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Sganzerla e o cinema como melodia

Eliete Negreiros | 13 set 2012_16h04
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Um calor danado. Nada de chuva. Estou aqui pensando no cinema de Rogério Sganzerla, uma explosão de idéias, imagens e sons, na sua relação tão visceral com a música, brasileira ou não.  Noel, o samba, Jimmy Hendrix, João Gilberto. Em como seus filmes me tocaram. Pensando que o cinema de Sganzerla é musica polifônica e atonal, as imagens, notas musicais que, como acordes, se sobrepõem em dissonâncias inéditas, combinações inesperadas que instauram um outro campo harmônico, intergaláctico, que a montagem imprime ritmo, é música, som traduzido em imagem, imagem traduzida em som. Estou aqui tentando traduzir em palavras o impacto que sua arte teve em mim. Mas, como diria Noel, isto não tem tradução, não tem tradução, o cinema falado é o grande culpado …

Aí resolvi recorrer ao livro do Ismail Xavier, Cinema Moderno Brasileiro, onde leio um trecho esclarecedor que diz que no biênio 1967/68 o Tropicalismo, com suas colagens, inaugura um outro tipo de relação entre o nacional e o estrangeiro, o arcaico e o moderno e, à maneira oswaldiana, antropofagicamente, propõe “uma dinâmica cultural feita de incorporações do Outro, da mistura de textos, linguagem, tradições.” Ah, sim, isso me ajuda a entender e decifrar um pouco o espantoso cinema deste criador, sua contagiante liberdade, seu humor corrosivo, tupi e not tupi, that is the question, ver com olhos livres, a composição feita de fragmentos, seguindo uma outra lógica – será que aqui cabe falar em lógica?- , seguindo um outro movimento de interações – acho melhor assim -, instaurando uma nova linguagem, cinema experimental, cinema de invenção,  cinema verdade, cinema marginal, cinema transcendental: o cinema não tem limite. O pensamento parece uma coisa á toa, mas como é que a gente voa…

Orson Welles, Oswald de Andrade, Grande Otelo, Helena Ignez, Arrigo Barnabé, Zé do Caixão, Noel Rosa, Luiz Gonzaga, João Gilberto, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jimmy Hendrix, Zé Bonitinho, Norma Bengell, Paulo Villaça, Maria Gladys, constelação sganzerliana.


Elogio da luz – Joel Pizzini

Quem me apresentou a arte de Sganzerla foi sua filha, minha amiga querida, a Djin Sganzerla quando, em 2010, me convidou para a inauguração da Ocupação Rogério Sganzerla, mostra dos filmes, exposição de fotos, roteiros, objetos pessoais. Pude conhecer parte considerável de sua filmografia e fiquei completamente fascinada pela arte e por aquele pensador-artista que buscava um entendimento do que é o Brasil, do que é cinema, do que somos nós: “Imerso nas profundezas da mente livre, pude descobrir traços de um Brasil imemorial e desconhecido e constatar o que poucos tem coragem de reconhecer: Brasil país do passado, imenso e imemorial passado. Eu sei de tudo e escondo, sabiam?”


Brasil – Rogerio Sganzerla

Quem sou eu? , pergunta recorrente no Bandido da Luz Vermelha, ironia da crise de identidade vivida naqueles anos, 1968, após  as ilusões perdidas do sonho revolucionário. Crônica radiofônica de seres errantes perdidos numa sociedade corrupta, violenta, seres boçais num universo grotesco, sarcástico: “quando a gente não pode nada a gente se avacalha e se esculhamba”, diz o bandido, este anti-herói. O filme de Sganzerla mostra “um universo social que tem no lixo seu emblema, tal como as operações construtivas do filme  da justaposição de resíduos, da incorporação antropofágica de referências conflitantes a compor um quadro da experiência do Terceiro Mundo como empilhamento de sucatas. (…) Viver no Brasil é encarar a violência, grossura, tolice onipresentes; um mundo onde a lucidez possível é o riso paródico.”,  escreve Ismail  Xavier.


Trecho de Bandido da Luz Vermelha

Mas o que eu quero mesmo é me debruçar um pouco sobre a presença da música no seu cinema: “O cinema é, deve ser, ou pode, deveria ser, seria bom que fosse a melodia do pensamento e a música é o que pode salvar o nosso cinema, seja popular, seja de elite, todos tem um ouvido e o cinema precisa se reencontrar pra poder justificar o que ele tem de melhor que é a possibilidade de transfigurar a realidade com a força, a energia e sobretudo com a concentração espiritual que a música combinada com o cinema nos propõe e trazer cada vez mais perto a noção do supremo.” Pensamento incandescente, iluminação. Fiquei muito intrigada quando Sganzerla diz que a música é que pode salvar o cinema. Mas o que será que ele queria dizer com isso? Paixão avassaladora pela música? Não, não poderia ser só isso. Deveria haver algum motivo mais profundo. Aí, assistindo várias vezes ao documentário de Joel Pizzini Mr. Sganzerla, Os Signos da Luz evislumbrei uma possível chave para entender esta questão: o cinema de Sganzerla privilegia a imaginação, a intuição, privilegia a criação espontânea. E em que lugar ela é mais presente na nossa cultura? Na música. Acho que é pela espontaneidade e pela criação intuitiva, pelo talento e outras bossas que ele a elegeu como grande arte que poderia resgatar um Brasil no que ele tem de melhor.


Fita amarela – Noel Rosa


Feitiço da Vila – Vadico e Noel Rosa no filme Isto é Noel

Sganzerla, que desde menino ouvia o poeta da vila, diz sem vacilar que Noel Rosa foi nosso poeta maior: “Noel de Medeiros Rosa, filósofo do samba, criador incomparável de uma nova língua ou linguagem em formação.” Fez dois filmes sobre ele,  “Noel por Noel”,  com imagens de arquivo e “Isto é Noel”, que mistura imagens de arquivo à ficção, onde é representado Noel já tuberculoso, andando trôpego pelas ruas do Rio durante o carnaval. “A biografia da vida do compositor Noel Rosa, acho que é um tema oportuno porque ele levanta as origens da nossa cultura no sentido da valorização do talento, da bossa, da intuição e a própria descoberta, por exemplo, de uma certa filosofia da malandragem necessária em tempos de crise como o que nós estamos vivendo…”

O cinema de Sganzerla é crítica social, é magia e é também uma forma de autoconhecimento: “Fazer cinema é como escrever sobre uma folha de papel queimado. É um processo extremamente corrosivo e pouco durável. Eu vejo o cinema como uma forma de autoconhecimento. O Godard já disse: a verdade a 24 quadros por segundo, no sentido dialético de movimento constante e toda arte busca essa afirmação.”

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