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    O paulistano Gabriel Franco em sua formatura na Universidade Columbia, em Nova York Crédito: Soorim Lee

depoimento

Tenho desespero por mudança

Paulistano de 23 anos conta como conseguiu se formar nos Estados Unidos — e por que quer voltar ao Brasil

Gabriel Azevedo Duarte Franco | 28 out 2022_15h55
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Na proximidade da eleição presidencial, o Datafolha divulgou os resultados de uma pesquisa que indica que só 25% dos jovens brasileiros de 15 a 29 anos acreditam que a situação do país pode melhorar significativamente em dez anos. A maioria, 76%, diz ter vontade de ir embora. Para alguns deles, sair do Brasil é uma oportunidade de melhorar de vida. O paulistano Gabriel Azevedo Duarte Franco cruzou esse caminho em 2017, aos 18 anos, quando se mudou para Nova York com o objetivo de estudar ciência política na Universidade Columbia. Agora, aos 23 e cursando doutorado na Universidade de Chicago, o desejo dele é retornar ao Brasil.

Em depoimento a Thallys Braga

Não sei explicar o que se passava pela minha cabeça na adolescência, mas eu não me via como um menino negro. Minha mãe é uma mulher de pele retinta, foi parada diversas vezes em porta de supermercado por acusações infundadas de roubo. Mas nem aquelas cenas de racismo explícito me deram consciência racial. Em 2017, quando cheguei aos Estados Unidos para fazer faculdade, fui inserido na categoria de negro, sem poder fazer qualquer questionamento. Eu era irrevogavelmente negro, e ponto final. Foi nesse momento que eu me vi brasileiro, no sentido político da palavra, pela primeira vez. E o compromisso de ser brasileiro logo virou também um compromisso com a minha raça. 

Eu tinha 18 anos quando me mudei sozinho para Nova York, com o intuito de estudar ciência política na Universidade Columbia. Fui com planos de ficar. Queria conquistar o diploma, arranjar um emprego e construir uma vida longe do Brasil, que àquela altura tinha acabado de testemunhar o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). No primeiro semestre de aulas, sofri um baque muito doloroso. Eu não me sentia inserido na cultura nem acolhido pelas pessoas. Chorava copiosamente umas quatro ou cinco vezes por semana. Depois de um tempo, fiz amizade com uma menina americana de família caribenha que se tornou a minha salvação psicológica.

Existe uma sociedade de brasileiros em Columbia onde praticamente todo mundo se conhece, mas eu não consegui fazer muitas amizades lá dentro. Logo depois da minha chegada, alguns alunos do grupo aderiram ao bolsonarismo, enquanto outros estrategicamente se abstiveram do conflito. A véspera da eleição de 2018 foi uma loucura. Columbia é considerada um espaço de pensamento progressista, mas os alunos brasileiros de economia, liberais ou protoliberais defendiam o Bolsonaro usando como argumento as questões econômicas. Outras pessoas, de origem social bastante diferente das minhas, eram simplesmente conservadoras ferrenhas. Meus amigos tentaram travar discussões políticas com bolsonaristas, mas eu preferi me isolar. Em compensação, estabeleci conexões profundas com alunos de outros países da América Latina.

Em outubro de 2018, votei em uma escola pública no Centro de Manhattan. A seção eleitoral estava lotada de pessoas vestidas com as cores do Brasil e fardas militares. Geralmente, me sinto seguro para expressar as minhas opiniões políticas em relação ao Brasil aqui nos Estados Unidos. Ninguém ousaria me machucar, já que violência pode levar à deportação. Mas naquele domingo eu me senti estranho, com medo. 

Quando o Bolsonaro ganhou, me fechei no dormitório universitário e chorei muito. Recebi mensagens carinhosas de amigos de outros países que eu não imaginava que estavam acompanhando a situação política do Brasil. Ao saber da minha tristeza, os americanos disseram ter sentido coisa parecida quando o Donald Trump ganhou a eleição de 2016. Na vez deles, alguns professores interromperam as aulas e mandaram os alunos para casa. Não tinha clima para continuar estudando naquele dia, com uma notícia daquelas. Na minha vez, seguir em frente foi a única opção.

A essa altura, eu já tinha percebido que a vida longe de casa não seria como imaginei. Nos primeiros meses de Columbia, escrevi um ensaio para um blog da universidade dizendo que o meu desejo era voltar ao Brasil e abrir caminho para jovens que não têm a oportunidade de estudar fora. Era uma visão um tanto liberal sobre avanço pessoal. Depois, compreendi a necessidade de mudarmos questões estruturais, para que ninguém precise deixar o país em busca de uma educação de qualidade. A minha inquietação passou a ser esta: o que a gente precisa fazer para transformar uma sociedade calcada em desigualdades num país com oportunidades para todos? 

 

Minha avó devia ter 16 anos quando pariu a minha mãe, sua primeira filha, em 1962. Ela morava no morro da Mineira, uma favela em Santa Teresa, na região central do Rio de Janeiro, junto do meu avô. Ele tinha 22 anos e trabalhava como pintor na prefeitura do Rio, cuidando das fachadas dos prédios municipais. Minha avó lavava roupa e cozinhava para fazer algum dinheiro, mas a renda nunca foi suficiente. Ela teve outros cinco filhos. 

Aos 10 anos, minha mãe começou a vender peixe na Mineira para ajudar nas contas de casa. Na adolescência, conciliava a escola com o trabalho de manicure. Depois trabalhou como vendedora de loja no shopping Rio Sul, em Botafogo, contra a vontade do meu avô, que era um cara muito machista. No final dos anos 1980, um dos irmãos dela morreu por envolvimento com o tráfico de drogas. Surgiu uma oportunidade para estudar na Escola Paulista de Enfermagem, e ela decidiu se mudar para São Paulo.

Logo que se formou, minha mãe passou a fazer plantões em dois hospitais paulistas para mandar dinheiro para a família na Mineira e tentar alcançar estabilidade financeira. Em uma visita ao Rio, conheceu o meu pai, um taxista de origem cearense. Os dois tiveram um curto romance, moraram juntos num apartamento alugado em São Paulo e, em 1999, eu nasci. Convivi pouco tempo com o meu pai. Quando fiz dois anos, ele foi embora e nunca mais voltou. Desde então eu o vi, no máximo, dez vezes.

Minha família sempre foi a minha mãe. Em certo momento, ela começou a contemplar a ideia de ter um apartamento próprio. Por sorte, encontrou um a três quarteirões da Avenida Paulista, sendo vendido por um dono de terras que recebeu o imóvel como pagamento de uma dívida. Ela financiou a compra por 20 anos, fazendo plantão atrás de plantão, enquanto eu me tornava adulto. 

Por mais que a nossa trajetória não esteja diretamente relacionada aos benefícios sociais do governo Lula, eu e minha mãe começamos a ascender socialmente junto com grande parte dos brasileiros. Ao contrário dela, pude crescer dentro de escolas particulares que desenvolveram bem as minhas habilidades, sempre com bolsas de estudos. Fiz o ensino médio em um colégio competitivo, voltado para o vestibular e olimpíadas internacionais de matemática e física. Um dos alunos da minha escola entrou para a universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e passou a ser utilizado como garoto-propaganda nos corredores da escola. Lá pelos 12 anos, comecei a nutrir o desejo de também estudar em alguma das renomadas universidades americanas.

No ensino médio, tive uma amiga que era de um estrato socioeconômico mais pobre que o meu e entrou no colégio através de um programa de auxílio para bons alunos da rede pública. Quando estávamos no segundo ano, ela conseguiu uma bolsa para estudar jornalismo numa universidade privada de Chicago. Foi quando me deparei com o fato de que é possível pessoas como eu estudarem em universidades internacionais. Até então, pensava que só sendo muito bom em ciências exatas, como aquele menino que foi para Harvard, eu poderia chegar lá.

 

O processo de aplicação para as universidades americanas é muito caro. Em 2016, no último ano do ensino médio, decidi me inscrever em programas que ajudam a cobrir as despesas da inscrição nos intercâmbios, mas não fui aprovado em nenhum. Minha avó adoeceu e minha mãe teve muitas despesas com remédios. Ela conseguiu pagar as provas da primeira etapa da minha candidatura ao intercâmbio, mas depois a coisa apertou, e a gente não tinha mais grana para continuar com a inscrição. Eu disse: “Mãe, tudo bem, tenho um plano para o Brasil. Fico aqui, faço a Fuvest e, se tudo der certo, estudo direito na USP.”

Certa noite, estávamos conversando sobre aquela amiga que foi para Chicago, e minha mãe percebeu o quanto eu queria estudar no exterior. Disse, com carinho, que faria um esforço para que eu pudesse me candidatar a pelo menos uma instituição. A essa altura, o curso de ciência política da Universidade Columbia já era uma prioridade. Foi lá que eu apostei a minha única inscrição.

O e-mail de boas-vindas da faculdade chegou às cinco da tarde de um dia de dezembro. Eu e minha mãe ficamos incrédulos na frente do computador. Tenho a impressão de que, até então, a minha ida para o exterior era só uma fantasia na cabeça dela. Um mês depois, em janeiro de 2017, fomos a Nova York ajeitar as coisas no dormitório universitário onde eu moraria pelos próximos anos. Minha mãe chorava a ponto de soluçar. Acho que ali ela percebeu que eu tinha um futuro seguro pela frente. 

 

No dia em que a Câmara dos Deputados votou o impeachment da presidente Dilma Rousseff, fiz um simulado de vestibular no colégio e voltei para casa andando pela Avenida Paulista. Estava tudo vazio, coisa atípica para uma tarde de domingo. Acho que todo mundo ficou em casa para assistir o rumo que o país tomaria. Nunca consegui esquecer daquela cena, o vazio quase total. Outra imagem que ficou na minha cabeça foi a do Bolsonaro mencionando o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra durante o voto dele. 

No processo de candidatura para Columbia, é preciso escrever um ensaio sobre um assunto de escolha pessoal. Eu estava tão alarmado que citei o Bolsonaro como o exemplo de um certo atavismo político brasileiro, o sinal de um conservadorismo arraigado que estava ascendendo no país. Naquele momento ele era apenas um deputado federal, e eu, um estudante do ensino médio. Tenho certo orgulho de ter prestado atenção no que a figura Bolsonaro representava logo cedo, mesmo ainda tendo pouca habilidade para falar sobre política. 

Entre o terceiro e o quarto ano da graduação, decidi que, além de ciência política, também estudaria a história da América Latina e do Caribe. Nessa época, fiz um estágio de pesquisa na universidade e acabei analisando documentos sobre a ditadura militar brasileira. As pessoas costumam fazer uma ligação entre a ideologia do bolsonarismo e a ditadura, mas eu não acredito muito nisso. São contextos diferentes. Se é para seguir essa linha, a gente pode ligar o Bolsonaro à questão patriarcal brasileira que vem desde a colônia. A infiltração do racismo e da misoginia dentro da ideologia do Bolsonaro não vieram com a ditadura, por exemplo. 

Depois do estágio, em fevereiro de 2020, fui ao Rio de Janeiro para fazer um intercâmbio de seis meses na PUC-Rio. Aproveitei que estava na cidade para participar da produção de um podcast feito por Columbia junto ao Instituto Moreira Salles, no qual histórias de favelas do Rio são contadas pelas pessoas que trabalham com música. Parte do meu trabalho era conduzir entrevistas no Complexo da Maré e na Rocinha. Eu nunca tinha ido à Maré. Fiquei surpreso porque era um lugar plano e não uma favela de poster, com morros e casas empilhadas.

Então a pandemia chegou. Eu estava na reta final da faculdade e tinha que desenvolver um trabalho de conclusão de curso. E precisava escolher um tema que pudesse ser pesquisado pela internet, já que as medidas de restrição me impediriam de explorar os arquivos históricos. Existem muitos estudos online sobre o Complexo da Maré, então resolvi investigar a demarcação territorial daquela região durante conflitos políticos. Eu tinha um profundo interesse em entender como a Maré foi moldada pela empreitada do Estado de manter o domínio territorial por meio da segurança pública. Questões de segurança pública despertam o meu interesse, talvez por conta do contexto familiar. No final do meu ensino médio, perdi outro parente por envolvimento com o tráfico de drogas. 

Fiz a maior parte da pesquisa na casa da minha mãe, em São Paulo, durante a pandemia. Foi bom passar um tempo com ela depois de três anos longe. Em janeiro de 2021, voltei para Nova York e terminei a monografia, que batizei, em inglês, de “Maré Capturada: Tecnologias Policiais, Informalidade Urbana e Poder Excepcional na Maré, Rio de Janeiro.” O trabalho recebeu uma menção honrosa do Departamento de Estudos de Latino-Americanos e Caribenhos da universidade. A honra é concedida a trabalhos de alta qualidade. Em 2021, eu fui o único aluno de Columbia a recebê-la.

 

Depois de quatro anos no dormitório universitário, deixei Nova York para morar no estado americano de Illinois. Um pouco antes da minha formatura em Columbia, tive a surpresa de ganhar uma bolsa para fazer doutorado em história na Universidade de Chicago, com direito a um salário anual e plano de saúde. Pelos próximos sete anos, concentrarei os meus esforços em estudar o que gosto: a história da América Latina. Venho refletindo se eu quero continuar nisso ou não, mas agora estou pesquisando abolicionismo e republicanismo brasileiros do final do século XIX.

Em junho, fui ao Rio de Janeiro para explorar documentos do Arquivo Nacional que poderiam ajudar nos meus estudos. Fazia quase dois anos que eu não ia ao Brasil. Percebi que existe agora mais hostilidade no ar. As pessoas estão mais conscientes do aumento da desigualdade, e isso provoca interações sociais passíveis de conflito. A fome tem um peso maior nas ruas do que quando eu era adolescente. 

Acho que por tudo isso as pessoas ficam assustadas quando eu digo que quero voltar para o Brasil. O que eu gostaria, de verdade, é de estar trabalhando no meu país. Não vejo a hora de retornar, mas quero ir tendo alguma função social. Voltar com a aprovação no concurso de uma universidade pública, talvez.

Quando participou do Big Brother Brasil, a Linn da Quebrada disse uma frase sobre representatividade que me marcou muito. Ela falou que estaria mentindo se dissesse que todas as travestis vão ascender como ela conseguiu. Alimentar esse tipo de esperança seria um equívoco, porque as pessoas não se desesperariam o suficiente para tentar mudar o que precisa ser mudado. Eu me sinto dessa forma. Não quero que ninguém olhe para mim e sinta só esperança de que jovens brasileiros podem, sabe-se-lá quando, ter uma educação de qualidade. Prefiro que nutram desespero por mudança.

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