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    The Baths, em Virgin Gorda, nas Ilhas Virgens Britânicas - Foto: Reprodução/internet

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Trinta e quatro offshores para cada virgem

Por que os com-offshore não frequentam os paraísos onde abrem suas empresas

José Roberto de Toledo | 03 out 2021_16h52
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Duas em cada três das 29 mil offshores cujas caixas pretas contábeis foram abertas pelos Pandora Papers ficam nas paradisíacas Ilhas Virgens Britânicas (BVI). Mas essa é só uma parte, e bem pequena, delas. Há 370 mil offshores ativas nas Ilhas Virgens. 370 mil offshores significam 370 mil escritórios, certo? 370 mil salas com 370 mil aparelhos de ar condicionado, 370 mil secretárias e 370 mil cafeteiras? E se todas as secretárias de offshores esfriassem o ar e fizessem café ao mesmo tempo, o que aconteceria na pequena Road Town, capital das BVI? Um blecaute. 

Para sorte dos 24 mil virginenses que moram nas tortuosas ruas e estradas que serpenteiam pelas montanhas e praias de Tortola, ilha onde fica Road Town, essas 370 mil empresas não existem de verdade. Nem de fachada são porque nem fachada têm. São apenas nomes em folhas de papel timbrado, bits em registros de computador, ficções contábeis. 

A exemplo do que ocorre em boa parte do Caribe, as offshore se reproduziram mais que a população nativa porque, além de paraíso natural, as BVI são um paraíso fiscal – dos mais prolíficos do planeta. Os interessados em cometer elisão tributária e pagar menos impostos conseguem abrir uma empresa em dois ou três dias, e sem botar os pés lá. Por um preço módico, ganham endereço local, direito de abrir conta em dólar e isenção fiscal completa: nenhum centavo lhes será cobrado em tributos se o dinheiro vier, como sempre vem, de outro país. De quebra, a empresa fica isenta de auditoria contábil. Um paraíso para endinheirados.

Financistas e velejadores chamam de BVI (diz-se “bi-vi-ái”) esse arquipélago localizado no nordeste do Caribe. Teria sido batizado de “Ilhas Virgens” por Cristóvão Colombo, em 1493, quando o navegador se reabasteceu por lá, na volta para a Europa, após ter visto a América pela primeira vez. Reza a tradição local que Colombo se inspirou na miríade de ilhas e ilhotas para homenagear as 11 mil virgens que, com Santa Úrsula, foram martirizadas por Átila, o Huno, mil anos antes. Hoje, há 34 offshores para cada virgem – umas tão mitológicas quanto as outras.

Investidores – como o ministro Paulo Guedes, o rei da Jordânia ou o camorrista Raffaele Amato (inspirador do filme e da série de streaming “Gomorra”) – desfrutam do paraíso fiscal que abriga suas empresas e protege seu patrimônio de olhos curiosos, mas não costumam aproveitar o outro lado do paraíso. A grande maioria dos com-offshore nunca mergulhou nem sequer o dedinho nas águas cálidas e transparentes que banham as BVI. Não faz seu estilo dividir um lugar ao sol com centenas de turistas desembarcados de um navio de cruzeiro. 

A ilha de Virgin Gorda (olha o Colombo aí outra vez) fica no extremo leste do arquipélago. Lá se encontra uma das paisagens mais bonitas do mundo. O Parque Nacional The Baths é uma coleção de rochedos gigantescos empilhados entre a areia branca e o mar turquesa. Não há nada igual. As massas de granito cinza claro estão dispostas de maneira a formar grutas e corredores de pedra, num labirinto que ora está submerso, ora está no seco, dependendo da maré. Se explorado sozinho, como o rei jordaniano passeando por seus palácios ou o camorrista napolitano confinado em sua cela de prisão, “The Baths” é o céu. Quando compartilhado com uma multidão engarrafada em suas passagens estreitas, faz jus ao nome de uma de suas enseadas: The Devil’s Bay.

Além do risco de terem que abrir mão de sua exclusividade para um bando de turistas sem-offshore, há outro motivo, muito mais importante, que mantém os com-offshore fisicamente longe dos paraísos fiscais: seu dinheiro não está lá. A empresa pode estar no Caribe, mas a conta bancária milionária está em Nova York ou na Suíça – portos muito mais seguros, com regimes de governo e economias muito mais estáveis. Mais estáveis também do que a dos países que governam.

As Ilhas Virgens do mundo são apenas uma escala burocrática no caminho dos poderosos e endinheirados que patrocinam reformas tributárias em seus países de origem mas mantêm seu dinheiro em cofres bem distantes do Fisco e das leis que pretendem reformar. Posam de cidadãos do mundo, mas é só desculpa para pagar menos imposto em moeda local. Para os com-offshore, remeter seu dinheiro para o exterior é prática tão corriqueira que nem sequer lhes ocorre que isso possa parecer injusto aos sem-offshore: mesmo dinheiro, regras diferentes. Flagrados em seus exóticos hábitos financeiros, eximem-se de culpa dizendo que a remessa obedeceu às normas que eles próprios mudaram. Cada um que aplique o adjetivo que lhe parecer melhor a tal justificativa.

Impostos nasceram com a civilização, ou vice-versa. Pagá-los é uma contribuição para o bem comum. Eludi-los de maneira contumaz é para quem quer. Eludi-los por meio de offshores é para quem pode.

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