Em um cemitério na selva de Kivu, dor e lágrimas no enterro de uma dos mortos pelo ebola FOTOS DE IURI BARCELOS
Entre militares, milícias e cadáveres
Rastrear doentes, testar remédios e chorar os mortos: dois jornalistas brasileiros relatam medos e esperanças na luta contra o ebola no Congo
A picape acelera pela sinuosa estrada de terra, cortando a densa mata tropical de Kivu, no Leste da República Democrática do Congo. Na caçamba da caminhonete à nossa frente, cinco soldados escoltam uma equipe escalada para um dos trabalhos mais perigosos do mundo: o enterro de vítimas do ebola numa zona de guerra congolesa. O comboio funerário avança selva adentro, acompanhado de caminhões abertos, lotados de parentes, amigos e conhecidos. Motocicletas montadas por rapazes em dupla, walkie-talkie em mãos, costuram a caravana, o que significa um alerta: já entramos em território Mai-Mai. Um grupo rebelde controla esta fração da região de Beni, epicentro do surto de ebola no Congo. Um dos pilotos faz um movimento brusco e fecha nosso jipe pela esquerda. O garupa se vira para trás e reproduz um gesto universal: com o olhar fixo na gente, usa a lâmina da mão para atravessar o próprio pescoço. Os soldados do exército congolês também são provocados, mas reagem – erguem a kalashnikov, ameaçando atirar.
Nesta quinta-feira (25 de junho), o governo do Congo anunciou o fim do surto de ebola na região de Beni. Em 10 de agosto de 2019, estávamos na região para acompanhar uma ação controversa, o enterro de vítimas de ebola. Conduzidos por agentes de saúde, os enterros se tornaram um grande motivo de insatisfação popular. O ritual funeral tradicional, de intenso contato físico com os mortos, foi proibido pelo Ministério da Saúde congolês e pela Organização Mundial da Saúde. O contato com cadáveres de pessoas infectadas é um dos principais meios de contaminação. A carga viral dos pacientes aumenta com a evolução da doença, o que a torna cada vez mais contagiosa, tendo seu ápice no momento da morte. Para evitar a contaminação do solo, a OMS exige que os funerais sejam feitos no meio da selva. Sem dúvida seria o mais seguro, não fosse a selva desta parte do Congo o esconderijo de mais de cem grupos armados envolvidos num conflito que já dura 24 anos.
Ao cortar a densa floresta neste abafado início de tarde, a sensação é de estarmos a caminho de uma emboscada. Há quase uma hora no comboio, o pouco de sinal que recebíamos nos celulares já não chega mais. A estrada é estreita, tortuosa, sem desvios – só é possível seguir adiante. E as motos que nos seguem são cada vez mais numerosas.
O vírus do ebola é o mais letal conhecido pela humanidade: mata até 90% dos infectados. Em junho de 2020, enquanto a humanidade enfrenta a pandemia de Covid-19, centenas de cientistas e médicos que trabalharam na resposta ao ebola estão em laboratórios e hospitais pesquisando e tratando o novo coronavírus. A metodologia de rastrear contatos e testá-los, o chamado contact tracing, desenvolvida no histórico programa global de erradicação à varíola no anos 1960, foi aperfeiçoada nos diferentes surtos de ebola. Hoje é a ferramenta mais sofisticada que países desenvolvidos utilizam para combater a Covid-19.
Os primeiros casos de ebola da história foram registrados em 1976 no Congo, então conhecido como Zaire. O médico congolês Jean-Jacques Muyembe liderou a equipe que socorreu o vilarejo de Yambuku às margens do Rio Ebola. Os moradores se apavoravam ao verem adoecer também todos os que cuidavam dos enfermos. Muyembe lutou para salvar os pacientes que surgiam com febre, vômito, diarreia e muitos já com fortes hemorragias. Mas a vila foi devastada – nove em cada dez infectados morreram em poucos dias. Foi nessa epidemia que vitimou quase quinhentas pessoas que o então jovem cientista diagnosticou pela primeira vez a doença causada pelo novo vírus.
Muyembe é hoje um simpático senhor de 78 anos. Quarenta e quatro anos depois de diagnosticar a doença, coordena um ensaio clínico inédito que investiga um possível tratamento para o vírus. “O ebola é uma doença órfã, sem vacina nem tratamento”, contou Muyembe. “Quando o paciente entra num centro de tratamento e sai num caixão, a população começa a duvidar das autoridades e passa a esconder o paciente em suas casas”, explica.
A resistência da população em buscar tratamento para o ebola é um problema antigo. Talvez tenha origem no surto da cidade de Kikwit, em 1995, como conta a repórter Laurie Garrett em seu livro sobre a história da doença. Na cidade havia um único centro hospitalar, o Hospital Geral de Kikwit, para atender mais de 400 mil pessoas. Quando o produtor de carvão Gaspard Menga, com hemorragias graves, deu entrada no pronto-socorro lotado, os médicos e enfermeiros temeram que a causa da doença fosse uma bactéria comum no Congo, a shigella. Realizaram diversas cirurgias para tentar conter os sangramentos. Não imaginavam que também seriam contaminados e logo espalhariam o vírus para os outros pacientes do hospital, num contágio arrasador. Naquele ano, uma em cada quatro mortes foi de profissionais de saúde. E as marcas das cirurgias nos cadáveres, vã tentativa de conter as hemorragias, eram combustível para o imaginário da população, que especulava sobre o que acontecia entre as paredes daquele hospital.
O surto de Kikwit acendeu um alerta para cientistas no mundo inteiro. Mas, até 2014, os focos de transmissão de ebola em humanos foram apenas pontuais. Nos 24 surtos da doença registrados até então, a média era de 66 óbitos em cada um, até que em março daquele ano um homem foi infectado numa zona florestal da Guiné Equatorial, no Oeste do continente africano. Ali o ebola encontrou um ambiente perfeito para avançar. A região de alta densidade populacional tinha uma frágil infraestrutura de saúde, e o monitoramento e controle de casos eram precários. Em cinco meses, o surto já era considerado emergência internacional. Ao todo, foram quase 30 mil casos e mais de 11 mil mortos em dez países. A luta contra o ebola jamais seria mais a mesma.
Diversas terapias vinham sendo testadas e outras foram desenvolvidas durante a epidemia de 2014. Todas esbarraram em grandes obstáculos. Em busca de medicamentos e vacinas, a OMS estabeleceu que era de fundamental importância realizar ensaios clínicos robustos no surto seguinte. O vírus ressurgiu numa zona de guerra. “Quando a OMS anunciou no dia 1º de agosto de 2018 o caso de ebola aqui no Congo, corremos para iniciar os testes clínicos”, contou Muyembe. Além de continuar os testes de uma vacina experimental, avaliariam também a eficácia de quatro terapias simultaneamente. Era uma empreitada inédita – o ensaio seria conduzido em condições extremamente desafiadoras, num país sem infraestrutura e arrasado por um conflito que já transformara em refugiados 556 mil congoleses.
NO CONGO
Viajamos para o Congo em agosto de 2019, um ano depois de um novo surto de ebola ter começado e matado 1800 pessoas. Apesar de estar entre os vírus mais letais do mundo, o ebola não é o que mais mata no Congo. Só em 2019, foram registrados mais de 310 mil casos de sarampo no país, com 6 mil mortes. Houve 29 milhões de casos de malária em 2018, com 44,5 mil mortes, segundo estimativas da OMS. O país sofria com um surto de cólera, que atacou quase 30 mil pessoas em 2019. Mas a epidemia de ebola amedrontava também por questões geopolíticas: tratava-se de uma doença mortal espalhada na região mais conflitiva do país.
A história da República Democrática do Congo é marcada por conflitos. O país vive uma guerra civil desde o genocídio étnico em Ruanda de 1994, quando grupos armados invadiram o Leste do país. Desde então, pelo menos cinco milhões de pessoas morreram. Essa longa disputa de vida e morte pelo controle das terras levou à formação de milícias separatistas, fator de violência e constante instabilidade política. Surgiram também as milícias Mai-Mai. Algumas delas se colocam como forças de autodefesa contra guerrilhas oportunistas, outras controlam recursos naturais e exercem a força como senhores de guerra.
Entre as centenas de forças rebeldes, a maior ameaça ao governo congolês é a FDA, Forças Democráticas Armadas, grupo que se denomina islâmico e nutre pouco diálogo com a comunidade internacional. O conflito se concentra em três províncias ao Leste: Sud Kivu, Nord Kivu e Ituri – justamente a região onde o surto de ebola se manifestou. Ali, ao menos 1700 pessoas foram assassinadas nos últimos oito meses, de acordo com a ONU. Só na província de Ituri, visitada em janeiro deste ano pela alta comissária para os direitos humanos Michelle Bachelet, 531 civis morreram pela lâmina de machados e facões de grupos armados.
Para atuar na guerra, a ONU criou em 1999 a Monusco, a maior missão de paz do mundo. E também a mais cara – no ano passado, recebeu mais de um bilhão de dólares para o combate às milícias congolesas. Em 2013, quando um grupo rebelde tomou Goma, uma das maiores cidades do país, foram criadas as brigadas de força ostensiva, as únicas do planeta com mandato para iniciar combate.
Goma, que fica na fronteira com Ruanda, foi nosso ponto de entrada para o Congo. A cidade foi construída entre o Lago Kivu e o gigante Nyiragongo, um vulcão situado 10 km ao Norte da cidade. A última erupção, em 2002, destruiu mais de um terço da cidade e removeu cerca de 400 mil pessoas de suas casas. Assim como o ebola, o vulcão é um inimigo imprevisível que pode atacar a qualquer hora.
A base central da Monusco fica às margens do Lago Kivu. Helicópteros, blindados e carros militares contrastam com o azul do céu e da água. Todo fim de tarde, oficiais capacetes-azuis vão até um café improvisado num contêiner aberto, mas elegante, de frente para o lago. Lá encontramos o general brasileiro Elias Filho, que comandou a Monusco até o final de 2019, quando foi substituído pelo conterrâneo Ricardo Costa Neves. “Cada grupo armado aqui tem dinâmica e interesse particular. Temos grupos armados que são originários do outro lado da fronteira, de Uganda, Ruanda e Burundi”, explicou Elias Filho. “Em teoria, esses grupos se fortaleceriam aqui para retornar aos seus países de origem para lutar contra seus governos. Mas a verdade é que estão aqui há mais de quinze anos.”
O general Elias Filho comandou aproximadamente 18 mil soldados de diferentes nacionalidades. Além de enfrentar grupos armados, os capacetes-azuis trabalham diariamente no combate à epidemia. “O ebola traz um componente a mais para o conflito. Os agentes humanitários passaram também a ser alvos desse grupos armados. Tivemos que desviar o foco e agora o ebola é a maior prioridade na região: proteger os humanitários para controlar essa epidemia.” Enfrentar uma doença contagiosa em uma zona de conflito armado tem singularidades. “Há ameaças físicas. Tem deslocamento de populações inteiras por conta dos combates. A ação desses grupos armados tem produzido um intenso movimento de milhares de pessoas, e a situação fica ainda mais difícil.”
O CENTRO DE TRATAMENTO
Goma e Beni são separadas por apenas 300 km, mas as emboscadas são frequentes na estrada que margeia o Parque Nacional do Virunga. As autoridades proíbem estrangeiros de fazerem o trajeto de carro. Conseguimos vaga num voo da ONU para agentes humanitários e militares e, depois de driblar as carregadas nuvens sobre a selva de Kivu, aterrissamos com segurança na base militar de Beni.
Beni tem população de 250 mil pessoas e ruas de uma terra alaranjada, pelas quais trafegam tanques das tropas da ONU. Desde 2001, foi palco de massacres perpetrados por grupos diferentes ao longo do tempo. A FDA controla os arredores e tem promovido incursões nos últimos anos. O Estado Islâmico reivindicou a autoria de um desses ataques, no qual 25 pessoas foram massacradas no ano passado. A despeito do perigo do ebola, a cidade é movimentada e cheia de gente. Há muitas lojas, um mercado, uma universidade bilíngue missionária e três hotéis. Escolhemos o único com quarto disponível, já na saída da cidade, chamado Okapi Palace.
O Okapi serve de base improvisada para a OMS, onde foi instalada internet a satélite e um gerador de energia próprio. Oito homens armados com fuzis fazem a segurança na portaria. No estacionamento, há alguns jipes brancos da OMS, com marcas de tiros e vidros quebrados. Uma equipe de médicos sofreu um ataque no dia anterior. Ao lado do hotel, uma garagem esconde viaturas totalmente queimadas. Um dos agentes de saúde comenta: “Eles atiraram para matar”, apontando para o buraco no parabrisa dianteiro. “Por sorte os tiros não pegaram em ninguém.” Em razão das armadilhas contra profissionais de saúde, antes de sair para o trabalho, todas as equipes da OMS têm de passar em um dos batalhões que a Monusco tem na cidade para traçar uma estratégia de segurança. Frequentemente, os médicos atuando em Beni trabalham escoltados por tanques de guerra.
“Vocês são brasileiros?”, escutamos em um idioma familiar, quando fazemos o check-in. Surgiu um homem simpático, alto, de ombros largos. “Que alegria poder falar em espanhol”, desabafa. O médico cubano Lázaro Martinez morava em um dos pequenos quartos do hotel e não falava seu idioma natal havia seis meses. Martinez estudou medicina na Universidade de Ciências Médicas de Havana e se especializou em infectologia, medicina familiar, medicina interna e medicina tropical. Fez mestrado e doutorado na Universidade Paris 7, na França. Rodou o mundo como consultor da OMS e do PNUD e ajudou a conter o avanço do HIV no Afeganistão. Foi no surto da África Ocidental em 2014, cinco anos antes de nos conhecermos no Congo, que ele começou a trabalhar com ebola. “Os tempos eram outros. Aprendemos muito sobre a doença desde então. Não sabíamos nem como ela se propagava, faltava equipamento de proteção adequado e leitos para os infectados.”
Lázaro atribui à sorte o fato de não ter sido contagiado. Apenas no primeiro ano daquela epidemia, 513 médicos morreram tentando salvar vidas, e mais de 800 foram infectados. Para se ter ideia do impacto que isso teve na região, este número representa 8% e 7% dos profissionais de saúde da Libéria e da Guiné, respectivamente, e muitos deles eram amigos de Lázaro. Após o fim daquela epidemia em 2016, aceitou um convite para lecionar infectologia em Uganda. Dois anos depois, ouviu no rádio sobre um novo caso de ebola no Congo. Temia-se nova epidemia. Na mesma semana, a OMS lhe pediu que viajasse à região. Lázaro tinha experiência em zonas de guerra, mas sabia que enfrentaria um desafio sem precedentes. Embarcou três dias depois num voo da ONU, sem passagem de volta.
Lázaro se divide entre um centro de transição para os casos suspeitos e um outro acampamento no pequeno vilarejo de Mangina, duas horas de viagem a Oeste, e onde são tratados os que já tiveram diagnóstico positivo. Em Beni, a jornada de Lázaro começa bem cedo. Assim que desceu à recepção do hotel, vestiu o colete à prova de balas. Aguardou um um par de horas a liberação da segurança. Recebeu a notícia de que a ida ao centro de tratamento de Mangina não fora permitida. A inteligência da Monusco barrou as viagens, pois não havia blindados disponíveis para escoltar a equipe. A opção seria atender no centro de transição no Centro de Beni, onde ficam pacientes sem diagnóstico confirmado. É a conjuntura da guerra que determina quem receberá a atenção médica. “Já atiraram no meu carro duas vezes. Todos os médicos aqui já sofreram algum atentado. Então temos que seguir as recomendações. Mas tenho alguns pacientes graves lá. Preciso pelo menos falar com algum enfermeiro lá para passar orientações.”
As autoridades de saúde enfrentam o desafio de lidar com a falta de informação e as notícias falsas disseminadas sobre o surto no Congo. Muitos congoleses acreditam que o ebola é uma invenção dos brancos para acabar com a população africana. Outras teorias defendem que “o ebola está sendo usado para fins políticos”, ou que “o ebola só existe para aprovar novos medicamentos das gigantes farmacêuticas”.
O impacto da desinformação numa zona de guerra é sentido na pele pelos médicos e enfermeiros, que neste surto já sofreram quase 400 ataques, onze deles com mortes. Boa parte das atribuições da Monusco se dá no sentido de proteger os profissionais de saúde, barrados em diversos vilarejos onde há grupos armados. E isso atrapalha o combate à epidemia, pois parte crucial do combate ao vírus é rastrear novos casos para vacinar aqueles que possam ter tido contato com a pessoa infectada, e impedir uma nova onda de contágios.
O dia seguinte é mais animador. Viagem autorizada. O CT de Mangina é um dos onze hospitais de campanha criados especificamente para o combate ao ebola no Congo. Mais parece um acampamento de guerra. Numa pequena vila rodeada pela imensa floresta tropical, o centro é composto de grandes tendas de lona sobre chão batido e é demarcado por tapumes de madeira, que o separam do resto da comunidade.
“Foi aqui que começou o atual surto”, conta Marie Roseline, haitiana, agente de saúde e coordenadora do centro médico. Ela diz que estava na região quando o primeiro caso de ebola foi registrado. “Surgiram algumas mortes suspeitas aqui, então decidimos colher as amostras de sangue. Eram oito e, se não me engano, quatro deram positivo para ebola.” Marie acreditava que poderiam impedir o avanço do surto, mas logo entenderam o desafio que tinham pela frente. “No começo os casos estavam concentrados nessa zona, mas temos enfrentado um problema que é a grande movimentação da população. Há comunidades na floresta das quais nem tínhamos conhecimento. Algumas pessoas se escondem nessas partes do território”, ela explica.
O protocolo de entrada na área de isolamento é rigoroso. “Dá medo na primeira vez que a gente veste as roupas. Mas depois você vai ficando confiante”, conta Lázaro. O que pode ser um problema. “Com a autossuficiência, pensando que você sabe tudo, pode cometer uma falha. Tem que estar concentrado. Mas há sempre alguém nos ajudando, com um passo a passo do que tem que ser feito.”
Ainda com um traje comum, Lázaro lava as mãos, veste um par luvas e calça uma galocha convencional. De frente para o espelho, coloca um macacão branco, que o cobre dos pés à cabeça. Veste também duas máscaras de proteção das vias respiratórias. Um grosso avental e outro par de luvas sobrepõe os trajes inferiores, e um óculos de plástico cobre o que lhe restava exposto do corpo. A auxiliar que o acompanha pega uma caneta de tinta preta e escreve na testa o nome do médico, que já não é reconhecido debaixo do equipamento de proteção. Lázaro está liberado para trabalhar.
– 500 ml de soro fisiológico! – pede Lázaro.
– Como? – responde o funcionário, sem entender.
Separados por cercas a quase 3 metros de distância, a comunicação entre médico e farmacologista é difícil.
– 500 ml! Do soro! – o médico repete, agora mais alto.
As duas máscaras que protegem Lázaro prejudicam o diálogo. O farmacologista pega a embalagem de soro e a desliza sobre uma pequena esteira de madeira. Com o auxílio de um cabo de vassoura, empurra o pacote até o médico.
A hidratação do paciente é o tratamento básico das vítimas do ebola. Neste hospital ao ar livre em Mangina está sendo realizado também o ensaio clínico com 57 pacientes para testar quatro terapias, todas em fase experimental. Apesar dos tratamentos promissores, a histórica resistência da população local em buscar tratamento para o ebola dá força à epidemia. Neste surto, uma em cada três mortes aconteceu sem que a pessoa sequer buscasse socorro – e as que buscaram, às vezes o fizeram tarde demais. “Muitas vezes os pacientes chegam já com vários dias de sintomas. As chances de sobrevivência ficam muito menores”, conta Lázaro após um longo dia nas UTIs de Manguina. Antes de escurecer, a equipe de Lázaro tem que voltar para Beni. Apesar da recomendação para que os profissionais da saúde só fiquem 40 minutos vestidos com o EPI, por causa do calor e da desidratação, Lázaro fica cinco, seis, às vezes sete horas, com a roupa e os equipamentos. “É difícil virar as costas para o paciente e ir embora.”
O principal laboratório do estudo clínico fica dentro do complexo hospitalar de Beni, criado especificamente para o combate ao atual surto. O pequeno prédio é protegido rigorosamente, em especial uma pequena sala refrigerada onde são armazenadas as amostras de sangue de pacientes infectados pelo ebola. “É uma arma biológica em potencial. Por isso as grades e os soldados na frente”, conta Daniel Mukadi, discípulo de Muyembe. “Temos que estar no mínimo em dupla para fiscalizar o equipamento de proteção dos nossos colegas”, conta o jovem virologista.
Um sobrevivente do surto de 1995 em Kikwit virou esperança para a luta contra o ebola no mundo todo. Os anticorpos produzidos pelo seu corpo, que contrariou as estatísticas ao vencer a doença, foram isolados em laboratório, e deram origem ao Mab114. No ensaio clínico conduzido por Muyembe estão sendo testadas quatro terapias: o Mab114, o Regeneron, o Remdesivir e o Zmapp, droga que já havia iniciado testes no final da epidemia do Oeste africano, em 2014. “Hoje fazemos o ensaio com as quatro moléculas. Estamos acompanhando a evolução de mais de seiscentos pacientes.”
“Temos aqui em Beni uma ‘coldchain’, que é a estrutura necessária para manter a temperatura que as vacinas e tratamentos exigem. Daqui distribuímos para os outros focos do surto no país.” Os pesquisadores trabalham em turnos ininterruptos para garantir os testes do vírus e a distribuição das moléculas de tratamento.
No surto de Kikwit havia um único laboratório no mundo inteiro com os equipamentos e proteção necessários para realizar os testes. Ficava em Atlanta, nos Estados Unidos, e as equipes no campo esperavam mais de uma semana para receberem o diagnóstico. Um cenário bem diferente da epidemia atual, em que foram construídos onze laboratórios para testar 3500 amostras por semana.
O complexo onde fica o laboratório é um lugar de desesperança e alento em um só tempo. Perto do laboratório há uma zona afastada, com portão próprio para isolamento. É a única área em que é permitida a circulação da população, mas é o lugar que ninguém espera ter que visitar. Talvez o ambiente mais doloroso do país neste momento de crise: o espaço destinado ao velório das vítimas do ebola.
OS ENTERROS
Os caixões cobertos com estampa colorida e as cruzes de madeira se acumulam numa grande sala deste anexo funerário. Enquanto alguns funcionários abastecem o local com novas esquifes, outros retiram as que serão usadas em instantes. O silêncio só é interrompido pelo estalar das madeiras e pelo jato do vaporizador de cloro, que descontamina o espaço. Demoramos a notar que quase metade dos caixões tem menos de um metro e meio comprimento. São destinados às crianças que perderam suas vidas para o ebola, uma em cada três vítimas da epidemia.
Ouvimos o choro agudo das famílias que chegam para se despedir. As determinações da OMS para um velório seguro exigem que os familiares visitem individualmente a pequena casa de madeira, onde o corpo lacrado da vítima é protegido por dois agentes de saúde. Terminadas as despedidas, sob o som intenso do murmúrio dos familiares, todos partem em direção ao funeral na selva. Seguimos com o comboio funerário e em poucos minutos nos vemos na cena que abre esta reportagem, a bordo de uma picape numa estrada de terra, ao lado de caixões e agentes sanitários, e cercados de motoqueiros armados ameaçando cortar nossa garganta.
Depois de uma hora e meia de viagem em comboio, entre motos, caminhões e metralhadoras, os veículos começam a se enfileirar nas beiradas da via, quase invadindo a mata que cerca a pista. Chegamos a salvo ao cemitério, criado especialmente para esse surto. É difícil caminhar no solo macio e irregular. Em toda parte, há sepulturas recém-cobertas, com a terra ainda fofa. O terreno estava repleto de gente, mas é fácil identificar os agentes de saúde. O macacão branco reluzente e as galochas pretas destacam a equipe dos que acompanham o funeral. O barulho é ensurdecedor. Aos gritos, a população cerca a equipe em volta da caminhonete improvisada de rabecão.
Sem entender o que falam, orientamos-nos pelo que vemos. Uns choram, outros esbravejam, revoltados com as ações de contenção ao surto. Um pequeno grupo rouba uma das pás que seriam usadas para o enterro e ameaçam agredir os agentes. O soldado ao nosso lado, que escolta a equipe de saúde, corre para recuperar a ferramenta. Reparamos novamente na presença dos garotos de walkie-talkie e, lá do fundo, uma pedra é arremessada em direção aos agentes de saúde, que por pouco conseguem desviar da ameaça. O som da gritaria é impressionante. O ruído atordoa.
A equipe de agentes funerários se apressa para retirar da caminhonete o primeiro corpo, demonstrando certa experiência no solo irregular do terreno. Já havia um túmulo cavado para o primeiro corpo. Para o segundo e o terceiro caixão também. Mas como surgiram duas vítimas de última hora, os agentes terão que cavar novas covas agora mesmo. Tempo precioso e de alto risco em território Mai-Mai.
Alguns familiares se jogam ao chão, num ato de desesperada gritaria que pode lhes custar a vida. Com o descer dos caixões acalmam-se os ânimos. As famílias se unem em torno dos túmulos, enquanto os agentes de saúde embarcam silenciosamente nas caminhonetes para fazer o longo trajeto de volta a Beni.
UM FIO DE ESPERANÇA
Somos acordados às 6 horas da manhã seguinte por Mukadi. Ele e Muyembe têm resultados parciais do estudo clínico, e nos chamam para uma conversa antes da visita que farão a Mangina. Os pesquisadores revelam que o Regeneron e o Mab114 reduziram a letalidade do vírus para até 9% e 11%, respectivamente, a depender da carga viral do paciente. Tratando-se do ebola, é uma revolução. Com a descoberta, o comitê que fiscaliza o estudo avaliou que não seria correto seguir com as outras duas terapias – que se mostraram menos eficientes – quando poderiam oferecer as que aumentariam as chances de o paciente sobreviver. “Agora, finalmente o ebola terá um tratamento”, revela Muyembe. “É o fim de uma jornada de quarenta anos. É fantástico.” Poucos dias depois, a OMS anunciaria a descoberta.
Retornaríamos ao Brasil no meio de agosto, com o sabor da expectativa de Muyembe de que a epidemia terminaria em dois, três meses no máximo. Mas logo os conflitos em Beni se intensificaram. Numa tentativa de tomar o controle da cidade, grupos FDA chegaram às portas do Okapi e travaram mais um confronto com os capacetes-azuis. Em plena epidemia, todos os agentes da OMS foram evacuados, e as atividades de saúde foram temporariamente suspensas na região.
Apesar dos obstáculos impostos pelo conflito, antes da virada do ano houve uma redução drástica de novos casos de ebola no Congo. Um artigo publicado no New England Journal of Medicine em dezembro confirmou os resultados que Muyembe e sua equipe haviam adiantado alguns meses antes. Agora, eles deverão continuar estudando essas e outras terapias, assim como novas dosagens e combinações de medicamentos. Lázaro conseguiu tirar férias e foi visitar a família em Cuba.
Em fevereiro, a OMS entrou em contagem regressiva para declarar o fim do surto, que havia vitimado 2.262 pessoas desde agosto de 2018. Já não havia casos novos, mas era necessário completar 42 dias – dois ciclos de incubação do vírus – para que o fim fosse oficial. A essa altura, o mundo já estava sitiado, agora com um novo inimigo: a Covid-19. Lázaro seria convocado novamente pela OMS, desta vez para conduzir um teste clínico emergencial nos Bálcãs. A busca de um tratamento para o novo coronavírus envolveria drogas que ele já experimentara no Congo. No entanto, o fechamento de fronteiras o impediu de viajar. Em Cuba, passou a cumprir dupla jornada. Parte como voluntário em um centro de referência para a Covid-19 em Havana, parte prestando consultoria online para os governos de Burkina Faso, Mali e Uganda.
No início de junho de 2020, faltando apenas algumas semanas para o decreto do fim da epidemia de ebola, o Ministério da Saúde congolês anuncia o que todos temiam. Do outro lado do país, 1.850 km a Oeste de Beni, em Mbandaka, um município à beira do Rio Congo, surgiu um novo surto da doença, com seis casos positivos. A OMS enviou uma equipe para o local e iniciou o rastreamento de contatos para frear o contágio. Seria assombroso se o ebola se disseminasse pela região em um momento que o continente africano tem de enfrentar o coronavírus, que embora seja menos mortal, é muito mais contagioso. O anúncio do fim do surto na região de Beni, nesta quinta-feira (25), é um sinal positivo. Em Mbandaka, a doença persiste. Em meio às incertezas, a luta de mais de quarenta anos contra o ebola trouxe algumas tochas: uma vacina e dois tratamentos aprovados. As vidas perdidas não foram em vão, e o ebola, se ainda é um dos vírus mais letais do mundo, não é mais uma sentença de morte.
Jornalista, tem mestrado em Relações Internacionais e Política pela Universidade de Columbia. É repórter da TV Globo
Jornalista com passagens pela Agência Pública e TV Globo. Dirigiu o curta documental Não Repara a Bagunça
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí