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    “A gente ainda ouve muitos argumentos morais ou religiosos, como ‘limpar a casa é obrigação’. Mas esse diálogo precisa ser puramente jurídico e hermenêutico. A lei fala que o requisito pra remição de pena é exercer trabalho. Não há condicionantes", diz a defensora Mariela Bueno Foto: Rodrigo Zaim

questões de gênero

Trabalho doméstico pode reduzir pena de mulheres, decide Justiça

Cuidar da casa e da família não é um trabalho como outro qualquer? A pergunta foi feita por duas servidoras da Defensoria Pública do Paraná, e a resposta abriu um precedente para o país

Felippe Aníbal | 20 fev 2024_15h11
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No dia 29 de janeiro, uma segunda-feira, Ana Maria* estava em casa, em Guarapuava, no interior do Paraná, quando seu celular tocou. Do outro lado da linha, uma assistente social vinha trazendo boas novas: a Justiça havia concedido a ela uma remição de pena de catorze dias. Era uma ótima notícia para a paranaense de 47 anos, presa em regime domiciliar desde 2022, condenada a catorze anos de prisão. Mas era também uma novidade para o Brasil.

A lei brasileira determina que presos têm direito a remição de pena por trabalho ou estudo. O objetivo é ressocializar os detentos e garantir sua reinserção no mercado de trabalho. Três dias de trabalho (ou doze horas de estudo) equivalem a um dia a menos de prisão. Mas o conceito de trabalho é restrito: para os presos em regime semiaberto ou domiciliar, a Justiça costuma levar em conta apenas empregos formais, com patrão e carteira assinada. Casos como o de Ana Maria uma dona de casa que passa os dias cuidando da filha de 11 anos e dos cinco netos não são contemplados pela lei. Agora, pela primeira vez, estavam sendo.

A decisão pioneira, publicada em 26 de janeiro pela juíza Liliane Graciele Breitwisser, da Vara de Execuções Penais de Guarapuava, abre um precedente para que outros tribunais do país considerem o trabalho doméstico tão importante quanto um trabalho formal. O novo entendimento pode ajudar a diminuir a desigualdade de gênero no sistema carcerário. Presas, diferentemente de presos, não costumam ter tempo para um emprego fora de casa.

Quem teve a ideia de flexibilizar a Lei de Execuções Penais não foi a juíza. Foram duas servidoras da Defensoria Pública do Paraná: Nilva Maria Rufatto Sell e Mariela Reis Bueno.

Tudo começou em novembro de 2022. Na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, onde faz mestrado, Sell, uma assistente social de 40 anos, assistia a uma aula sobre “economia do cuidado”. O termo é usado para se referir ao trabalho doméstico, sublinhando seu caráter social. Enquanto ouvia as discussões em sala, Sell se deu conta: as mulheres que ela atendia cotidianamente na defensoria de Guarapuava tinham, sim, um trabalho. Eram, em sua maioria, presas em regime semiaberto ou domiciliar que passavam o dia em casa, cuidando de filhos e netos. Além de não serem remuneradas, não reduziam suas penas.

Sell pensou: e se o conceito de “economia do cuidado” fosse aplicado a essas mulheres? No dia seguinte à aula, procurou Bueno, defensora pública que há tempos vinha usando esse conceito em varas de família. “Guria, que coisa brilhante!”, a colega disse a Sell. Juntas, as duas elaboraram uma tese jurídica argumentando que o trabalho doméstico deve ser interpretado como uma das formas de trabalho permitidas pela Lei de Execuções Penais.

A tese foi submetida formalmente à Defensoria do Paraná, que deu sinal verde. Em setembro do ano passado, o órgão firmou um convênio institucional com a Vara de Execuções Penais, a Promotoria de Justiça de Guarapuava e o Departamento de Polícia Penal do Estado do Paraná (Deppen), normatizando a possibilidade de as mulheres abateram parte da pena por meio do trabalho doméstico. Ficou estabelecido que, para ser contabilizada, a jornada de trabalho deve durar de 6 a 8 horas por dia. Uma equipe do Deppen ficou encarregada de acompanhar o trabalho doméstico por meio de videochamadas ou de visitas presenciais randômicas, isto é, sem aviso prévio. O convênio vale só para o sistema penal de Guarapuava e é focado especificamente nas mulheres. Mas o entendimento jurídico que se aplica a elas pode beneficiar, eventualmente, homens que cuidam da casa e da família.

Assim que o projeto saiu do papel, a Defensoria apresentou à Justiça os primeiros pedidos de remição de pena por trabalho doméstico. Em janeiro, veio a decisão da juíza Breitwisser. Por ter trabalhado 43 dias em casa, Ana Maria reduziu sua pena em 14 dias. Duas semanas depois, a juíza abateu mais dez dias. Estava aberto um precedente para o resto do país.

 

Ana Maria foi condenada por crimes de roubo, tráfico de drogas e embriaguez ao volante. Ela conta que sua vida virou do avesso em 2016, quando seu filho foi assassinado, aos 16 anos. Meses depois, ela perdeu o pai e a mãe, ambos por causas naturais. Deprimida, passou a beber. Atribui a isso as infrações que cometeu e que a levaram a ser presa, em 2021.

Quando obteve autorização para cumprir a pena em regime domiciliar, em 2022, Ana Maria mudou-se para uma pequena casa que pertence à sua filha e ao seu genro (os dois moram num imóvel maior, no mesmo quarteirão). Sua única renda eram os 490 reais mensais que recebe do Bolsa Família. Depois de deixar a prisão, em 2022, ela chegou a fazer curso de auxiliar de cabeleireira, mas não conseguiu emprego na área. Passou então a se dedicar em tempo integral a cuidar da filha caçula e dos netos, que têm entre 2 e 12 anos de idade.

“Pra nós, que temos nome fichado, é quase impossível conseguir emprego. As portas se fecham. A gente se vê obrigada a ficar em casa”, diz Ana Maria, que é monitorada por meio de uma tornozeleira eletrônica. O equipamento carrega consigo um enorme tabu. Segundo ela, o reconhecimento do trabalho doméstico pela Justiça está permitindo que ela dê a “volta por cima”. Já se habituou às visitas esporádicas da equipe do Deppen, que confere se ela está trabalhando. “As meninas vêm de surpresa, aí conversam, vão anotando como estão as coisas. Eu encaro como uma visita. É bom porque assim eu tenho com quem conversar.”

Dias antes de receber a boa notícia pelo telefone, Ana Maria foi contratada como auxiliar de cozinha em uma empresa do ramo alimentício que tem convênio com o Deppen e emprega detentos. Ela recebe um salário mínimo e agora pretende ajudar a filha com os gastos.

 

Antes mesmo de ter provocado a primeira decisão judicial favorável, a tese da Defensoria paranaense repercutiu nacionalmente no meio jurídico. Com o título Economia do Cuidado: A consideração do trabalho não remunerado para fins de remição de pena, o projeto de Sell e Bueno venceu a categoria Defensoria Pública do Prêmio Innovare, que reconhece práticas que contribuam para o aprimoramento da Justiça no Brasil. A cerimônia de premiação foi realizada no dia 12 de dezembro, no Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Na ocasião, Sell e Bueno receberam o troféu das mãos do ministro Alexandre de Moraes.

Ainda em dezembro, a Defensoria firmou um convênio com a Justiça de Maringá, nos mesmos moldes do que foi estabelecido em Guarapuava. Por enquanto, só as duas cidades paranaenses têm uma regra escrita que permite a remição de pena por trabalho doméstico. O precedente jurídico que foi aberto, no entanto, pode servir de base para ações penais em outros estados. As defensoras têm se esforçado para que isso aconteça. No final do ano passado, a Defensoria do Paraná enviou ao presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministro Luís Roberto Barroso, um ofício propondo que a tese seja adotada em todo o país.

Apesar dos avanços, Sell e Bueno contam que a ideia ainda enfrenta resistência. “A gente ainda ouve muitos argumentos morais ou religiosos, como ‘limpar a casa é uma obrigação’. Mas esse é um diálogo que precisa ser puramente jurídico e hermenêutico. A lei fala que o pré-requisito [para remição] é exercer trabalho. Não coloca condicionantes. Não diz que precisa ser remunerado ou com carteira de trabalho assinada”, argumenta Bueno. A tese, segundo ela, pode ajudar a preencher outros buracos da lei, beneficiando os presos que trabalham informalmente como catadores de materiais recicláveis ou na agricultura familiar. 

O reconhecimento da “economia do cuidado” tem acontecido não só no sistema penal. Em 2021, a Argentina passou a admitir o cuidado materno no cálculo de tempo de trabalho para a aposentadoria. No Brasil, uma proposta semelhante tramita na Câmara dos Deputados. O texto, de autoria da deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC), defende que mães e gestantes possam computar, para fins de aposentadoria, um ano de tempo de serviço para cada filha ou filho nascido com vida, ou dois anos de tempo de serviço por cada criança menor de idade adotada como filho ou filha, ou por filho ou filha biológicos nascido com incapacidade permanente. O projeto está em análise na Comissão de Saúde e ainda não foi votado.

Em Guarapuava, depois da decisão pioneira no caso de Ana Maria, a Justiça deferiu os pedidos de nove presas. Outras seis aguardam decisão. Quando se viram pela primeira vez depois dessa série de decisões favoráveis, Sell e Bueno celebraram. “A gente se encontrou e se deu um abraço”, contou a assistente social. “Eu fico emocionada. Quando a gente atende essas mulheres, elas não são só um processo. A gente vê materializadas as histórias e compreende todas as dificuldades. Estamos trabalhando com uma população hipervulnerável, de mulheres empobrecidas e sem acesso a políticas emancipatórias. Com essa tese, a gente se sente como quem fez uma pequena fissura no sistema de Justiça.” 

 

* A reportagem adotou um nome fictício para preservar a identidade da personagem.

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