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    O primeiro-tenente Guilherme Mendonça conversando com o youtuber americano Gen Kimura durante uma batida policial, em abril Foto: Reprodução

anais da segurança pública

Um olho no youtuber, outro no coach

Tenente que levou americano para operação policial em São Paulo já atuou na segurança de Pablo Marçal, pré-candidato a prefeito

João Batista Jr. | 27 jun 2024_13h52
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O policial sai da viatura, olha para a frente e fuma um cigarro pendurado na boca. Quepe na cabeça, bigode aparado. “Este é o tenente Mendonça”, diz o youtuber Gen Kimura, que narra o vídeo em inglês. “Ele vai nos mostrar exatamente como é um dia na vida de uma polícia militar.” Diante da câmera, o policial exibe um por um os armamentos básicos da PM: rifle, espingarda e fuzil. Em seguida, embarca Kimura na viatura, ao lado de um cinegrafista e outros dois policiais, para acompanhar uma patrulha em favelas de São Paulo. O tenente, falando em inglês, exibe seu comprometimento com a profissão: “Isto não é um emprego, na verdade. É uma vocação.”

O passeio, durante o qual o youtuber americano acompanhou perseguições e batidas policiais, acumula 1,7 milhão de visualizações. A existência do vídeo foi revelada pela Folha de S.Paulo na última terça-feira (25) e resultou numa sindicância interna da PM, que afastou preliminarmente cinco policiais envolvidos na gravação. As irregularidades são várias: os agentes permitiram que Kimura, um civil, segurasse armas de alto calibre; invadiram casas sem mandado; e disseram, em tom jocoso, que comemoram mortes de criminosos com “charutos e cervejas”.

A identidade dos policiais não foi revelada pela PM. A piauí, contudo, identificou o tenente: trata-se de Guilherme Augusto Mendonça, de 29 anos. Além de trabalhar na polícia, ele atuou recentemente como segurança de Pablo Marçal, coach e pré-candidato a prefeito de São Paulo pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB). Em vídeos publicados por Marçal no Instagram e no TikTok, o tenente aparece atrás dele, à paisana, com fones de ouvido brancos, típicos de equipes de segurança. As gravações foram feitas num ato de pré-campanha. Na ocasião, Marçal discursava na rua, afirmando que não tem como “humanos controlarem a segurança pública” em uma cidade com 12 milhões de habitantes; seria preciso investir em inteligência. “Vamos dar um cerco nos bandidos”, prometeu.

Um frame de um dos vídeos: Pablo Marçal aparece em primeiro plano, com o tenente Guilherme Mendonça ao fundo, no centro da imagem

 

Policiais da ativa não podem trabalhar como seguranças privados, diz o Regimento Disciplinar da PM. Dentre os diferentes graus de infração (leve, média e grave), essa figura entre as graves. A piauí entrou em contato com a corporação, que afirmou já ter recebido essa denúncia contra Mendonça e aberto sindicância para investigá-lo. “Se constatada a transgressão disciplinar, o envolvido será responsabilizado nos termos do Regulamento Disciplinar da instituição”, afirma a nota enviada pela assessoria da polícia.

A piauí procurou Pablo Marçal, que não retornou os contatos da reportagem. Já o seu advogado, Tássio Renam Souza Botelho, justificou a presença do PM no ato de pré-campanha: “Ele estava ali só naquele dia, como simpatizante e ajudante. A posteriori, certamente o contrataria, desde que tivesse o afastamento da polícia.” Em seguida, complementou: “Ele não recebeu por esse trabalho.” A piauí indagou, portanto, se Mendonça havia feito a segurança de Marçal gratuitamente. “Isso”, confirmou Botelho.

“Tem muita gente que está se juntando [à pré-campanha] e que não é do time do Marçal”, disse o empresário Filipe Sabará. Ex-secretário-executivo de Desenvolvimento Social e ex-presidente do Conselho do Fundo Social do governo Tarcísio de Freitas, ele está coordenando o programa de governo do coach e é cotado para ser seu vice. “Eu deixei o governo para atuar na campanha de forma voluntária. Tem outros na mesma situação, como fotógrafo, gente que faz vídeo”, continuou, explicando a aparição do tenente nos vídeos. “São pessoas que o conhecem pela internet, que tiveram suas vidas tocadas com os ensinamentos de empreendedorismo e querem ajudar.”

Procurado pela piauí em seu celular, na quarta-feira (26), o tenente Mendonça atendeu. Ao tomar conhecimento do que se tratava, no entanto, disse estar com problema para escutar a ligação e desligou. Depois bloqueou o número do repórter. A piauí telefonou também para o 18º Batalhão da PM, onde Mendonça é lotado. Um cabo atendeu e disse que ia chamá-lo para o telefone. Depois de alguns instantes, pediu o celular do repórter, afirmando que o tenente telefonaria mais tarde, o que não aconteceu até a publicação desta reportagem.

 

Pablo Marçal tinha, no final de maio, 7% das intenções de voto dos paulistanos, segundo a pesquisa estimulada do Datafolha. Com isso, empatava tecnicamente com a deputada federal Tabata Amaral (PSB) e o apresentador José Luiz Datena (PSDB), ambos com 8%. O resultado surpreendeu muita gente, mas Marçal não é uma novidade completa. Em 2022, elegeu-se deputado federal pelo Pros com 243 mil votos. Não assumiu o cargo porque sua candidatura foi impugnada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) devido a problemas na documentação.

A popularidade do influencer de 37 anos se explica, em boa medida, pelo exército digital que ele formou nos últimos anos, graças sobretudo à sua profícua carreira de coach. Ele tem 11 milhões de seguidores no Instagram, 3,3 milhões no YouTube e 2 milhões no TikTok. Bolsonarista, afirma que só resolveu se candidatar a prefeito porque Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente, não foi chancelado pelo PL de Valdemar Costa Neto.

O entorno de Marçal rendeu notícias nas últimas semanas. O pré-candidato anunciou ter contratado como chefe de sua equipe de segurança o tenente-coronel Edson Luís Souza de Melo, da PM goiana. O policial fez fama ao capturar Lázaro Barbosa, serial killer que assombrou Goiás em 2021. Mas, em abril deste ano, foi afastado da PM depois que tornou-se público um vídeo gravado por seus comandados, que aparecem cantando uma música com apologia ao assassinato. “Matar o bandido, acende uma vela, bota ele na mala”, diz a canção, insinuando também violência contra eventuais testemunhas: “Se pego, atiro.” Depois dessa polêmica, o UOL entrevistou Marçal e perguntou se ele manteria Melo como seu chefe de segurança: “Claro que vou mantê-lo”, respondeu o pré-candidato. “É um homem honrado.”

Marçal lançou, há poucos dias, um curso motivacional intitulado “Super Humano”, elaborado em parceria com Renato Cariani, influenciador do universo fitness que acumula 8 milhões de seguidores no Instagram. As aulas prometem aos alunos “plenitude no corpo, na alma e no espírito”. Cariani é réu por tráfico de drogas, associação criminosa e lavagem de dinheiro. Segundo investigação da Polícia Federal, ele e suas empresas desviaram 12 toneladas de produtos químicos, entre eles cloridrato de lidocaína e manito, para abastecer o narcotráfico.

O tenente Mendonça, portanto, é um acréscimo à lista de apoiadores enrolados de Marçal. A PM paulista não confirmou, até o fechamento desta reportagem, se o policial está entre os cinco que foram afastados das funções por terem participado do vídeo de Gen Kimura. O portal Metrópoles identificou outro PM que aparece na gravação: Rodrigo Fernandes Cabral, comandante do 18º Batalhão. O vídeo sugere que a presepada foi feita com autorização de Cabral, que aparece cumprimentando o youtuber com um aperto de mão. A Folha de S.Paulo, por sua vez, noticiou que um dos sargentos filmados está entre os réus da chacina de Paraisópolis, ocorrida em 2019. Ele se chama Gabriel Luís de Oliveira. No vídeo, é ele quem diz que a PM celebra a morte de criminosos com “charutos e cervejas”.

Mendonça, o segurança particular de Marçal, fala inglês e, por isso, se comportou como um cicerone do youtuber durante o passeio em São Paulo. Abriu as portas do batalhão, permitiu ser filmado malhando e deu ao americano uma breve explicação sobre as favelas paulistanas. Sentou no banco do carona durante a patrulha. “Somos uma polícia especial, com policiais especiais e viaturas especiais”, explicou, para um Kimura impressionado.

Enquanto tudo isso acontece, Guilherme Derrite, secretário de Segurança Pública de São Paulo, responsável pela PM, passeia por Portugal. Está entre os palestrantes do Fórum Jurídico de Lisboa, badalado evento organizado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes.

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