Ilustração de Carvall
“Sou o Coringa, gosto de matar”
Um perfil do serial killer que atacou uma pessoa por semana no Sul do Brasil nos últimos 40 dias – pelo menos três vítimas morreram
Eram cerca de 15h20 da terça-feira, 11 de maio, quando o arquiteto Wendel (nome fictício) abriu a porta de seu apartamento no Bigorrilho, um bairro de classe média em Curitiba, para receber um homem com quem conversara horas antes no Grindr, aplicativo de encontros voltados ao público LGBT+. O visitante, que se apresentou como Ricardo, parecia cortês. Tirou a máscara e foi direto ao ponto: perguntou quais eram as práticas sexuais preferidas do parceiro casual. Pediu que Wendel se despisse e se virasse de costas. Assim que tirou a roupa, o arquiteto foi atacado no pescoço com um golpe mata-leão. A vítima pensou que se tratava de uma brincadeira e advertiu que não gostava de práticas violentas. O agressor continuou tentando asfixiá-lo, enquanto dizia: “Eu sou o Coringa! Eu sou louco, gosto de matar.”
Wendel reagiu e, graças à sua compleição física – mede cerca de 1,85m e é gordo –, desvencilhou-se do golpe. Ricardo começou a desferir socos no arquiteto, que gritou por socorro. O agressor fez menção de que levava uma arma sob a blusa e ordenou que a vítima fizesse silêncio. Obrigou Wendel a lhe entregar o celular e o notebook, que colocou em uma mochila. Antes de fugir, cortou os fios do interfone e do telefone fixo do apartamento. O arquiteto correu para o apartamento de um vizinho e interfonou ao porteiro, pedindo que barrasse a saída do visitante. Era tarde: Ricardo tinha acabado de deixar o prédio.
No mesmo dia Wendel procurou a polícia, que logo relacionou o caso a três assassinatos de homens gays, um em Abelardo Luz, município catarinense na divisa com o Paraná, e outros dois em Curitiba. Wendel era mais um alvo do personagem investigado pelas polícias do Sul do país como um serial killer de gays. Os crimes seguem a mesma dinâmica: as vítimas eram homens homossexuais de classe média e foram asfixiadas, sem roupa, no apartamento em que moravam. Imagens gravadas por câmeras de segurança dos condomínios das vítimas sugerem que os crimes foram cometidos pela mesma pessoa. Graças às câmeras a Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) do Paraná identificou o suspeito como José Tiago Correia Soroka, de 32 anos, a quem são atribuídos pelo menos três assassinatos. Soroka teve a prisão temporária decretada no Paraná e em Santa Catarina e está foragido. Sua foto foi divulgada não só para auxiliar nas buscas, mas para alertar a comunidade gay. A polícia investiga se outro homem – um advogado de 35 anos, encontrado morto na capital paranaense no dia 30 de abril – foi assassinado pelo mesmo criminoso.
“Pelo que a investigação nos aponta, o criminoso aparenta ser um psicopata e, possivelmente, tenha praticado os crimes com a intenção de matar, levando objetos apenas para evitar que fosse identificado. Pelos casos, pela mudança brusca de comportamento, a gente consegue enquadrá-lo como um serial killer. Até pelo que relatou a última vítima [Wendel], tudo leva a crer que sejam crimes de ódio”, disse o delegado Thiago Nóbrega, da DHPP.
Por fotos, Wendel reconheceu Soroka, que pelo menos desde 7 de maio já estava identificado pela DHPP. O nome de Soroka surgiu a partir da Polícia Civil de Santa Catarina, que investigava o assassinato do professor universitário Robson Paim havia duas semanas. Paim foi morto em 16 de abril na cidade de Abelardo Luz e teve o carro roubado. Um dia depois, o veículo foi encontrado na região metropolitana de Curitiba. Os policiais catarinenses foram buscar o automóvel e, durante as investigações, encontraram imagens de Soroka nas câmeras de segurança da região. Uma testemunha indicou o nome do suspeito. “Identificamos a pessoa que abandonou o carro e conseguimos mais elementos que o colocavam [Soroka] em Abelardo Luz no dia dos fatos”, contou o delegado Marcelo Fernando Tescke.
Os policiais catarinenses compartilharam informações da investigação com os paranaenses. O Instituto de Identificação do Paraná cruzou as imagens das câmeras de segurança dos prédios das vítimas com as fotos de Soroka no banco de imagens da Polícia Civil. Descobriram que Soroka foi preso duas vezes, em 2015 e 2019, por roubo de carro. Compararam as fotos tiradas no momento da prisão com os elementos faciais da pessoa que aparecia no vídeo das câmeras de segurança. “Por sorte, eu tinha imagens dele de perfil direito e esquerdo, o que possibilitou a comparação. Se fosse alguém que nunca tinha sido preso, eu provavelmente não conseguiria fazer a análise apenas com as fotos dos documentos”, conta Allan Simas de Albuquerque, papiloscopista da Polícia Civil do Paraná que produziu o laudo comparativo.
Na análise, os peritos adotaram uma metodologia científica utilizada no mundo todo. “A primeira e mais importante é a análise morfológica, quando a gente pega elementos da face e faz a comparação”, explica Albuquerque. Existem até dezoito elementos de comparação, como pele, contorno da cabeça, cabelo, testa, sobrancelha, olho, bochecha, queixo, entre outros. “No caso do Soroka, a gente conseguia ver apenas o olho e as duas orelhas [de maneira clara]. A orelha é um elemento muito forte em comparação porque ela é dura, de cartilagem, e tem pouca alteração com o passar do tempo”, explica. “Apontei 5 ou 6 pontos que tinham coincidência. Apontei a anti-hélice [parte saltada de dentro da orelha] e também o lóbulo [bolinha inferior] aderente, um ponto bem específico. Na genética, a gente vê que essa característica aderente vem de um gene recessivo, mais raro.”
Com base em todos os elementos, os peritos elaboraram um laudo técnico apontando a escala de convicção da semelhança entre as imagens. Essa escala pode mostrar uma identificação negativa, quando não há semelhança; pode ser inconclusiva; pode mostrar pontos de compatibilidade; e ser uma identificação positiva. “Como eu tinha apenas alguns elementos, mas muito fortes, disse que as imagens do suspeito tinham compatibilidade com as fotografias do Soroka”, disse o papiloscopista. “Fui bem meticuloso, demorei quatro ou cinco dias para fazer o laudo. A gente aplica um método científico e segue todos os protocolos internacionais. O que eu disse no laudo vou continuar dizendo. Olhei detalhe por detalhe, e os elementos são compatíveis”, acrescentou.
José Tiago Correia Soroka nasceu em Palmas, município de 51 mil habitantes no Centro-Sul do Paraná, na divisa com Santa Catarina. Na infância, mudou-se com os pais e a irmã para Abelardo Luz, onde morou por alguns anos. Posteriormente, a família se fixou na região de Curitiba. Segundo a polícia, o suspeito passou os últimos dois anos na capital paranaense e em municípios vizinhos. Tem dois filhos: um de 12 anos, fruto de um relacionamento com uma namorada de juventude; e outro de quatro, com a mulher com quem morou até o início de 2021. Soroka teve uma microempresa de informática – área na qual concluiu diversos cursos –, mas deu baixa na empresa em abril de 2018. Vinha trabalhando como chaveiro, porém foi demitido em março deste ano.
Pelo menos trinta testemunhas ouvidas na investigação, de parentes a um ex-patrão, passando pela ex-mulher e por motoristas de táxi, permitiram traçar o perfil de Soroka como uma pessoa inteligente, educada e de bom papo – mas que repentinamente mudava de humor, parecendo ter dupla personalidade. Podia se tornar agressivo ao extremo. Fez tratamento psiquiátrico por curto período em uma clínica particular em Curitiba, mas abandonou a terapia. No início deste ano, Soroka tentou, pela segunda vez, matar a mulher com um mata-leão – golpe aprendido em cursos de artes marciais. Ela terminou o relacionamento e deu queixa à polícia. A Justiça lhe concedeu medida protetiva impedindo que Soroka chegasse perto dela. Outro ponto que chamou a atenção dos policiais veio à tona no depoimento da irmã do suspeito: ela relatou que Soroka sofreu abusos sexuais na infância, mas que não se lembrava de detalhes do caso porque ainda era muito nova.
“Ela disse que tinha vagas lembranças de abusos, que não podia precisar, mas acredita que ele tenha ficado traumatizado, porque, ao longo dos anos, passou por tratamentos psiquiátricos. Não se sabe se os crimes têm relação com esse trauma ou se ele sentia alguma aversão a homossexuais e por isso escolhia vítimas gays”, disse o delegado Nóbrega. “Ele era descrito como de comportamento bastante instável. Amoroso, mas explosivo. De uma hora para outra, se transformava em outra pessoa. A ex-mulher morre de medo dele. Tem pavor”, acrescentou. “A gente teve bastante dificuldade para localizá-lo. É um indivíduo inteligente, com conhecimento de informática e artes marciais”, confirmou o delegado catarinense Tescke.
Em 11 de fevereiro de 2019, Soroka atacou um motorista de aplicativo com um mata-leão e socos, roubando celular, carteira e o carro da vítima. Preso, foi condenado a 4 anos e 9 meses de prisão no regime semiaberto. Recorreu, declarou-se “usuário de substância entorpecente” e disse que cometeu o crime para saldar uma dívida com traficantes e não colocar sua família em risco. A 5ª Câmara Criminal do TJ-PR não acatou o argumento, mas diminuiu a pena para 4 anos de reclusão em regime semiaberto e multa em fevereiro de 2020.
O primeiro assassinato atribuído a Soroka ocorreu em 16 de abril, na cidade de Abelardo Luz, em Santa Catarina. O professor universitário Robson Paim, de 36 anos, foi encontrado morto em casa por familiares. O corpo estava de barriga para baixo, nu, em cima da cama e com sinais de estrangulamento. Em Curitiba, em 27 de abril, o enfermeiro David Júnior Alves Levisio, de 30 anos, foi assassinado em seu apartamento, e o corpo foi achado nu, de bruços, com as mãos amarradas. O terceiro homicídio ocorreu uma semana depois, em 4 de maio, e a vítima, Marcos Vinício Bozzana da Fonseca, de 25 anos, era aluno de medicina. O outro caso em investigação é o do advogado morto em 30 de abril, num prédio sem câmeras de segurança. A polícia aguarda o laudo de autópsia para saber se a vítima foi asfixiada, o que poderia indicar a ligação com os outros homicídios. Outra vítima que escapou de um ataque semelhante em 2018 procurou a DHPP e reconheceu Soroka.
A DHPP identificou na dinâmica dos casos um padrão e elementos que indicavam premeditação. O criminoso sempre utilizava serviços de táxi ou de aplicativos de transporte, usando nomes ou perfis falsos – apresentou-se como William e Diogo, além de Ricardo. Nunca desembarcava no endereço final, mas em algum estabelecimento comercial a algumas quadras de distância. As câmeras de segurança mostram que ele permanecia entre 30 e 45 minutos no apartamento das vítimas. A principal tese da polícia é de que ele usava um mata-leão para desacordá-las e asfixiá-las até a morte. Em todos os casos, foram levados os celulares e notebooks dos homens assassinados, e a polícia acredita que o objetivo do criminoso era apagar rastros digitais que pudessem vinculá-lo aos crimes.
“Em todos os casos, as vítimas tinham carteira com dinheiro, joias, relógios, mas só foram levados o celular e o notebook, o que dá a entender que ele [o assassino] queria evitar qualquer forma de rastreamento. Ele tinha conhecimento em informática para isso. A gente tentou rastrear remotamente os aparelhos, mas o suspeito já havia entrado no equipamento e trocado as senhas”, observou Nóbrega. Outros detalhes da investigação chamam atenção, como o fato de os ataques acontecerem às terças-feiras e sextas-feiras. “Ele vinha fazendo cerca de uma vítima por semana. A gente está passando desse prazo [desde a última tentativa em 11 de maio]. Estamos buscando informações do paradeiro dele”, disse o delegado Tescke.
Diversos relatos sobre Soroka chegaram às organizações ligadas à população LGBTI+ que estão acompanhando as investigações. De acordo com Marcel Jeronymo, coordenador de atendimento jurídico do Grupo Dignidade, esses relatos mostram que Soroka tinha uma vida sexual ativa no universo gay. “Ele tinha outros crimes, mas foi surgindo uma mentalidade de querer expurgar aquele desejo reprimido que tinha dentro dele”, avaliou Jeronymo. “Ele sempre se relacionou com gays. Por que passa a matar gays?”, questionou. O criminoso agia de calça preta, boné preto e máscara preta, sempre iguais. “É assustador como escolhia a roupa da morte”, lamentou Jeronymo, coordenador de atendimento jurídico do Grupo Dignidade. “Essas mortes são diferentes de tantas outras que a população LGBTI+ sofre. São ocasionadas por um psicopata, uma pessoa que ao ver tanta impunidade se sentiu autorizado a cometer crimes de maneira seriada contra homens gays”, complementa.
Ao longo do ano passado, 224 pessoas LGBTI+ foram assassinadas em todo o país, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB) – que faz a compilação dos casos desde a década de 1980. Os homicídios foram cometidos por arma de fogo (42,3%), armas brancas (23%) e espancamento (9,1%), entre outros. Muitas mortes foram precedidas “por tortura e mais crueldades frequentes em crimes de ódio: estrangulamento, pauladas, atropelamento, queima do corpo e descarga elétrica”, consta do relatório. O recorde de mortes violentas de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais foi em 2017, com 387 óbitos. Os dados revelam um aumento expressivo dos crimes nas duas últimas décadas: nos anos 2000, a média de homicídio foi de 130 casos; na década de 2010, saltou para 260; ficando em 357, na média dos últimos quatro anos.
Os ataques em série aumentaram o medo na comunidade gay no Sul do país. A Aliança Nacional LGBTI+, o Grupo Dignidade e o GGB lançaram o “Manual para Evitar a Violência LGBTIfóbica”. Entre as orientações, há menções específicas a aplicativos de relacionamentos. A indicação é pedir foto de rosto da pessoa e enviar a três amigos, juntamente com contatos dela. O manual também orienta a não receber em casa, logo no primeiro encontro, pessoas conhecidas por aplicativos. Caso se opte por levar o parceiro para casa, a sugestão é comunicar o porteiro do prédio, para um eventual auxílio. “Sabemos que há preconceito, estigma, ódio e esses assassinatos em série. Recomendamos não levar para casa pessoas estranhas ou conhecidas por aplicativos. Leve a um local público, hotel ou motel. Precisamos nos preservar, principalmente nesses tempos de ódio e de pandemia”, disse Toni Reis, diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI+. A polícia segue as buscas. “A gente aguarda informações da população, qualquer informação sobre o paradeiro dele é válida. Nosso foco é evitar novas vítimas”, alerta o delegado Tescke.
É jornalista radicado em Curitiba. Autor do livro Waltel Branco - O maestro oculto (Banquinho Publicações)
Repórter freelancer, trabalhou na Agência Lupa e é especializado em jornalismo de dados e fact-checking
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