O escritor Julio Ludemir em um debate na Rocinha, durante a Flup de 2016 FOTO: ELISÂNGELA LEITE/FLUP
Sem Lei Rouanet para escritores da favela
No aniversário de dez anos da Flup – a Festa Literária das Periferias –, idealizador do evento relata como governo Bolsonaro tem emperrado liberação de recursos
Criada em 2012 no Rio de Janeiro, a Festa Literária das Periferias (Flup) chega este ano à sua décima edição. O evento, realizado em uma favela diferente a cada edição, forma novos escritores e promove debates com autores famosos em torno de temas como feminismo e negritude. Neste ano, a Flup receberá indígenas de vários países das Américas para um torneio inédito de slam – uma disputa em que cada participante declama seus poemas em voz alta e é julgado por uma banca. O festival acontecerá entre os dias 30 de outubro e 8 de novembro. A menos de quinze dias do evento, no entanto, a Flup ainda não conseguiu autorização do governo federal para captar recursos via Lei Rouanet, uma ferramenta fundamental para viabilizar a festa. O processo de financiamento está parado há nove meses, sem explicação, na Secretaria de Cultura. O escritor Julio Ludemir, um dos criadores da Flup, conta como tem se virado para garantir que o festival aconteça este ano.
Em depoimento a Luigi Mazza
Tenho 61 anos de idade e uma história de vida meio complicada. Sou filho de migrantes pernambucanos que vieram trabalhar no Rio de Janeiro e depois voltaram para o Recife. Cresci em Pernambuco e, aos dezenove anos de idade, vim para o Rio. Até os trinta, vivi em torno da geração de músicos nordestinos que tentaram a sorte por aqui e que por muito tempo se deram mal, como o Lenine. Foi uma época dura. Trabalhei como repórter no Jornal do Brasil, depois me perdi, larguei o emprego e virei drogado. Cheguei a dormir na rua. Só saí dessa situação aos 31 anos, quando tive minha filha. Passei dez anos só cuidando dela, enquanto trabalhava como tradutor de manuais de informática, um emprego insuportável. Aos quarenta anos, retomei minha vida artística. Desde então, sou escritor.
Ganhei projeção escrevendo livros de não ficção, principalmente sobre violência urbana. Depois caí num ostracismo e voltei para Pernambuco com uma mão na frente e outra atrás, sem saber o que faria dali em diante. Foi quando, em 2008, meu amigo Marcus Vinícius Faustini me convidou para trabalhar com ele na Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu, durante a gestão do então prefeito Lindbergh Farias (PT-RJ). Aceitei e me tornei responsável por um projeto chamado Jovem Repórter. Ali nasceu o embrião da Flup.
O projeto era voltado para jovens do ensino médio. Lidava com quatrocentos meninos e meninas da periferia, que eram estimulados a escrever sobre as políticas públicas que estavam sendo implantadas na cidade. Olhando para eles, percebi muito claramente que estava diante do que, a meu ver, foi a primeira geração de jovens periféricos escolarizados do Brasil. Era uma geração pré-cotas. Isso me impressionou muito. Eu estava conhecendo um novo fenômeno, uma juventude nova, que vivia um grande impasse: seus pais queriam que eles trabalhassem, que ganhassem dinheiro logo, enquanto eles, por sua vez, sonhavam com algum tipo de mobilidade social. E a literatura tinha grande importância nesse contexto.
Nessa época, eu era um frequentador entusiasmado da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, e foi ali que vivi um momento crucial. Na edição de 2011 da festa, enquanto caminhava pela cidade, me deparei com um dos jovens do nosso projeto de Nova Iguaçu. Ele estava num sufoco impressionante. Sentia frio, fome, e não sabia nem como acessar o evento. Naquele instante, tive uma epifania: aquela nova juventude escolarizada, em vez de ficar perdida num ambiente que não era o dela, poderia e deveria ter um festival próprio.
Voltei para Nova Iguaçu e, chegando lá, sugeri a ideia ao meu chefe, Ecio Salles. O Ecio talvez tenha sido um dos primeiros intelectuais do Afroreggae e tinha passado por quase todas as grandes ONGs cariocas. Ele se entusiasmou. Levamos essa conversa até a Heloísa Buarque de Hollanda, que era muito próxima do Ecio, e ao Luiz Eduardo Soares. Todos toparam a ideia. Juntos, nós quatro começamos a arquitetar a primeira Flup.
Nossa primeira edição aconteceu no Morro dos Prazeres, no bairro de Santa Teresa. Desde o começo decidimos que, mais do que uma festa, a Flup seria um processo de formação de escritores. Na noite em que começamos a nossa primeira formação, em 3 abril de 2012, lotamos um casarão na entrada da favela. Havia 150 interessados. Gente vinda das mais diversas periferias: Vila Vintém, Antares, Cidade de Deus, Vidigal… Foi uma noite impressionante e muito bonita. Desde então, repetimos a dose todos os anos. Já publicamos 23 livros que resultaram desses processos de formação. O 24º está por vir. Alguns autores, como Jessé Andarilho, Ana Paula Lisboa e Geovani Martins, estouraram.
Naquele momento, por um equívoco meu, demos à festa o nome de Flupp – Festa Literária Internacional das UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora]. Fomos muito bem recebidos pela intelectualidade carioca. Naquela época, todo mundo queria fazer projeto com UPP. Era uma política de segurança popular entre a classe média e os patrocinadores. Deu certo, o festival nasceu grande, com muita divulgação, e teve sua primeira edição em 2012. Mas logo percebemos nosso erro. O público que nos interessava, os jovens escolarizados da periferia, foram os primeiros a criticar o projeto das UPPs. Não captamos isso naquele momento. No segundo ano, quando esse problema ficou evidente, trocamos de nome.
Estamos sempre evoluindo. Em 2014, aconteceu uma coisa fundamental em nossas vidas: conhecemos o poetry slam, um torneio de poesia em que os participantes leem seus textos em voz alta. Aquilo entrou como uma bomba e reinventou nosso festival. Naquele ano, formamos uma plateia só com alunos das escolas públicas do Rio, e eles enlouqueceram com aquilo. Vibravam como se fosse gol do Flamengo. Ficaram maravilhados com uma poeta nigeriana que falou de violência contra a mulher e com um poeta do Reino Unido, gay e negro, falando de sua vida sexual. Chegamos a ter um torneio de slam em sete idiomas.
Já fizemos a Flup no Vidigal, na Mangueira, em Vigário Geral e numa série de outros lugares. A edição deste ano será, pela segunda vez, no Morro da Babilônia, onde moro desde 2013. No ano passado, apesar da pandemia, fizemos uma das edições mais maduras e relevantes da Flup até hoje, e tudo de maneira virtual. Mas agora, às vésperas do nosso aniversário de dez anos, a situação ficou complicada como nunca antes.
Para a turma do governo Bolsonaro, nós somos viados, comunistas e maconheiros. Sempre foi assim. Acontece que, até o ano passado, eles não sabiam fechar a torneira de recursos para a cultura. Neste ano eles aprenderam. No dia 29 de janeiro de 2021, consegui obter o meu Pronac – que é o número que se recebe ao inscrever um projeto na Lei Rouanet. Esse número precisa ser homologado pela Secretaria de Cultura, mas, desde então, a equipe do secretário Mário Frias está sentada em cima do nosso processo. A nossa papelada está simplesmente parada na mesa do senhor André Porciúncula, braço direito do Frias.
Passei os últimos nove meses numa peregrinação para conseguir liberar esse dinheiro. Basta eles assinarem. Já fui falar com o Arthur Lira (presidente da Câmara dos Deputados), já fui falar com a Flávia Arruda (ministra-chefe da Secretaria de Governo). Mas, até agora, nada. Isso não está acontecendo só conosco. É um projeto de destruição da cultura.
O Itaú e a Ternium, nossos principais patrocinadores este ano, já se comprometeram em nos financiar, mas não podem depositar um centavo enquanto a Secretaria não homologar nosso processo para que a gente possa receber patrocínio deles pela Lei Rouanet. Só então a Flup terá uma conta bancária destinada a receber esses recursos, que são algumas centenas de milhares de reais. Outros patrocinadores tradicionais, como o Atacadão, só discutem financiamento quando já existe uma conta.
Fazer um evento desse porte é muito caro. Ainda mais um evento como o nosso, que não se resume à festa em si: ele percorre o ano inteiro, com os processos de formação que duram meses e culminam no festival. No ano passado, a pandemia barateou a nossa logística, já que foi tudo virtual. Este ano, porém, a Flup vai ser mezzo virtual, mezzo presencial, então é preciso ter bala na agulha. Temos que arcar com a viagem e a hospedagem de muitos escritores, sem contar os gastos com som, locação e todo o resto.
Até agora, estamos dando conta dos gastos. Se haverá impacto mais à frente, ainda não sei dizer. Por enquanto, estou gastando o dinheiro de reserva que tínhamos do ano passado, antecipando recursos de uma parceria com a Ford. Só assim para poder fazer a festa, porque o torniquete está totalmente apertado. Estamos estrangulados financeiramente. O jeito tem sido recorrer mais uma vez às mágicas da parceria com empresas, em que dou a ideia, e o pessoal paga a conta. É uma expertise minha. Sou um mendigo profissional.
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