Temas recorrentes, tragédias perenes
A Última Floresta documenta, com olhar antropológico, aldeia na terra Yanomami
Programado para encerrar o 26º Festival É Tudo Verdade em 18 de abril, A Última Floresta (2020), de Luiz Bolognesi, redime em certa medida a vertente memorialística predominante das produções brasileiras da mostra competitiva, comentada aqui nas duas colunas precedentes. Antes de ter assistido a seis dos sete concorrentes ao prêmio de Melhor Documentário da Competição Brasileira, o olhar da maioria, com exceção de Alvorada, parecia voltado para o passado na tentativa de recuperar trajetórias de vida e eventos pregressos. Uma vez assistidos os sete filmes em competição e confirmada a tendência geral prevista, no entanto, foi possível identificar dessemelhanças marcantes entre uns e outros, mesmo confirmando a impressão prévia de formarem um conjunto de títulos defasados da tragédia humanitária e das demais crises – econômica, social e política – que o país atravessa.
Alguns diretores demonstram estar satisfeitos consigo mesmos ao proporcionar uma egotrip para seus personagens ou ao cultuarem ídolos. Outros tentam estabelecer conexões de temas históricos com a atualidade política, procurando associar à força circunstâncias díspares. E há os que evitam a dicotomia entre passado e presente tratando de temas atemporais ou perenes.
Fora da competição, creio que por não ser inédito, tendo estreado em março na mostra Panorama do 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, A Última Floresta é exemplar ao transcender o que é meramente episódico e abranger o que persiste a tempo imemorial – desde que o homem branco entrou em contato com os povos indígenas das Américas. Com olhar sensível de antropólogo, Bolognesi realiza essa proeza. Circunscreve seu espaço de observação, atendo-se à aldeia Watoriki, na floresta amazônica, próxima à Serra do Vento na região do Demini – terra dos Yanomami com os quais conviveu por cinco semanas. Lá, gravou cenas dos moradores, conduzido pela sabedoria do xamã Davi Kopenawa Yanomami.
Às práticas cotidianas seculares – pesca com arco e flecha, hábitos alimentares, artesanato etc. – se associam tanto a necessidade de ir ao encontro dos brancos (“Eles não nos conhecem. Seus olhos não nos veem, seus ouvidos não entendem…”) quanto a tarefa de expulsar garimpeiros e evitar a poluição da água dos rios com o mercúrio usado na busca de minério (“Se aceitarmos vamos acabar todos doentes… Não devemos tirar o minério para não despertar a fumaça da doença…). Bolognesi transita com desenvoltura entre registro estritamente documental, encenação e relato de mitos que refletem a estrutura da sociedade Yanomami.
Sonhar organiza o pensamento, diz Davi Kopenawa. Ele é visto em A Última Floresta no momento em que advertia os brancos na “Conferência sobre Mudança Climática: Futuros da Amazônia e de Nosso Planeta”, em maio de 2019, na Universidade de Harvard: “Vocês não enxergam. Os brancos que são autoridades liberaram o garimpo em nossas terras… Para vocês que vivem na cidade, o mais importante é a mercadoria. Apesar de ter muitas mercadorias, o branco não divide. São sovinas. Fazer muitas mercadorias faz mal para a floresta. Para nós, importante são os animais da floresta, a fertilidade. Importante é dividir o alimento entre o nosso povo, nossa sobrevivência, nosso crescimento, nossa forma de viver e nossa existência como povo.” Na entrevista ao site The Harvard Gazette, concedida de Boa Vista dias antes, Davi declarou: “… Nas últimas três décadas, temos sofrido o impacto não só das mudanças climáticas, mas também da invasão de garimpeiros que estão destruindo nossas árvores e poluindo nossos rios. Também estamos sofrendo com a indiferença do governo brasileiro, que pouco faz para proteger nossa terra e nosso povo dos invasores… E, quando chove, vemos a poluição cobrindo as montanhas. Nossa saúde está sendo afetada. Nosso povo fica cada vez mais doente. Também estamos preocupados com o governo brasileiro, que está destruindo a floresta para cultivar soja.” (entrevista completa disponível em https://news.harvard.edu/gazette/story/2019/05/shaman-davi-kopenawa-discusses-climate-change-at-harvard/ ).
Bolognesi achou que “seria interessante mostrar às pessoas que esse xamã que vive na floresta, que parece ser um homem pobre, é convidado para falar” na Universidade de Harvard. O entrevistador, por sua vez, comenta que a ida a Harvard recebe tratamento onírico, “coerente com o resto do documentário”. É uma boa observação (a íntegra da matéria está disponível em https://businessdoceurope.com/berlin-panorama-the-last-forest-by-luiz-bolognesi/ ).
Ao se aproximar do fim, A Última Floresta apresenta em legendas o histórico da invasão da terra Yanomami, iniciado em 1986: os assassinatos de indígenas; a vitória de Davi ao conseguir que o governo federal mantivesse os garimpeiros fora da região por 25 anos; e a nova invasão, a partir de 2019, quando mais de 20 mil garimpeiros entraram no território, “derrubando a floresta, envenenando os rios com mercúrio e trazendo a Covid-19 para as aldeias. Em vez de cumprir a Constituição e proteger os índios, o novo governo tenta legalizar a invasão das terras indígenas por garimpeiros.”
Após essas legendas, no plano final de A Última Floresta, Davi está sozinho no quarto de um hotel. A cena se estende, e seu olhar é de infinita tristeza. Ele está longe da floresta e vem recebendo ameaças de morte por denunciar o garimpo ilegal – “Vou às cidades lutar pelos direitos do povo Yanomami e conversar com governantes que têm escritórios nas cidades. Mas quando estou na cidade tenho muita saudade da minha família, do meu povo, da minha cidade natal, e às vezes me pergunto por que escolhi esse caminho, por que me tornei ativista em defesa da floresta e dos direitos do povo Yanomami. Eu não pertenço à cidade. Eu pertenço à floresta.” (em The Harvard Gazette citado).
Termino de escrever esta coluna, até aqui, no domingo, 18 de abril, antes do Festival É Tudo Verdade anunciar o melhor filme da competição brasileira, a ser escolhido pelo júri formado por Sandra Kogut, Eduardo Morettin e Daniel Solá Santiago. Tarefa árdua essa de escolher o “melhor” entre sete filmes feitos com empenho e finalizados em condições tão adversas quanto imprevistas. Aguardemos o pronunciamento soberano do júri que não caberá discutir.
Domingo, 18 de abril, 17h30. Através de Sandra Kogut, o júri anuncia a escolha de Os Arrependidos, de Armando Antenore e Ricardo Calil, como melhor documentário de longa-metragem da competição brasileira. Menção honrosa é atribuída a Máquina do Desejo – 60 Anos de Teatro Oficina, de Lucas Weglinski e Joaquim Castro.
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Dia 24 de abril, sábado, às 19 horas, em Encontros Notáveis no youtube.com/EvaldoMocarzelOficial, haverá o primeiro episódio de Cinema Operário e a obra de Renato Tapajós, com apresentação de Maria do Rosário Caetano e Evaldo Mocarzel. Participam, entre outros, Ismail Xavier, Jorge Bodanzky, Jean-Claude Bernardet e Roberto Gervitz.
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Dia 25 de abril, domingo próximo, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Vanessa Oliveira, Juca Badaró e este colunista conversam com Armando Antenore e Ricardo Calil, codiretores de Os Arrependidos (2021), no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. A estreia de Os Arrependidos ocorreu no Festival É Tudo Verdade, encerrado dia 18, no qual foi premiado como melhor filme da competição brasileira. Segundo os diretores, “é um filme incômodo que faz pensar sobre o presente… um incômodo potencializado pelo momento que vivemos no Brasil”. O controvertido termo “arrependidos” refere-se aos jovens militantes presos e torturados que renegaram a luta armada através da televisão, na década de 1970.
O acesso à conversa com Armando Antenore e Ricardo Calil, no próximo domingo, 25 de abril, no programa #DomingoAoVivo, pode ser feito através do link https://youtu.be/cgvx0F3ccv4.
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