Luís, Timon foi crescendo sem muito planejamento. Vive basicamente de comércio e serve como cidade-dormitório para pessoas que trabalham em Teresina. Enquanto comércio e casas se formavam próximo ao centro comercial da pequena cidade maranhense, famílias mais pobres foram sendo empurradas para os terrenos de invasão, mais afastados do Centro. 

O aglomerado de comunidades nas favelas que iam se formando a partir de 2010 tornava essas regiões, como o bairro Flores, um habitat propício para a instalação dos grupos criminosos: um bairro carente desde o seu nascimento, onde a pobreza e a juventude chamam a atenção dos “recrutadores” do tráfico de drogas. Em busca de expandir seus negócios, as facções do Sudeste acharam nessas cidades espaço para crescer — repetindo os confrontos em escala local. Em Timon, a disputa ficou entre o Bonde dos 40, aliado do Comando Vermelho, e seus rivais, ligados ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Pouco a pouco, e quanto mais longe do movimento central da cidade e da segurança pública, vilas e bairros periféricos foram sendo repartidos entre os dois grupos para alimentar a rede de tráfico na cidade. 

 

Timon integra um grupo de cidades brasileiras que têm atraído a atenção dos especialistas: os municípios com mais de 100 mil habitantes com taxas de morte violentas intencionais superiores à média nacional, de acordo com os dados do 15° Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em 2020, enquanto a taxa média brasileira chegava a 23,6 por 100 mil habitantes, Timon alcançava mais que o dobro, com 56,4. Os números são calculados com base nos casos de homicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora. A taxa por 100 mil habitantes permite comparar a relação entre mortes e população em lugares diferentes do país.

Ao todo, dos 326 municípios com mais de 100 mil habitantes, 136 municípios têm mortes violentas acima da média nacional. Dos cinco estados com mais cidades na lista, quatro estão nas regiões Norte e Nordeste. São eles: Bahia (17 cidades), Pernambuco (14), Pará (13) e Maranhão (8). Ao todo, mais da metade dessas cidades também superaram o dobro da média nacional. 

Enquanto as taxas de mortes violentas caíram em 2020 no país, nos estados do Norte e Nordeste elas subiram. Os nove estados nordestinos registraram alta: Alagoas (13.8%), Bahia (11.2%), Ceará (75,14%), Maranhão (30,2%), Paraíba (23,1%), Pernambuco (7,2%), Piauí (20,1%), Rio Grande do Norte (5,5%) e Sergipe (1,2%). Durante o primeiro semestre deste ano, o Ceará surpreendeu, quando as mortes subiram 102% em relação ao ano anterior no mesmo período — um dos fatores para isso foi a greve dos policiais no Carnaval de 2020, quando o estado chegou a 107 mortes em quatro dias, mais de uma por hora. Em 2021, a tendência de alta nas mortes violentas intencionais se manteve apenas na região Norte do país: aumento de 10%, enquanto no país houve queda de 7%. Os números são do Monitor da Violência, uma parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o G1.

Os dados refletem aquilo que os pesquisadores em segurança pública têm observado acerca da interiorização da violência: enquanto homicídios e crimes violentos caem em áreas urbanas mais populosas, municípios rurais, intermediários e de menor porte vivem o aumento das taxas. Isso se deve ao fato de, na última década, o crime organizado em facções criminosas, com origens no Rio de Janeiro e em São Paulo, ter se expandido por outras regiões. E não apenas nas capitais — agora as facções também são uma realidade nas cidades médias e pequenas do Norte e Nordeste.

 

Longe das capitais e das cidades grandes, onde os investimentos em segurança pública são maiores, os municípios menores se tornam cenário confortável para a instalação de grupos criminosos, aponta Luiz Fábio Paiva, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), vinculado à Universidade Federal do Ceará (UFC). “O tráfico ligado às facções acaba acompanhando outros crimes, entre eles roubos e assassinatos”, aponta Paiva. “Como exemplo, cidades pequenas no Nordeste que aumentaram seu sistema bancário apresentaram maior número de assaltos pela fragilidade na segurança. Essas ações também estão relacionadas ao crime organizado”, complementa. 

A migração da violência nas duas regiões também tem evidenciado a conexão com rotas ligadas ao mercado do tráfico de droga internacional. Os estados do Norte que fazem fronteira com países como Bolívia, Colômbia e Peru recebem a droga e fazem ponte com os mercados consumidores, comumente países da Europa que recebem o material diretamente pelas rotas marítimas do litoral nordestino. E cidades amazônicas fronteiriças têm vivido intensamente o avanço das facções. O caminho da droga coloca o Brasil como um hub, um ponto que concentra conexões e redistribui funções no comércio ilegal de drogas, explica o coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, David Marques. 

Nos estados que integram a Amazônia Legal, a disputa pela terra também ajuda a explicar o aumento do número de mortes violentas. Conflitos fundiários acabam resultando em mortes violentas — homens com idades entre 18 e 29 anos são as principais vítimas. “A violência é influenciada por diversos fatores, incluindo vulnerabilidade socioeconômica”, complementa Marques. “Somado a isso, também é possível afirmar que a alta disponibilidade de armamento tem provocado esse aumento de violência. Com mais armas à disposição, os cenários nas cidades tendem a ficar mais violentos.”, pontua. 

Enquanto isso, em Timon, a mãe do rapaz assassinado na guerra das facções disputa com o tráfico o futuro dos outros dois filhos. A família mora no mesmo bairro, onde a chegada de casas financiadas de programas de moradia e pequenos condomínios residenciais contrasta com as casas levantadas com madeira e barro, como também as poucas construções de alvenaria — ainda inacabadas. Nos últimos anos, a chegada desses novos moradores tem trazido algumas inovações, como uma Unidade Básica de Saúde e a implantação do Complexo Cultural Maria Socorro de Macêdo Claudino. O complexo, que vem sendo construído há quase cinco anos pelo governo do estado maranhense, ainda não foi inaugurado por causa da pandemia, mas já começou a oferecer algumas atividades. A promessa é envolver a juventude da região em cursos e projetos culturais para que eles possam se engajar em programas sociais do estado e do município. Até lá, enquanto a vida não melhora, a mãe se esforça para manter os outros filhos estudando. E o que ela mais teme é que as escolhas deles sejam as mesmas do irmão mais velho.

 

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