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    Operação policial na cracolândia em São Paulo Foto: Danilo Verpa/Folhapress

anais da Justiça

Um crime de cinco reais que não mudou o Brasil

O que a história de uma paulistana presa por tráfico diz sobre o combate às drogas

Felippe Aníbal | 22 set 2023_09h06
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Numa terça-feira, 17 de janeiro de 2012, Desireé Mendes andava a esmo pelo Centro de São Paulo, no entorno da Cracolândia – área que ganhou esse rótulo pejorativo devido à grande quantidade de dependentes químicos que se concentram ali. Ela própria uma dependente química, na época com 35 anos e grávida de quatro meses, Mendes tinha acabado de receber uma notícia dura: seu ex-companheiro, pai da criança, fizera um exame que revelou que ele era soropositivo. Transtornada com a possibilidade de estar também contaminada com o vírus HIV, ela usou todo o dinheiro que levava consigo – cerca de 150 reais – para comprar crack. Mas não teve tempo de consumir uma pedra sequer. Poucos minutos depois, foi abordada pela Polícia Militar e presa em flagrante por tráfico.

“Naquele dia eu tinha entrado em parafuso. Fiquei imaginando: ‘Vou morrer, tô com Aids.’ Nem pensei em mais nada. Só em usar toda droga que eu pudesse”, ela relembra. “Tinha comprado [o crack] para uso próprio. Mas quando me pegaram com a droga, tinha alguém do meu lado com 5 reais. Usaram isso para dizer que eu estava vendendo, que era tráfico.”

Mendes deu essa versão à Justiça, mas prevaleceu a acusação dos policiais. Ela já tinha antecedentes: durante os vinte anos em que frequentou a Cracolândia, foi presa ao menos dezesseis vezes, segundo se recorda. É provável que esse histórico tenha pesado contra ela no tribunal. Sem que o caso fosse investigado para averiguar quem estava falando a verdade, Mendes foi condenada a seis anos de prisão com base na Lei de Drogas.

Esse episódio reflete um padrão do Judiciário brasileiro no trato de acusações que envolvem drogas. Uma pesquisa inédita divulgada nesta sexta-feira (22) revela que 85,6% das prisões com base na Lei de Drogas ocorrem em flagrante e mais da metade desses flagrantes (50,6%) acontecem em via pública. Em 76,8% dos casos, a abordagem é feita por PMs. Os dados foram colhidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Foi analisada uma amostra de 28.851 processos de tribunais estaduais do Brasil inteiro iniciados no primeiro semestre de 2019.

Mendes se encaixa em todos os quesitos revelados pela pesquisa. Mas, mais do que isso, seu caso é revelador de um padrão do sistema prisional feminino. A Lei de Drogas, que enquadra pessoas principalmente pelos crimes de tráfico e associação para o tráfico, é a principal razão para mulheres serem presas no Brasil. Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, 55% da população carcerária feminina em junho de 2022 tinha sido detida por tráfico de drogas, associação para o tráfico ou tráfico internacional. Nos presídios masculinos, a proporção era de 27%.

Essa discrepância chamou a atenção da Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, que vem tentando pautar políticas específicas para mulheres. A Senad criou recentemente um grupo de trabalho com integrantes de oito ministérios para pensar iniciativas que garantam ao público feminino acesso a políticas públicas de diversas áreas, de modo a tentar minimizar o contingente de mulheres presas por tráfico.

Em outra frente, em parceria com o CNJ, o Ministério da Justiça pretende lançar um manual de aplicação da Lei de Drogas, com a finalidade de orientar o trabalho dos juízes. A ideia é estabelecer critérios objetivos para distinguir usuários e traficantes – esforço similar ao que está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), que pode não apenas estabelecer um critério quantitativo para distinguir porte e tráfico como pode descriminalizar o porte de drogas para consumo próprio. Segundo a diretora de Prevenção e Reinserção Social da Senad, Nara Denilse de Araújo, o manual deve ajudar a reduzir as brechas interpretativas na lei.

“A Lei de Drogas já parte do princípio do não encarceramento do usuário, mas o que a gente vê, invariavelmente, é a aplicação desordenada dessa lei”, diz Araújo. “Como não existe uma diferenciação muito clara [entre traficante e usuário], acaba tendo caracterizações a partir de critérios subjetivos, como o racial. Há uma insegurança jurídica muito grande.”

A pesquisa do Ipea com o Ministério da Justiça mostra que 46,2% dos réus da Lei de Drogas se autodeclaram negros. Como não há padronização, essa porcentagem abarca descrições como “pardo”, “mulato” e “moreno”. É provável que a proporção de negros entre os réus seja maior, já que quase um terço dos processos analisados não informava a cor dos acusados. Não ficou comprovada relação dos presos com facções criminosas em 87% dos casos, o que reforça o argumento da Senad de que se encarcera, principalmente, pequenos traficantes. 

 

Criada em 2006, a Lei de Drogas foi defendida por muitos parlamentares, na época, como um avanço na maneira como o Brasil lida com a dependência química. O projeto acabou com a punição para usuários de drogas e aumentou a pena mínima para traficantes. Mas a aplicação dessa nova lei não resultou numa diminuição das prisões relacionadas a drogas. O contingente de pessoas por tráfico triplicou entre 2006 e 2016. Pessoas que antes eram presas como usuárias passaram a ser enquadradas como traficantes, sem que houvesse – como não há até hoje – parâmetros claros para diferenciar uma coisa da outra.

Quem trabalha no dia a dia com a população carcerária considera fundamental que sejam criados esses parâmetros. A defensora pública Mariana Martins Nunes, que atuou durante oito anos em varas criminais no Paraná, atesta que, principalmente em casos de flagrante, a polícia tem recorrido a avaliações vagas para enquadrar mulheres como traficantes. O local e a aparência da pessoa, diz Nunes, aparecem frequentemente como critérios para diferenciar o que é porte de drogas e o que é tráfico.

“Como a lei não fixa o limite entre tráfico e uso, mulheres periféricas acabam presas em flagrante com pouca quantidade de droga, ainda que seja para uso próprio. Os critérios são subjetivos, até de comportamento. Os juízes perguntam quanto custou [a droga], como a pessoa conseguiu comprar… Fazem uma análise que leva à condenação sumária, mesmo que as características sejam de uso, não de tráfico”, diz Nunes, que coordena o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria Pública do Paraná.

A subjetividade da lei afeta homens e mulheres. Os homens são a imensa maioria dos presos por tráfico no Brasil, quando se considera os números absolutos (eram 623,3 mil homens e 28,7 mil mulheres, em junho de 2022). Com uma mudança na Lei de Drogas, seja pelo STF ou por outra via, o resultado que se espera é a diminuição da população carcerária tanto masculina quanto feminina. Mas, considerando o perfil dos presos, é provável que o impacto seja proporcionalmente maior nos presídios femininos. Isso porque, como explica o desembargador Ruy Muggiati, do Tribunal de Justiça do Paraná, a maioria das mulheres vai presa pelo que ele chama de “crimes de subsistência” – aqueles que têm menor potencial ofensivo e por meio dos quais elas conseguem levantar dinheiro para necessidades básicas.

No universo do tráfico, as mulheres estão, em geral, num ponto inferior da hierarquia. Os críticos da Lei de Drogas argumentam, por isso, que a prisão não é uma resposta efetiva para o problema, porque abarrota os presídios com pessoas que não têm voz de comando nas redes de tráfico e são facilmente substituíveis. Tudo isso gerando um custo alto para o Estado – estima-se que cada preso custe 1,8 mil reais por mês –, sem atingir a estrutura do tráfico.

“A Lei de Drogas aumentou muito a população carcerária sem ter trazido vantagens palpáveis à sociedade. Temos a prisão de muitos pequenos traficantes, que cometem o crime de subsistência. Cinco minutos depois da prisão, já tem outra pessoa no lugar da pessoa que foi presa. Desse jeito, não se sobe à hierarquia. Tem que se chegar a quem controla essa estrutura”, argumenta Muggiati, que supervisiona o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo (GMF) do Tribunal de Justiça do Paraná.

O fato de a maior parte das prisões ser feita em flagrante, e pela Polícia Militar, é um reflexo dessa baixa eficácia da política antidrogas, diz Muggiati. A PM é responsável, no Brasil, pelo policiamento preventivo e ostensivo. Disso decorre que o índice de prisões com base em investigações é muito pequeno. Os líderes das quadrilhas não perambulam pela Cracolândia à vista da PM. 

“A investigação é importante para identificar o controle da rede. Se você tirar de circulação o grupo que controla, a rede cai por inteiro, como um castelo de cartas. Mas não é isso o que, em regra, acontece”, afirma o desembargador.

A pesquisa “Perfil do processado e produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas”, divulgada nesta sexta-feira, além de revelar que 8 a cada 10 prisões por tráfico são feitas por policiais militares, mostra que em 33% dos casos os PMs decidiram agir motivados por “comportamento suspeito” – um critério subjetivo e, do ponto de vista do combate ao crime, superficial. Em 13% dos processos analisados, houve relaxamento da prisão já na audiência de custódia, quando um juiz avalia preliminarmente a legalidade da detenção.

 

Antes daquela terça-feira, em janeiro de 2012, Desireé Mendes já tinha sido presa por tráfico de drogas. Ela confessa que, ao longo dos anos em que frequentou a Cracolândia, vendeu pequenas porções de drogas como forma de levantar dinheiro para sustentar a própria dependência química e se alimentar – aquilo que Ruy Muggiati chamaria de “crime de subsistência”. A dependência química de Mendes serviu de porta de entrada para o crime. “Não posso dizer que não trafiquei. Eu vendia, fumava, dormia na calçada. Vendia por causa do meu vício. Não ganhei dinheiro. Pra mim, o tráfico só trouxe prejuízo.”

Muggiati e a defensora pública Mariana Nunes contam que casos como o de Mendes aparecem todos os dias nas varas criminais. Na avaliação deles, o poder público precisa pensar em políticas que foquem na redução de danos e na assistência multidisciplinar aos dependentes químicos. Os dois defendem que os usuários sequer deveriam ser presos.

“O problema é que a questão é tratada com um viés punitivista. O importante seria, ao se constatar que a pessoa é usuária de drogas, o enquadramento como usuária prevalecer sobre a eventual venda que ela esteja fazendo, e encaminhar para o tratamento adequado a partir dessa constatação”, diz Nunes. “Como a pessoa dependente vai fazer se, em dado momento, não tiver recursos para adquirir [a droga]? Vai ter que praticar uma venda. Legalmente, essa pessoa não poderia sequer ser imputável. Mas como vai se descobrir isso, num contexto em que a investigação policial praticamente inexiste?”, lamenta Muggiati.

Em 2012, quando ainda estava presa, Desireé Mendes deu à luz Enzo, seu quarto filho. O episódio foi traumático: segundo ela, seis policiais militares a escoltavam na sala de parto, como se ela fosse uma criminosa de alta periculosidade. Na verdade, não foi a primeira vez: dez anos antes, quando nasceu seu segundo filho, ela também estava presa. Não foi escoltada, mas os policiais militares a algemaram ao leito hospitalar pelos pés e pelas mãos. 

Enzo nasceu com plena saúde, mas Mendes temia que ela e o filho estivessem contaminados com HIV. Pediu um exame. O resultado chegou dez dias depois, com resultado negativo. Naquele dia, Mendes decidiu “virar a chave”. “Ali, resolvi mudar de vida. É contraditório, porque a prisão, que tem o ambiente mais hostil que você possa imaginar e comete todo tipo de violação contra você, foi o que salvou minha vida”, ela relembra. ‘Mas isso porque eu tomei a decisão. O sistema, em si, não regenera ninguém. Pelo contrário: ele te esmaga.”

Por meio de um habeas corpus, Mendes conquistou, já em 2012, o direito de recorrer da condenação em liberdade. Restou uma multa de mais de 10 mil reais, que ela vem pagando desde então em parcelas. Fora da prisão, Mendes retornou à casa da mãe. A ressocialização não foi fácil. Ela diz ter recebido dezenas de nãos, nas inúmeras tentativas que fez de conseguir um emprego. “Eu não conseguia emprego para picar cebola, para varrer uma rua. Quando chegava na questão dos antecedentes [criminais], era rua. As pessoas desistem, porque o caminho é cheio de humilhações, e aí reincidem. Se não trafica, se não rouba, não tem dinheiro. O sistema é feito para punir até quando você já está do lado de fora.”

A situação melhorou quando Mendes passou a vender brigadeiros que ela mesmo fazia. Tomou gosto pela culinária e, em seguida, trabalhou por cinco anos como chef confeiteira num bistrô, onde desenvolveu, segundo ela, uma sobremesa campeã de vendas. Tornou-se um típico exemplo de superação e, como tal, foi convidada a dar palestras em programas de ressocialização e também para internas da Fundação Casa. Graduou-se no curso de Gastronomia da Universidade Mackenzie, em um programa de inclusão para ex-detentas.

Aos 45 anos, Mendes trabalha hoje como confeiteira autônoma. As encomendas chegam, principalmente, a partir de sua página no Instagram. Ela sabe que seu caso de superação é uma exceção. Muitas ex-presidiárias carregam o estigma da prisão por toda a vida e não conseguem voltar ao mercado de trabalho. “A ideia não é ressocializar? Então por que nunca ninguém me perguntou nada? Ninguém perguntou se eu tinha arroz em casa ou se meus filhos estavam passando por dificuldade. O sistema é feito para acabar com você, para te manter submissa, humilhada. Ressocialização não existe”, ela diz. “A minha ressocialização eu fiz sozinha. Consegui, apesar do sistema. Dei muita sorte. E sei que isso é raro.”

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