André Mendonça e Jair Bolsonaro - FOTO: CAROLINA ANTUNES/PR
Terrivelmente terrível
Diversidade religiosa faz bem a um tribunal, mas Bolsonaro quer mesmo um vendilhão da Constituição – daí vem a força de André Mendonça para chegar ao Supremo
No começo da década de 1970, o ministro Aliomar Baleeiro, então na presidência do Supremo Tribunal Federal, mandou retirar da parede o crucifixo que adornava o plenário do tribunal. Baleeiro crescera como homem público no conservadorismo da União Democrática Nacional (UDN), apoiou o golpe que derrubou João Goulart e chegou ao tribunal por meio de uma intervenção contra o Judiciário promovida por Castello Branco, através do Ato Institucional 2 (1965). Com tudo isso, o jurista baiano dizia-se agnóstico e não aceitava que o símbolo de uma crença religiosa específica pairasse sobre as cabeças de juízes responsáveis por conduzir julgamentos seculares. Apenas em 1978, três anos após a aposentadoria de Baleeiro, uma imagem do Cristo voltou ao recinto. Esculpida por Alfredo Ceschiatti, a peça ainda hoje figura no principal espaço de julgamentos do Supremo, na mesma parede onde está afixado o brasão da República – que fica abaixo do crucifixo e é menor do que ele.
Com a iminente aposentadoria do ministro Marco Aurélio, que completará 75 anos em julho, a relação entre religião e STF voltará a ganhar primazia, agora por outro motivo: a promessa, publicamente feita por Jair Bolsonaro desde o primeiro ano de seu governo, de nomear um ministro “terrivelmente evangélico” para o tribunal. Ao indicar o ministro Nunes Marques para a vaga deixada por Celso de Mello, Bolsonaro rolou essa dívida assumida com parlamentares da Bancada da Bíblia e líderes de algumas igrejas que desfrutam de acesso privilegiado a ele. Todos contam que a fatura finalmente será paga desta vez.
Há uma crítica fácil ao plano de indicar um jurista de fé evangélica ao STF: a Constituição elenca os requisitos para que alguém se torne ministro do tribunal, e nenhum deles passa pelas convicções religiosas do indicado. O artigo 101 da Constituição pede apenas que a escolha recaia sobre cidadão que tenha entre 35 e 65 anos de idade, e que ostente “notável saber jurídico e reputação ilibada”. Foi nesse sentido a reação de ministros do Supremo à promessa do terrivelmente evangélico. À época, aqueles que se manifestaram sobre a fala de Bolsonaro pontuaram que a religião é irrelevante para o desempenho de suas funções. Nesta semana, o próprio ministro Marco Aurélio ecoou esse pensamento: “requisitos a serem observados são os requisitos que estão na Constituição Federal. […] Nós não compomos uma corte religiosa.”
Essa crítica fácil ignora que os critérios constitucionais de validade da indicação, cujo controle é – ou deveria ser – feito por sabatina no Senado Federal, não esgotam o debate sobre a legitimidade da composição de um tribunal como o STF. Até certo ponto, o pleito por um ministro evangélico pode ser contemplado pelas mesmas lentes do reclamo pela presença de mulheres e negros na corte: todos são categorias historicamente discriminadas e buscam se fazer representar em instâncias de poder que decidem a sorte de seus direitos, e o Judiciário não foge a essa regra. Ao mesmo tempo, a promessa de uma indicação “terrivelmente evangélica” não deve ignorar aquilo que Bolsonaro realmente aspira para o Supremo Tribunal Federal, uma instituição que tem sido, nos limites de suas possibilidades, um tanto bem-sucedida em contrapor-se a alguns dos grandes desatinos do governo federal – e que tem recebido, em resposta, muitos ataques do presidente da República e de seus apoiadores.
O STF, como qualquer tribunal constitucional no mundo, decide temas que se apresentam como disputas sobre direitos, mas que embutem evidentes conflitos políticos. Algumas delas envolverão direitos de minorias de gênero, como ocorreu no caso da possibilidade a aborto de fetos anencefálicos. Outras, os direitos de minorias raciais, como no debate sobre a fronteira entre liberdade de expressão e racismo. Várias causas tipicamente constitucionais opõem grupos com interesses opostos bem delimitados: muitas disputas tributárias e financeiras antagonizam estados de diferentes regiões do Brasil; contendas sobre nulidades processuais costumam opor as ideologias de advogados, membros do Ministério Público e delegados de polícia.
Em qualquer desses casos, é compreensível que os titulares ou partes interessadas na disputa não queiram ver suas causas decididas em um tribunal composto apenas “pelos outros”, e que prefiram uma corte que traga também a voz dos “seus”. Embora o Legislativo seja a instituição principalmente encarregada de garantir representatividade política, um painel de homens decidindo direitos das mulheres, ou de brancos decidindo direitos de negros, ou de paulistas decidindo conflitos federativos entre unidades da Federação, não apenas ilustra desigualdades nas carreiras jurídicas de elite, como também afeta negativamente a imagem pública da instituição. Um tribunal não precisa espelhar fielmente a demografia de seu país, mas é recomendável que ele não seja “o exato oposto da diversidade da população”, como escreveram Thomaz Pereira e Diego Werneck Arguelhes.
O pleito da representatividade no Poder Judiciário é ainda mais esperado quanto mais claros são os indícios de que, ao menos em alguns casos, a ideologia dos ministros pode ter papel decisivo na decisão dos direitos em disputa. Como não projetar essa dúvida sobre o STF, um tribunal em que tantos ministros não se furtam a emitir opiniões públicas sobre as miudezas políticas de cada semana? Uma corte cuja jurisprudência sobre temas politicamente sensíveis sacode ao sabor dos ventos, como vemos nos julgamentos sobre a Lava Jato, chama para si essa desconfiança.
Alguns dos conflitos políticos sobre os quais tribunais como o STF têm de deliberar possuem fundo religioso. Esta é a principal razão pela qual pleitos de representatividade religiosa na composição de tribunais constitucionais parecem justificados. Em casos assim, o Supremo é instado a traçar os contornos finos das liberdades de crença, de consciência e religiosa, protegidas pelo inciso VI do artigo 5º da Constituição de 1988. O STF já decidiu que a realização do Enem aos sábados não viola direitos fundamentais de estudantes judeus, que têm o dever religioso de respeitar o shabat (à época, não havia nenhum ministro judeu no tribunal). Em 2018, o tribunal permitiu o ensino religioso confessional em escolas públicas. Ano passado, dois julgamentos fixaram os deveres da administração pública de compatibilizar provas e períodos de trabalho às obrigações religiosas de concurseiros e servidores sabatistas. Se descermos às instâncias inferiores, o cardápio de casos é ainda mais amplo: do “Deus seja louvado” nas notas de real até os feriados sagrados, passando pelo uso de recursos públicos no apoio a marchas organizadas por igrejas, a quantidade de temas de fundo religioso levados ao Judiciário e sobre os quais o STF pode vir a se manifestar é significativa e tem importância constitucional.
Nos Estados Unidos, um país fundado por protestantes que fugiam de perseguições religiosas na Europa, a demografia religiosa da Suprema Corte diversificou-se na esteira da ascensão de minorias políticas. George W. Bush indicou ao tribunal Samuel Alito, filho de imigrantes italianos; Barack Obama indicou Sonia Sotomayor, mulher nova-iorquina de família portorriquenha; Donald Trump gastou sua primeira indicação com o descendente de irlandeses Brett Kavanaugh. Todos são católicos (o catolicismo é, há algum tempo, a religião predominante entre juízes da corte). Magistrados judeus têm assento frequente no tribunal desde o começo do século XX, uma tradição iniciada com Louis Brandeis, em 1916. Dos nove assentos hoje disponíveis na Suprema Corte americana, dois são ocupados por magistrados judeus, sendo uma mulher (Elena Kagan). A lendária Ruth Bader Ginsburg era judia. É corrente a visão de que há ao menos um assento reservado a um judeu no tribunal, o chamado “jewish seat”.
A indicação de um magistrado de cúpula por agentes políticos sempre envolve manter no ar diversos malabares, alguns provindos das reivindicações de grupos sociais, organizados ou não em torno de denominações religiosas. Parte desse embate se resolve pela medição de forças políticas momentâneas: os grupos cujas lideranças têm mais força para emplacar seu pleito no instante da indicação tendem a levar vantagem, a menos que o presidente da República se julgue forte o suficiente para bancar um nome de sua preferência pessoal e enfrentar os descontentes. Dias Toffoli não era o preferido de quase ninguém, mas foi ungido por Lula em um momento de excepcional popularidade do ex-presidente, no final de seu segundo mandato.
A despeito dessa premência da realpolitik, é possível pensar em justificativas que podem amparar diferentes pleitos em busca de representatividade no tribunal, inclusive por grupos religiosos. Uma defesa possível seria sustentar que litígios de interesse de grupos de pressão evangélicos estão entre nossas maiores urgências constitucionais, e que a presença de um ministro evangélico melhorará a qualidade do julgamento dessas matérias – porque, digamos, a falta desse ministro impediria que o tribunal apreendesse a questão em disputa em toda sua complexidade. Uma tal defesa, em suma, apoiaria a indicação evangélica argumentando que liberdades religiosas não têm sido protegidas a contento por um Supremo insensível às agressões que minorias religiosas sofrem, do mesmo modo que painéis de julgadores homens, que via de regra não sofrem violência de gênero no ambiente de trabalho, são menos capazes de identificar violações a direitos de mulheres em ações sobre assédio sexual. ¹
Contudo, esse argumento tem dois problemas. O primeiro é que a crítica parece fora de lugar quando dirigida ao STF, um tribunal cuja jurisprudência recente tem se mostrado favorável à proteção de minorias, inclusive religiosas. Antes mesmo da chegada de seu primeiro ministro judeu², Luiz Fux, o tribunal decidiu que o antissemitismo é modalidade de racismo, sendo por isso crime inafiançável e imprescritível. Em julgamento mais recente, o tribunal aceitou que o proselitismo religioso possa valer-se de linguagem “intolerante, pedante e prepotente”, desde que não sinalize “violência, dominação, exploração, escravização” ou “eliminação” dos adeptos de outra fé. Nas decisões que equipararam a homotransfobia ao crime de racismo, diversos votos explicitamente ressalvaram a proteção constitucional à liberdade de falar contra uniões homoafetivas por convicções religiosas, para evitar que pregações religiosas pudessem configurar crimes (o voto condutor do então decano Celso de Mello na ADO 26 gastou muita tinta nesse argumento). Na véspera da Páscoa, o ministro Nunes Marques liberou monocraticamente cultos presenciais no auge da pandemia de Covid-19, pleito ardorosamente defendido por alguns líderes evangélicos àquela altura. Onde está a insuficiência da proteção à liberdade religiosa nesses casos?
Mas o maior problema é que a melhor versão desse argumento soaria cínica se encampada por Jair Bolsonaro e pelos defensores da indicação terrivelmente evangélica. Essa versão sustenta que um corpo colegiado para a tomada de decisões, seja ele um grupo de juízes ou o quadro diretivo de uma empresa, se beneficia da multiplicidade de pontos de vista que uma composição mais plural tende a produzir. Em um tribunal, isso vale não apenas para as causas de interesse direto de grupos historicamente discriminados, mas para toda e qualquer ação. Essa versão ótima do argumento parte do pressuposto de que uma instituição composta de membros não eleitos, mas que exerce tanto poder, precisa de algum modo espelhar a sociedade sobre a qual ela pretende ter autoridade. Em suma, trata-se de um argumento sobre os benefícios da diversidade. Porém, essa é uma ideia à qual o bolsonarismo, como qualquer movimento populista, tem sabida repulsa – repulsa compartilhada por grupos de pressão que agora fingem acreditar na representatividade de minorias no STF, o mesmo tribunal onde travam batalhas pela intolerância.
Quais julgamentos do STF enfezam os apoiadores de um ministro terrivelmente evangélico? Por quais demandas esses grupos se mobilizam no tribunal? Conhecê-las dá pistas quanto à razão pela qual o Supremo tornou-se a maior, embora não a única, obsessão desses grupos.
Um primeiro grupo de casos diz respeito a temas relevantes da liberdade religiosa, embora não exclusivamente pertinentes às denominações evangélicas. A possibilidade de abertura de templos durante a pandemia afeta todas as religiões cujos cultos são celebrados em prédios de especial valor para a fé, o que também vale para as igrejas dos católicos, as sinagogas dos judeus, as mesquitas dos muçulmanos e os centros dos espíritas, entre outros. A obrigatoriedade de disponibilização de exemplares da Bíblia em bibliotecas e escolas públicas interessa a todas as religiões pautadas por textos sagrados, que tampouco se limitam às evangélicas. Mesmo as demandas dos sabatistas têm sua pluralidade, pois tanto judeus quanto adventistas têm o dever de guardar os sábados (e muçulmanos, as sextas-feiras). Em todo caso, o que está em jogo aqui são mesmo temas próprios da liberdade religiosa: a maneira como o Estado leva em conta, e respeita, a fé dos cidadãos ao criar obrigações gerais, e o dever de preservação de neutralidade estatal em face das diversas religiões de seu povo.
Porém, um segundo grupo de casos nos quais certas entidades de representação evangélica gastam muita energia no tribunal abrange ações que não têm nada a ver com a proteção das liberdades religiosas de seus fiéis. Elas se voltam às pautas de costumes, como os direitos LGBT+, o direito de aborto de fetos anencefálicos e, principalmente, as políticas de educação antidiscriminatória nas escolas, obsessão compartilhada pela ala ideológica do bolsonarismo. Seu objetivo é claro: mudar a orientação do Supremo a fim de consagrar uma jurisprudência da intolerância, ainda que isso vá de encontro à melhor interpretação dos direitos em jogo.
Neste segundo grupo de casos, a proteção das liberdades individuais, das quais a liberdade religiosa é uma, está em oposição às demandas desses grupos de pressão: aqui eles brigam não pelo direito de viver de acordo com a sua fé, mas pela ambição de impor a outras pessoas que elas vivam as suas vidas obedecendo dogmas comportamentais defendidos por alguns líderes evangélicos. Querem que o STF lhes garanta o direito de viver em um mundo livre de casamentos homoafetivos, embora sua liberdade de viver um casamento heterossexual não esteja ameaçada; onde todas as mulheres sejam obrigadas a levar a gravidez de um feto anencéfalo até o fim, ainda que essa liberdade continue a existir para aquelas que assim desejarem; onde crianças não possam aprender na escola valores diferentes daqueles professados por suas famílias, algo impossível de se garantir em uma sociedade plural, com famílias diversas.
Nenhuma dessas ambições é compatível com a Constituição. Por essa razão, a chave para se entender o pleito pelo ministro “terrivelmente evangélico” está menos no adjetivo e mais do advérbio: a ênfase está no terrivelmente. Esse é o termo que indica a qualidade que Jair Bolsonaro espera de seu próximo indicado: a disposição, por convicções de fé, radicalismo ideológico ou qualquer outro pretexto, de passar por cima da Constituição para entregar o que dele se espera, invocando trecho literal da Bíblia ou qualquer outra fonte de ocasião. Bolsonaro busca acima de tudo um jurista terrivelmente terrível. Que essa pessoa também quite sua dívida com a Bancada da Bíblia e com líderes de algumas denominações evangélicas é apenas um acréscimo oportuno, uma coincidência política momentânea.
Esta chave de leitura é útil para entendermos por que, entre os muitos juristas cristãos à disposição, Bolsonaro parece ter seus olhos voltados justamente aos mais terríveis: aqueles que se esforçam para demonstrar publicamente seu descompromisso com a Constituição.
O dever de um presidente da República, ao indicar um nome ao Supremo Tribunal Federal, é sempre escolher o melhor nome disponível dentro de seu leque de possibilidades políticas. Fosse seu objetivo apenas indicar uma pessoa de reconhecida fé evangélica para o tribunal, concedendo o valor intrínseco da pluralidade e sua importância simbólica e funcional em altas instâncias de poder, haveria nomes dignos à disposição de Bolsonaro. Apenas um exemplo, entre vários possíveis: Ana Paula de Barcellos, professora titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pastora da Assembleia de Deus, é uma jurista de primeira grandeza. Seu nome seria cogitável para o STF em qualquer circunstância, independentemente da promessa de indicação de um nome evangélico. De quebra, ainda aumentaria a presença de mulheres na corte. Significa muito que o entorno do presidente aparentemente sequer a considere.
Por outro lado, o presbiteriano André Mendonça, um advogado público inexpressivo até ser alçado à fama por sua disposição em se humilhar por Bolsonaro, lidera as bolsas de apostas. Sua vantagem competitiva reside não na integridade de sua fé, que não há de ser maior que a de qualquer outro cristão sincero, mas na disposição que ele demonstra em sacrificar a Constituição para adular o chefe. Sua sustentação oral cheia de referências à Bíblia no julgamento sobre liberação dos templos foi uma eloquente demonstração de que ele está disposto a instrumentalizar até mesmo sua fé para servir aos interesses políticos momentâneos do governo. É essa tibieza que o torna um atrativo valioso para um presidente que trabalha para tornar disfuncionais e inoperantes quaisquer instituições que possam exercer controle sobre o Executivo, inclusive o Supremo Tribunal Federal.
Quem é esperto, como Augusto Aras, que não é evangélico mas é terrível, percebeu que é isso que está verdadeiramente em jogo. É por isso que Aras e Mendonça embarcaram em uma constrangedora competição para demonstrar publicamente quem está mais disposto a usar os poderes de seus cargos para lamber com maior apetite a sola do Rider de Bolsonaro. A disputa, que os despe de ilibada reputação, não tem nada a ver com a sinceridade do conservadorismo cristão que ambos propagandeiam, e sim com sua disposição em ostentar falta de compromisso com instituições fundamentais de Estado (a Procuradoria-Geral da República, a Advocacia-Geral da União, o Ministério da Justiça) em benefício dos desígnios políticos imediatos do presidente. É essa falta de integridade, revelada pela disposição em se apequenar perante colegas de instituição e o restante da comunidade jurídica, que se mostra atraente a Bolsonaro: ele sabe o valor que isso pode ter em uma corte poderosa, individualista e desunida.
O desfecho do mistério quanto ao próximo nome indicado ao STF revelará muito sobre a correlação de forças no presente entre ao menos quatro polos. O primeiro, o próprio Bolsonaro, juntamente com seu entorno familiar-miliciano; o segundo, a fração de evangélicos que faz política aproximando-se dele; o terceiro, o Senado Federal e as forças políticas que nele operam, que precisarão aprovar o nome indicado; e o quarto, o próprio STF, que não deixa de se fazer ouvir, ventilando nomes de sua preferência. Embora a prerrogativa de indicar o próximo ministro seja exclusiva do presidente da República, esse poder envolve uma escolha sobre quem é possível atender (ou frustrar) nessa complicada trama.
Líderes religiosos que se aproximaram de Bolsonaro e já dão a indicação como certa precisam se lembrar que Sergio Moro, um ex-aliado politicamente muito forte e com sabidas aspirações ao STF, ficou pelo caminho quando a família Bolsonaro passou a ter dúvidas sobre seu compromisso com a impunidade dos aliados e dos filhos. Não por acaso, Flávio Bolsonaro é ao mesmo tempo o mais enrolado na Justiça e o mais ouvido conselheiro do presidente nas indicações jurídicas. Especula-se que Flávio prefira o adventista Humberto Martins, presidente do STJ, que faz o que está a seu alcance: ano passado, instaurou, de ofício, procedimento de apuração disciplinar contra Flávio Itabaiana, então juiz do caso das “rachadinhas” no Rio de Janeiro. Um indicado terrivelmente evangélico precisa fazer com que Bolsonaro acredite que ele, alçado ao Supremo, fará o possível para poupar a família do presidente, o próprio incluso, de ameaças de punição futura quando o poder lhes faltar.
A mesma promessa de um futuro sem contas a prestar na Justiça pode ser atraente para certas lideranças do Senado. Nesse quesito, as diferenças entre o governo e seus adversários se diluem: Renan Calheiros (MDB-AL), algoz de Bolsonaro na CPI da Covid-19, derrete-se publicamente em elogios a Augusto Aras, cuja sonolência tem sido decisiva para que políticos antes temerosos de serem acordados pela Polícia Federal agora despertem sem sustos. Humberto Martins, apoiado pelo Zero Um, é conterrâneo e amigo de longa data de Renan. Pelos cargos que ocupou, André Mendonça tem sido mais competente em demonstrar sua disposição em perseguir adversários do que seu compromisso de fé com a impunidade a perder de vista. Este é o cânone ao qual ele precisa demonstrar fidelidade inabalável: se conseguir fazê-lo, torna-se a melhor escolha de compromisso entre todas as forças em jogo. Ao mesmo tempo, esse mesmo critério faz com que Aras seja valioso exatamente onde está. Uma recondução à PGR pode estar de bom tamanho para ele e para Bolsonaro, ao menos por ora.
Resta saber como o STF pode influenciar no processo. A conflagração interna do tribunal, resultado da soma de falhas de desenho institucional, ambição de protagonismo político e alguma dose de falta de espírito público de alguns de seus membros, talvez seja a melhor cifra para esse enigma. No recente julgamento sobre abertura de cultos na pandemia, Dias Toffoli mostrou-se em perfeita comunhão com o novato Nunes Marques: acompanhou seu voto polêmico com uma singela fala adesista de poucos segundos, algo incomum nos julgamentos de maior visibilidade.
Toffoli, o ministro que mais parece ter se esforçado para construir uma relação pessoal com Bolsonaro, pode ver na chegada dos novos ministros uma chance para sair da irrelevância que sempre o marcou no tribunal. Ele, que sabe não ter predicados técnicos que lhe permitam se destacar entre seus pares pela qualidade de seus votos, talvez julgue que poderá se sobressair pelas habilidades associativas – uma espécie de versão nacional (e piorada) de John Marshall, lendário ex-presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos cuja inteligência política garantiu seu lugar no panteão da pátria. Diante da desunião dos demais, Toffoli, Nunes Marques e Terrivelmente Evangélico, se jogarem em sintonia, podem formar maioria em uma turma de cinco ministros e determinar a posição vencedora em casos sensíveis no plenário. Constituiriam uma espécie de Centrão togado e simbolizariam a volta por cima do baixo clero do notável saber.
Em 1965, quando o AI-2 levou Aliomar Baleeiro e outros quatro juristas ao STF, a presidência do tribunal era ocupada pelo ministro Ribeiro da Costa. Semanas antes, os demais ministros haviam votado unanimemente por acrescentar ao regimento interno do STF a seguinte disposição, inédita na história da corte: “O ministro Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa exercerá a Presidência do Supremo Tribunal Federal até o término de sua judicatura.” Ribeiro da Costa bateu de frente com Costa e Silva e ameaçou não dar posse aos ministros interventores. A resiliência do STF nos primeiros anos após o golpe de 1964 deveu-se muito à sua liderança sob os demais ministros, que garantiu coesão ao tribunal em horas sombrias.
Um tribunal rachado em facções, como o STF atual, é muito mais facilmente cooptável. Basta um ou outro ministro disposto a praticar colaboracionismo em troca de uma aliança interna que aumente seus poderes no tribunal e sua ascensão sobre os demais. Cada Supremo tem o John Marshall que merece, e cada instituição se bolsonariza à sua maneira.
¹ Christina L. Boyd, Lee Epstein e Andrew D. Martin, “Untangling the Causal Effects of Sex on Judging”, American Journal of Political Science, v. 54, n. 2, abr. 2010, pp. 389-411.
² Além de Luiz Fux, o ministro Luís Roberto Barroso é filho de mãe judia. O ministro Barroso já se declarou “antropologicamente judeu”.
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