Ilustração de Paula Cardoso
Sem verba para antifascistas
Como a Funarte citou a glória de Deus para negar financiamento a um festival de jazz que, no Facebook, se declarou a favor da democracia
Parágrafos de um juridiquês supostamente técnico salpicados de supostas citações de Bach, Schopenhauer, canto gregoriano em latim (“Da pacem, Domine, in diebus nostris…“), um poema de Friedrich Schiller atribuído a Beethoven em alemão original e um fragmento do diálogo entre Sócrates e Glauco extraído d’A República de Platão. A primeira reação do produtor executivo Tiago Tao diante do parecer desfavorável da Fundação Nacional de Artes (Funarte) à realização do Festival de Jazz do Capão foi de espanto. Tao, 40, que havia inscrito o projeto, só acreditou no conteúdo porque o papel estava timbrado, assinado e disponível no site do órgão. Se não, duvidaria do que tinha acabado de ler.
“O objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”, escreveu Ronaldo Daniel Gomes, parecerista do documento e então assessor técnico da presidência da Funarte, atribuindo as aspas ao compositor alemão Johann Sebastian Bach, como consta em sites tipo O Pensador, frasesfamosas.com e asmelhoresfrases.com. A frase ajudou a embasar a justificativa de Gomes negando a captação de recursos via Lei Rouanet ao evento que ocorre desde 2010 no Vale do Capão, distrito do município de Palmeiras, na região da Chapada Diamantina, na Bahia.
O parecer, datado de 25 de junho, segue justificando a negativa de apoio ao festival e cita uma postagem feita pela página oficial do evento no Facebook. Na publicação, realizada no dia 1º de junho de 2020, há uma imagem declarando o evento como “antifascista e pela democracia”, além do seguinte texto: “Não podemos aceitar o fascismo, o racismo e nenhuma forma de opressão e preconceito.” “Localizamos uma postagem do dia 1º de junho de 2020, com uma imagem, contendo um ‘slogan’ para ‘divulgação’, com a denominação de Festival Jazz do Capão, na plataforma Facebook, a qual complementou os fundamentos para emissão deste parecer técnico. Para tanto printamos a imagem e mesma foi encaminhada para à Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura” — os erros de português constam no documento original do parecer.
Gomes segue afirmando que “por inspiração no canto gregoriano, a Música pode ser vista como uma Arte Divina, onde as vozes em união se direcionam a Deus” e que “a Arte é tão singular que pode ser associada ao Criador”. Conclui pela rejeição do projeto, por entender que ele traria “desvio de objeto, risco à malversação do recurso público incentivado com propositura de indevido uso do mesmo”. Gomes foi exonerado no dia 1º de julho, uma semana depois de assinar o documento. Segundo a Funarte, o desligamento ocorreu para uma “reestruturação do órgão”.
O parecer também tem a assinatura de Marcelo Nery Costa, diretor-geral e presidente substituto da Funarte. Nomeado para o cargo pelo general Luiz Eduardo Ramos, Costa foi assessor no Escritório de Governança do Legado Olímpico, criado para gerir a estrutura construída para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016. Em conversa com a piauí, Nery afirmou que, apesar de assinar o documento, o parecerista teve autonomia na elaboração do documento. “Eu não entro no mérito do parecer, porque quando houver o recurso, eu que vou julgar, entende? Então a gente não mistura”, justificou. Sem dizer se concorda ou não com o conteúdo do parecer, ele admitiu que a justificativa usada “não é uma coisa muito comum, né?”.
Depois do parecer negativo, caberá à Secretaria de Cultura o veredito final. No dia 12 de julho, o secretário Mario Frias postou no Twitter: “Enquanto eu for secretário especial da Cultura ela será resgatada desse sequestro político/ideológico.” O secretário nacional de Incentivo e Fomento à Cultura e ex-policial militar André Porciuncula escreveu: “Quer ser antifascista, antitaxista ou anti qualquer outro ista, não será com os recursos destinados às ações exclusivamente culturais. Chega do desvio de objeto nos projetos”, postou, uma hora antes de Frias.
Na semana passada, Porciuncula virou notícia após autorizar o humorista Dedé Santana, bolsonarista declarado, a captar 1,2 milhões de reais em patrocínios pela Lei Rouanet. O ex-trapalhão recebeu autorização para captar 246.732,48 reais a mais do que o solicitado para um projeto de circo itinerante.
Ainda em conversa com a piauí, Costa admitiu que é praxe que os pareceristas consultem as redes sociais dos proponentes, mas que o apoio ou a oposição ao governo vigente não são determinantes para aprovação ou recusa de um projeto. “De maneira alguma, nós não temos essa ideologia e nem temos a instrução para agir dessa forma. Isso foi responsabilidade mesmo do coordenador. Ele que resolveu fazer esse parecer assim, fora do comum”, argumentou. A piauí tentou contato com Ronaldo Daniel Gomes, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
A piauí ouviu a opinião de dois advogados a respeito do parecer. O primeiro deles, Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, acredita que ele não cumpre o dever de fundamentar a decisão que sugere. “Não dá para identificar exatamente qual é o desvio que ele enxerga na obra”, atesta. Segundo ele, a “impressão” que fica é a de que tudo que não seja algo alinhado a canto gregoriano, à música religiosa ou à música barroca seria um desvio do que a verdadeira música seria e, portanto, “seria a aplicação com o desvio de finalidade”. “O que, evidentemente, não faz nenhum sentido”, completa.
Se o que motivou a rejeição do parecer foi a postagem de antifacista, acredita Mafei, a Funarte deixa um recado: o Estado apoia ou não um evento a partir da posição política de quem o promove. “E isso não está de acordo com a impessoalidade que a constituição exige na aplicação de recursos públicos e na gestão da administração pública em geral.”
O também professor da Faculdade de Direito da USP Conrado Hübner Mendes afirma que o parecer comete duas violações graves: a primeira delas à liberdade de expressão e de pensamento; e a segunda o direito à impessoalidade, ao fundamentar uma decisão pública com base numa censura ideológica. “De todo modo, dá pra se extrair duas razões dessa bagunça: jazz não é música; e o festival se ‘macula’ ao se associar ao antifascismo”, brinca. A decisão, que pode ser questionada por meio de uma ação judicial, “no sentido nao jurídico do termo, abre um precedente gravíssimo de arbitrariedade e discriminação na política pública de fomento às artes”.
O Festival de Jazz aconteceu pela primeira vez em 2010. Nos anos de 2012, 2016 e 2020, não saiu do papel. Nas duas primeiras vezes, por dificuldades no orçamento. Na última, pelas restrições da pandemia. Seu custo total é estimado em aproximadamente 250 mil reais. Há três anos, a maior parte dos recursos, 195 mil reais, é depositada via Fundo de Cultura da Bahia, já que o Festival de Jazz do Capão está no calendário oficial da Secretaria de Cultura da Bahia. A captação via Lei Rouanet serve para complementar os recursos. A lei, de 1991, permite que empresas repassem verbas a eventos com isenção de impostos, desde que o valor seja redirecionado à realização de atividades culturais.
O pedido de captação de recursos foi feito em agosto do ano passado, quando não houve Festival, devido à pandemia de Covid-19. Desde então, o produtor Tiago Tao visitava, pelo menos duas vezes por mês, o site da Funarte para acompanhar o andamento da inscrição. No mês de março deste ano, o órgão chegou a pedir mais informações sobre o evento, que pleiteava 147 mil reais. Perguntava como funcionaria a remuneração dos músicos que fariam um workshop para a comunidade local. O produtor respondeu e continuou à espera.
Como o Festival já havia sido contemplado pela Lei Rouanet nos três anos anteriores, sem complicações, os proponentes supunham uma resposta positiva. Em todas as vezes em que inscreveram o projeto, a análise técnica durou dois meses e não fazia referência a Deus, Bach ou Schopenhauer – citado no parecer com a seguinte frase: “A música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende.” Até que, na noite de 25 de junho, Tao entrou no sistema e viu o parecer contrário. Ele ligou para o idealizador e curador do evento, Rowney Scott, 56, para discutir o ocorrido. “Artisticamente, o festival é uma referência. Tecnicamente, estava correto e bem escrito. Ideologicamente… Eles foram procurar algo, que foi uma postagem em que a gente nem cita o governo”, defende Tao.
A nona edição do festival estava prevista para ocorrer no quintal do sítio do curador do evento, Rowney Scott. Ele fala assim, no passado, pois o parecer contrário da Funarte pode significar a não realização do evento. “Seria um festival online, gravado, masterizado, e disponibilizado na internet, com um cenário bacana, imagens áreas, tudo que a gente fazia em relação ao presencial”, compartilha Scott. As atrações ainda não estavam definidas, mas, como sempre, incluiriam duas apresentações locais. “Estávamos pensando também em chamar uma atração internacional, que gravaria de lá do estúdio dele mesmo”, complementa.
O Festival de Jazz do Capão já faz parte da tradição local. Na primeira edição, muitos nativos se assustaram com a dimensão do evento. O palco tinha sido trazido de Salvador, a 500 km de distância, e sacudia conforme os mandos dos ventos, que são mais intensos naquela altitude — o Vale está a 960 metros do nível do mar. Embora não tenha datas fixas, costuma ocorrer num final de semana do mês de setembro ou novembro e reúne até 3 mil pessoas. Depois da primeira edição do evento, Scott viajou a Vienne, na França, para uma apresentação de Carlinhos Brown, no The Jazz à Vienne Festival. Lá, ele ouviu do organizador do evento que ocorre desde 1981, Paul Boutellier, um conselho para ter um festival bem-sucedido. “Você só precisa de um lugar bonito, boa música e amor”, respondeu Paul a Rowney. Não no Brasil de Bolsonaro.
Jornalista, escreve roteiro para podcasts na Rádio Novelo
É jornalista em Salvador
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