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Trago comigo para sempre – decisões infelizes

Além da premissa frágil, chamam atenção, em especial, a exclusão do áudio dos nomes de policiais e torturadores citados em depoimentos

Eduardo Escorel | 30 jun 2016_13h00
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Algumas questões ocorrem de imediato ao assistir a Trago comigo, dirigido por Tata Amaral a partir da história dela, Matias Mariani e Thiago Dottori, roteirizada por Thiago Dottori e Willem Dias, também montador do filme.

Além da premissa frágil, chamam atenção, em especial, a exclusão do áudio dos nomes de policiais e torturadores citados em depoimentos, a tarja preta superposta às bocas dos entrevistados e a tentativa de dar ao filme alcance mais abrangente do que a história narrada efetivamente permite. Isso, sem esquecer a disparidade entre a qualidade do elenco veterano e a fraqueza da maioria das atrizes e atores jovens.

O objetivo que Trago comigo quer alcançar depende da crença, por parte do espectador, no esquecimento de Telmo Marinicov, personagem principal a cargo de Carlos Alberto Riccelli. Não se trata de questionar se um trauma, na vida real, pode afetar a memória. O problema está no âmbito do próprio filme, onde, apesar da comovente entrega de Riccelli ao seu papel, o esquecimento do personagem não é convincente, tampouco sendo plausível eventual entendimento de que Marinicov esteja, na verdade, encobrindo deliberadamente uma ocorrência trágica do passado. Com isso, Trago comigo fica no ar, sem fundamento sólido sobre o qual a trama concebida possa ser erguida e se tornar plausível.

Outro aspecto desconcertante é a justificativa para excluir os nomes de torturadores mencionados em depoimentos de ex-militantes de organizações políticas, presos e torturados entre o final da década de 1960 e início dos anos de 1970 – justificativa mal explicada através de legendas, no final do filme. A impressão é péssima quando a supressão do som e a tarja preta cobre as bocas dos entrevistados no decorrer de Trago comigo. A surpresa e incompreensão causadas podem suscitar conjectura que se trate de uma forma de censura ou auto-censura, ou quem sabe mera bossa formal, todas alternativas absurdas. Eliminar os nomes por que “nem todos foram julgados e condenados”, como a legenda final informa, também não parece fazer sentido. Em qualquer hipótese, nega aos entrevistados a satisfação de nomearem publicamente seus algozes, o que seria um direito mínimo que o filme deveria lhes conceder.

É também nas legendas finais que Trago comigo volta a atuar em prejuízo próprio, reduzindo-se a mero pretexto para mencionar questões da maior relevância, sem dúvida, mas que extrapolam seu âmbito. É isso que ocorre ao fazer referência à promulgação da Lei de Anistia, em 1979, e aos benefícios decorrentes para os torturadores; assim como à Comissão da Verdade, instituída, em 2012, e à lista de autores de violações dos direitos humanos apresentada em seu relatório final, em 2014; ao fato de que familiares ainda buscam informações sobre os desaparecidos políticos e os arquivos dos órgão de repressão militares continuarem, até hoje, fechados. Teria sido preciso articular o que é pessoal – a história da recuperação da memória de Telmo Marinicov através da encenação teatral – com o que é sistêmico – a tortura e os assassinatos adotados como intrumentos de Poder; relacionar o individual com a política de Estado. Nada do que ocorre em Trago comigo.

O efeito dessas legendas finais é devastador. Elas dão ao espectador o direito legítimo de se sentir fraudado. Afinal, passou cerca de 88’ atento ao processo de recuperação da memória de Telmo Marinicov para descobrir que, na verdade, Trago comigo quer mesmo é lhe falar de questões correlatas.

A seriedade de propósitos de Tata Amaral e sua equipe não pode ser posta em questão. Creio, porém, que em Trago comigo decisões infelizes comprometeram o resultado. É de se lamentar.

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