Foto: ELTON VIANA/PREFEITURA DE MANAUS
“O mundo em torno de mim está se desfazendo”
Jornalista que vive no Amazonas há trinta anos descreve o colapso dos hospitais manauaras durante a segunda onda da pandemia
Em Manaus, cidade que sintetiza o caos instalado no Brasil por causa do coronavírus, as contaminações não param de aumentar e o colapso do sistema de saúde dificulta o socorro aos doentes mais graves. Natural de Brasília e moradora da capital amazonense há três décadas, a jornalista Izabel Santos narra os dias repletos de angústia e tormenta que vem presenciando nas últimas semanas. Em dezembro, sua cunhada pegou o vírus, manifestou sintomas preocupantes e buscou ajuda nos hospitais públicos, sem sucesso. Por sorte, a moça de 20 anos acabou se recuperando.
Em depoimento a Lianne Ceará
Manaus tem um bairro muito tradicional que se chama Praça 14 de Janeiro e que fica na Zona Sul. Todos os anos, justamente no dia 14 de janeiro, os moradores organizam uma festa de rua por lá. Mas, na semana passada, não houve festa nenhuma. A falta de oxigênio nos hospitais chocou a cidade e desautorizou qualquer comemoração. A gente costuma dizer que Manaus é um ovo, porque aqui todo mundo se conhece. Mesmo quem não tinha parente ou amigo com o vírus ficou tocado diante dos acontecimentos. A gente se coloca no lugar das pessoas, sabe?
Sou jornalista e, desde março, estou fazendo home office. Ao longo da pandemia, minha rotina não mudou muito, tirando o fato de que não saio mais para passear ou ir a restaurantes. Meu marido é funcionário público e, por um tempo, também ficou em casa, mas agora já retomou as atividades presenciais. Como sou repórter, acompanho a evolução da Covid-19 na capital há onze meses. Converso regularmente com pesquisadores que monitoram o vírus, e eles sempre batiam na tecla de que a doença se agravaria.
Em agosto, quando as escolas começaram a reabrir, o Amazonas registrou aumento no número de infectados. Houve alguns picos de morte, mas nada que se comparasse com o horror que tínhamos vivenciado em maio. Enfrentamos uma primeira onda duríssima em 2020 e achávamos que não iríamos ver algo pior do que aquilo. Estávamos enganados.
Perto do Natal, as coisas saíram do controle. Compras de fim de ano, confraternizações, amigos secretos… A cidade repetia a rotina de outros dezembros, como se o coronavírus não existisse mais, como se o sistema de saúde desse conta de todos os doentes. As pessoas já não estavam nem aí para o isolamento social. No dia 26 de dezembro, acompanhei um dos momentos mais inacreditáveis da pandemia: o governo estadual resolveu endurecer de novo as regras de distanciamento, mas a população promoveu manifestações contra a interrupção das atividades não essenciais. O pessoal saiu às ruas para protestar! Alguns até gritaram palavras de ordem em frente ao condomínio onde mora o governador Wilson Lima (PSC). Teve gente que entrou na Justiça com o intuito de barrar a suspensão. Poucas vezes vimos o governo do Amazonas tomar uma atitude tão sensata, ainda que tardia, contra o avanço da Covid-19. Parte dos amazonenses, no entanto, não entendeu dessa maneira. Pressionado, o governador recuou e abdicou das restrições. Não à toa, o caos se instalou assim que 2021 começou: gente perambulando pelas ruas em busca de cilindros de oxigênio, pessoas morrendo asfixiadas, hospitais sem vagas… Por ora, nem sequer sabemos se isso tudo tem a ver com uma nova cepa do vírus. Estamos no escuro.
O fato é que, há tempos, não podemos confiar nos hospitais públicos daqui. Se um doente precisa de cirurgia, ninguém garante que conseguirá fazê-la. Na primeira onda da pandemia, o interior do estado já tinha sofrido com a falta de oxigênio. Cheguei até a escrever uma reportagem sobre o assunto. Um morador de São Gabriel da Cachoeira pedia ajuda nas redes sociais porque o hospital onde havia se internado estava ficando sem oxigênio.
Em dezembro, minha cunhada de 20 anos manifestou sintomas que pareciam os de uma gripe. Só que o quadro piorou, e ela passou a ter febre, tosse bem forte, dores no corpo e fraqueza. Procurou, então, uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Eu a acompanhei. Quando chegamos lá, não havia médicos para atendê-la. O máximo que conseguimos foi medir a saturação de oxigênio no sangue dela, que se revelou muito boa, graças a Deus. Pedimos que a testassem, mas os funcionários disseram que não ia dar. Todos os suspeitos de estar infectados pelo coronavírus se misturavam com outros tipos de pacientes, incluindo grávidas. Em Manaus, a maioria dos lugares tem ar-condicionado, por causa do intenso calor. Ali não era diferente. Faltava ventilação natural, o que nos deixou bastante incomodadas, apesar de usarmos máscara e face shield.
Resolvemos ir para um Serviço de Pronto Atendimento (SPA), que não chega a ser um hospital, mas é maior do que uma UBS. Encontramos a porta fechada e muitas outras pessoas na mesma situação da minha cunhada. Alguém de lá me aconselhou: “Eu, se fosse a senhora, levava a moça para casa, já que a saturação dela está boa. Só hoje vi três pacotes saírem daqui.” Os “pacotes” eram mortos. Angustiada, decidi acatar a sugestão. Uns até me disseram para tentar o 28 de Agosto, maior complexo hospitalar de Manaus, mas minha cunhada estava extremamente debilitada, não tinha forças. Eu não ia arrastar a coitada pela cidade.
Por sorte, com o passar dos dias, ela acabou melhorando. Quando as coisas se acalmaram, fiz o teste de farmácia, que deu positivo, embora eu não apresentasse nenhum sintoma. Sei que esses testes são bem imprecisos, mas… Muitos recorrem aos exames de farmácia na esperança de conseguir atendimento nos hospitais: “Veja, não é apenas uma gripezinha. Deu positivo! Me atenda, por favor!” Entendo perfeitamente o desespero, sobretudo depois do que minha cunhada viveu. O caso dela não foi tão grave. Mesmo assim, nos assustou. Posso imaginar como se sentem aqueles que vão piorando em casa, sem socorro médico.
Lamentavelmente, já perdi vários conhecidos para a Covid-19. Em todas as ocasiões, a rapidez da doença me espantou. Um colega aparentemente saudável, esportista, havia postado fotos com a família no Natal. De repente, pegou o vírus, descobriu que tinha um problema de saúde preexistente e, no início do ano, morreu. Outra colega, superjovem, avisou nas redes que estava com o corona, pediu orações antes de ser intubada e, logo depois, também morreu. Sei de pessoas que montaram leitos clínicos dentro de casa, com cilindros de oxigênio, com oxímetro, na tentativa de salvar um parente que não conseguiu vaga em hospital.
Diariamente, abro o WhatsApp ou qualquer outra rede social e encontro notícias ruins. São pedidos de ajuda, desabafos, notas de pesar… É muito desgastante. Todos os que conheço parecem correr perigo. O mundo em torno de mim está se desfazendo. No resto do Brasil, as pessoas assistem à nossa situação pela tevê ou pela internet. Ficam apreensivas, mas têm a alternativa de desligar tudo e espairecer. Nós, que nos encontramos em pleno inferno, não podemos fazer o mesmo. É absolutamente impossível ignorar o caos.
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