minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Ilustração: Carvall

anais da servidão contemporânea

Trabalho que garante a liberdade

Projeto aposta em terra e agricultura sustentável para evitar que trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão sejam novamente aliciados

Lara Machado | 01 maio 2023_10h58
A+ A- A

Em 28 de abril de 2021, um ônibus saiu de Aracatu, cidade do sudoeste da Bahia, rumo a Pedregulho, no interior de São Paulo. A bordo, moradores de Aracatu que iam trabalhar numa fazenda de café. O ônibus estava em más condições, alguns passageiros foram em pé, mas o trajeto de 1200 km, feito em cerca de 17 horas de viagem, foi concluído. Entre os 76 passageiros, estavam Taiane Nunes dos Santos, seu marido e seu filho de 1 ano e 7 meses. Aos 17 anos, ela deixou, pela primeira vez, a cidade onde nasceu e cresceu. O marido iria pra colheita, e ela seria babá das crianças que ficariam sozinhas enquanto os pais trabalhavam nos cafezais.

Segundo o combinado feito com o gato – aliciador de pessoas para trabalho escravo -, após um período de 4 meses, Taiane receberia 500 reais para cada criança cuidada. Ela ficou responsável por seis crianças. O batente começava às quatro da manhã e se estendia até às oito da noite – 16 horas de trabalho diárias, de domingo a domingo, sem folga prevista. Mesmo assim ela achou que valia a pena – e nunca se deu conta de que, em quatro meses, cada hora de trabalho renderia cerca de 1,50 reais. “Aqui em Aracatu não tem trabalho pra todo mundo, é comum ir pras plantações”, explica. “Disseram que ia ser bom, que a gente ia ter comida, que ia ter um dormida boa. Foi tudo ao contrário.”

No alojamento em Pedregulho, os quartos não tinham camas suficientes para acomodar todos os trabalhadores. Os preços dos mantimentos oferecidos eram abusivos. Já na primeira semana na fazenda, os trabalhadores manifestaram a necessidade de melhores condições, sem resultado. Faltava até água para banho. Em caso de acidentes, os trabalhadores não tinham suporte. Eles pagavam para usar as ferramentas e também foram cobrados pela passagem do ônibus da Bahia para São Paulo. As dívidas iam crescendo, já que o valor gasto com mantimentos era abatido do pagamento que seria feito ao final da colheita. Para piorar a situação, as compras precisavam ser feitas em um estabelecimento específico com alimentos superfaturados. O transporte ficava por conta do aliciador, e era impossível conseguir fazer as compras em outro lugar. 

Em 8 de junho de 2021, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, ligado à Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, chegou a Pedregulho e contabilizou 56 trabalhadores sem registro, todos de Aracatu. “Foi muito assustador porque a gente ainda não imaginava que estava passando por uma situação de trabalho análogo à escravidão”, lembra Taiane. Entre a inspeção e o resgate, os quinze dias de espera foram permeados por assédios, com os aliciadores tentando convencer os trabalhadores a deixarem tudo pra lá. Quando a proposta foi rejeitada pelos trabalhadores, a violência escalou. “Eles jogavam pedra na casa da gente a noite toda, foi desesperador. As mães precisaram colocar a mão na boca dos seus filhos para eles não chorarem.

 

Quando os agricultores voltaram a Aracatu, foram procurados para fazer parte do projeto Vida Pós-Resgate, desenvolvido pelo Ministério Público do Trabalho em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA). A ideia era oferecer aos resgatados uma atividade que assegurasse trabalho e renda, para que eles se emancipassem socialmente e não mais fossem atraídos para trabalhos em condições degradantes. “A gente estava com medo. Todo mundo achou que seria mais gente tentando nos enganar”, lembra Taiane, que agora, aos 19 anos, preside a Associação Agroecológica de Aracatu – Bahia, a Aagroab. “Numa votação me indicaram como presidente e pediram muito para assumir o cargo, porque eu era uma das poucas pessoas que sabia ler e escrever.”

Criado em 2017, o Vida Pós-Resgate surgiu para combater a alta reincidência dos casos de trabalho análogo à escravidão. Segundo Lys Sobral Cardoso, procuradora e gestora da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas) do Ministério Público do Trabalho e uma das coordenadoras do projeto, as políticas públicas atuais não são suficientes para garantir a emancipação dos resgatados: “A principal política pública de atendimento às vítimas é o seguro-desemprego – cerca de um salário mínimo por três meses. Muitas vezes, as indenizações demoram e em outras nem chegam a ser pagas. Então mesmo nos casos em que havia assistência, os casos de reincidência não eram poucos, e às vezes até para um mesmo empregador, o que mostrava que a gente precisava de uma política emancipatória de fato.” 

Segundo o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, 1,73% dos 35 mil trabalhadores resgatados da escravidão no país entre 2003 e 2017 eram vítimas reincidentes, ou seja, 613 trabalhadores foram resgatados pelo menos duas vezes no período de quinze anos. O número, que parece baixo, esconde um problema recorrente dos índices que tratam do trabalho escravo no Brasil: a subnotificação. Outra dificuldade é que muitas vezes pessoas naturalizam o trabalho análogo à escravidão – o que, aliado à dificuldade de aceso aos órgãos fiscalizadores, diminui drasticamente o número de denúncias, casos descobertos e resgates. À piauí, Taiane contou que não era a primeira vez que os aracatuenses iam para colheita. “Tem gente que vai sempre. Vai fica uns 3 a 5 meses, aí volta pra casa e no próximo ano volta de novo. Tem gente que já tem uns cinco anos nessa”. 

Com 14 mil habitantes, Aracatu ocupava em 2016, de acordo com a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), a segunda posição no ranking dos municípios baianos de origem dos trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão. O município, a 620 km de Salvador, sofre com a baixa oferta de empregos formais, e esse é um dos motivos para que os gatos consigam aliciar os trabalhadores da região. “Aqui não tem emprego pra todo mundo, só tem mercado, farmácia e lojas pequenas, então a necessidade obriga o pessoal a ir”, conta Taiane. Ainda segundo o SEI, anualmente saem de Aracatu de 2,5 mil a 3 mil pessoas.

Para Gilca Oliveira, especialista em Economia Rural, professora de economia da UFBA e uma das coordenadoras do Vida Pós Resgate, o mais preocupante da situação de Aracatu é o perfil das migrações: “É uma migração que mobiliza famílias inteiras. E é mais preocupante porque as crianças rompem o ciclo de estudos e vão naturalizando a exploração em condições análogas a escravidão.” Taiane vive isso em seu dia a dia: “Aracatu fica vazia quando as pessoas vão para a colheita. As escolas ficam com no máximo 30% dos alunos.” 

 

O Vida Pós-Resgate tem três metas definidas: mapear o que aconteceu com os trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão entre 2003 e 2016 no Mato Grosso e na Bahia; apoiar iniciativas que protejam os trabalhadores das instabilidades do mercado de trabalho; e colaborar com a análise e os ajustes de políticas públicas já existentes para a assistência de trabalhadores resgatados. O idealizador do projeto, Vitor Araújo Filgueiras, trabalhou como auditor fiscal do Ministério do Trabalho entre 2007 e 2017 e atualmente é professor no Programa de Pós-Graduação em Economia da UFBA. Segundo ele, o Vida Pós-Resgate se diferencia de outros programas da área por buscar alternativas além do mercado de trabalho tradicional. É preciso, diz ele, não deixar apenas com o trabalhador a responsabilidade de conseguir nova ocupação. “As políticas públicas que têm dominado essa temática buscam imputar ao trabalhador a responsabilidade por conseguir um emprego. Mas o que se percebe é que, em momentos de fragilidade econômica, essas pessoas permanecem vulneráveis e acabam voltando à situação de servidão”, explica. No projeto, uma das preocupações é fazer com que os resgatados produzam alimentos saudáveis que possam garantir a soberania alimentar das famílias e da comunidade e também ser comercializados.

Ações por trabalho análogo à escravidão costumam resultar em dois tipos de indenizações: por danos individuais, cujos recursos vão para cada trabalhador, e por danos coletivos, quando os recursos são dirigidos a projetos sociais ou fundações. O que o Vida Pós-Resgate faz é destinar as indenizações por danos coletivos a associações criadas pelas próprias vítimas. O dinheiro é utilizado para adquirir os insumos necessários para que os trabalhadores recomecem a vida, inclusive comprando terras.

A equipe do Vida Pós-Resgate tem trabalhado em parcerias para transformar o projeto em política pública. Isso facilitaria, por exemplo, a compra de terras, um dos entraves para que o trabalho siga adiante. Em Aracatu, os trabalhadores criaram a associação, obtiveram um CNPJ e conseguiram receber os recursos. 

Com a sustentabilidade como prioridade, o projeto quer colocar em prática um sistema integrado de produção, com criação de peixes e galinhas e cultivo de hortaliças. Como Aracatu fica no semiárido da Bahia, é preciso utilizar as tecnologias apropriadas para garantir a produção. Foram firmadas com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), voltada para soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura, e a Ater (Assistência Técnica e Extensão Rural), política do governo federal focada no aperfeiçoamento dos sistemas de produção e na facilitação de acesso a recursos, serviços e renda,  de forma sustentável, para famílias rurais.

Agora, a principal barreira a ser quebrada é a da compra da terra, porque na maior parte dos casos os terrenos não têm escritura. Segundo a procuradora Lys Cardoso, os trabalhadores de Aracatu chegaram a encontrar um terreno bom, mas problemas na documentação do terreno e do atual dono da terra atrasaram o processo. Cerca de vinte trabalhadores desistiram e voltaram para a plantação de café. Taiane, à frente da associação, luta para que as conquistas não desapareçam. “Eu sei que é uma responsabilidade enorme, mas farei tudo que é possível para dar certo. A luta segue”, afirma. Para os trabalhadores que ficaram, há uma ajuda de custo que seguirá até o momento em que o sistema produtivo estiver operando. “Está tardando mais do que esperávamos por tantos entraves burocráticos e caminhos que estão sendo trilhados pela primeira vez… esse é o custo de um projeto piloto”, defende a professora Gilca Oliveira.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí