Ilustração de Carvall
Sem visita nem cigarro, presos fumam cabo de vassoura
Detentos e agentes penitenciários assistem à chegada da covid-19 a presídios lotados e com atendimento médico precário
Às 17h do dia 16, quinta-feira, um agente penitenciário trancava os presos de volta nas celas do pavilhão quatro do Centro de Detenção Provisória (CDP) de Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo. Interrompeu o percurso diante de uma cela onde 25 presos, a maioria condenada pela Justiça por tráfico de drogas, se espremiam em um espaço construído para 12 pessoas. O ambiente quente e úmido exalava um forte cheiro de suor e esgoto. O agente, que falou com a piauí sob a condição do anonimato, levava um cigarro na boca, o que foi interpretado pelos detentos como provocação. “Pô, estamos aqui fumando cabo de vassoura e o senhor com esse cigarro”, disse um deles.
Desde o início da pandemia do coronavírus, as visitas foram suspensas em todos os presídios do país. Com isso, os cigarros, tradicionalmente levados pelos visitantes, escassearam nas celas – sem as visitas, maços continuam a ingressar nas prisões pelo correio, mas em menor quantidade. Naquela quinta-feira, o preso mostrou ao agente a estratégia para driblar a falta de nicotina: eles raspam cabos de vassoura e fumam o pó da madeira. “Claro que não é a mesma coisa, mas alivia um pouco”, completou o preso, sorumbático.
A grande escassez de cigarros e de drogas como maconha e cocaína nos presídios em tempos de Covid-19 provoca efeitos colaterais muito além da fissura do vício – naquela manhã, o agente havia presenciado um preso entrar em convulsão no pavilhão quatro, provavelmente, segundo ele, por abstinência da cocaína. Historicamente, cigarros são as principais moedas de qualquer presídio brasileiro, objetos de intensa negociação entre os presos. Trocam-se cigarros por comida, produtos de higiene pessoal ou tarefas como a limpeza da cela. Já a maconha, segundo o agente, ajuda a manter calmo o ambiente na prisão. “Quando falta maconha em um presídio, os presos ficam agitados, alguns violentos”, diz ele.
O CDP de Caraguatatuba tem capacidade para 847 presos, mas abrigava, no dia 27, 1.314 detentos – esse número cresce constantemente, já que ingressam por dia de cinco a dez novos presos na unidade. Cada um desses novos integrantes é um risco em potencial para que a Covid-19 se alastre pelas celas. Outra fonte de preocupação são as correspondências enviadas pelos familiares dos presos: o vírus pode estar na comida ou em outros objetos dentro do pacote.
A partir do que liam sobre a nova doença na internet, os agentes criaram uma relação com 60 dos 200 detentos do pavilhão com alguma comorbidade agravante da Covid-19: tuberculosos, portadores de HIV, asmáticos. Mas, devido à superlotação, não foi possível isolá-los em celas separadas. “De todo modo, a lista vai servir para sabermos quem é mais suscetível à doença, quando o coronavírus chegar. E sabemos que vai chegar”, diz o agente.
O CDP dispõe de apenas uma enfermeira (não há médicos) que atende em um espaço improvisado, já que há mais de um ano a enfermaria está fechada para reforma. Produtos de higiene pessoal, essenciais para a prevenção da Covid-19, tornaram-se artigos de luxo. Segundo o agente ouvido pela piauí, o estado só envia 50 sabonetes para os 90 detentos do CDP de Caraguatatuba que não recebem visitas. Antes, o problema era contornado com a moeda do cigarro. Agora, isso também ficou mais difícil. Álcool gel é proibido nas celas, não pelo risco de incêndio, mas de embriaguez. “Preso bêbado é muito mais difícil de controlar do que o drogado”, diz o agente.
A precariedade do sistema prisional no enfrentamento à pandemia se repete na Penitenciária de Junqueirópolis, no Oeste paulista, igualmente superlotado: são 1.952 presos em um espaço construído para 873. Em cartas enviadas para as famílias, os presos relatam o medo do vírus e os primeiros casos suspeitos. “Tem um monte de parceiros [presos] com sintomas, porém a enfermaria não suporta o tanto de pessoas que estão subindo com sintomas, então nem todos os que estão com sintomas estão isolados, o barato tá louco, amor […] pode ser que já tenha alguém contaminado, eu estou com os sintomas também, tem uns 5 ou 6 amigos na cela que estão ruins também”, escreveu um preso, em carta de 12 de abril. “Eu não sei o que fazer, eu estou há vinte dias com febre, ela vai e volta, de vez em quando [sinto] dor de cabeça e tosse seca, não sinto gosto nem cheiro de nada, estou apavorado”, escreveu outro detento do mesmo presídio, em 19 de abril. Procurada, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do estado não informou se há presos contaminados pelo novo coronavírus na Penitenciária de Junqueirópolis. Revoltados com a falta de visitas, parte dos presos do local começou um motim no sábado, 25. Os detentos puseram fogo nos colchões de um pavilhão e montaram barricadas com pedras e cabos de vassoura. A rebelião foi contida minutos depois e não deixou feridos.
Para driblar as péssimas condições dos presídios, os detentos abusam da criatividade. No CDP de Caraguatatuba, cada cela possui três camas de cimento nas paredes laterais. Duas dessas camas, porém, costumam ser utilizadas como prateleiras, denominadas “burras”, para os presos colocarem seus pertences pessoais. Como sobram poucas camas, a maior parte dos detentos dorme no chão – que eles chamam de “praia” – ou em redes costuradas por eles com fios formados pelo plástico de saquinhos de leite esticados no limite.
Os 1.314 detentos do CDP são distribuídos em oito pavilhões, construídos paralelamente e ligados por um grande corredor central, no formato de uma espinha de peixe. Quando o Judiciário paulista decidiu suspender as visitas, em março, na manhã seguinte os detentos, revoltados, desenvolveram uma forma criativa de se comunicarem entre si: ao saírem para o banho de sol nos pátios de cada pavilhão, formaram filas diante do líder daquela ala. O líder falava uma frase e os detentos a repetiam em coro para que o pavilhão vizinho ouvisse e, da mesma maneira, repassasse a mensagem. Naquele dia, os detentos discutiam a viabilidade de “virar a cadeia”, gíria para rebelião. Para sorte dos agentes, a ideia não prosperou. “Se eles quiserem destruir o CDP, conseguem, porque são muitos.” O presídio conta com 111 agentes, e apenas 15 na carceragem – o restante faz trabalhos burocráticos, como entregar intimações judiciais aos presos.
Ainda em março, a SAP distribuiu luvas e máscaras para os agentes penitenciários, mas em número insuficiente – o agente ouvido pela piauí disse estar levando de casa os equipamentos de proteção. O servidor sabe que a chegada do coronavírus causará problemas no CDP: se morrer algum servidor de Covid-19, os demais podem se negar a ir trabalhar; se a morte for de algum detento, os outros ficarão em desespero para fugir. Até a última quarta-feira, 29, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) contabilizava sete detentos mortos por coronavírus no Brasil, seis deles no estado de São Paulo, mas nenhum no CDP de Caraguatatuba. Entre os agentes penitenciários, são nove infectados, dos quais três morreram.
Em nota, a SAP informou que tem tomado todas as medidas necessárias para evitar a proliferação do novo vírus pelo sistema carcerário paulista, incluindo o uso de termômetros infravermelhos para medir a temperatura dos agentes e dos presos. A secretaria não se manifestou sobre os problemas apontados pela piauí nas unidades prisionais de Junqueirópolis e Caraguatatuba.
Às 16 horas do dia 17, o agente do CDP no litoral norte de São Paulo foi até uma das celas do pavilhão quatro para levar um preso para falar com o seu advogado. Logo que chegou ao corredor central da prisão, o detento comentou: “Tem pouco funcionário aqui hoje.” O agente não respondeu – eles são treinados para não falarem com os presos. Uma hora mais tarde, quando voltava para a cela escoltado pelo agente, o preso disse em voz baixa: “Nunca vi essa cadeia tão quieta.” Normalmente, silêncio excessivo é sinônimo de tensão dentro de um presídio. “Eles não são bobos. Sabem que o clima não está nada bom. Cadeia quieta é sinal de que algo muito ruim se aproxima.” No dia 28, terça-feira, o agente penitenciário foi afastado do trabalho por duas semanas, por suspeita de contaminação pela Covid-19.
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