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    Castanheira derrubada na BR-163 Foto: Divulgação/PRF

questões ambientais

Uma castanheira no meio do caminho

Por que a derrubada de uma árvore centenária na Amazônia simboliza à perfeição o governo Bolsonaro

Roberto Kaz | 24 nov 2022_07h02
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Sinédoque: a parte pelo todo. Uma árvore gigante, centenária, assassinada na Amazônia para que seu tronco obstruísse uma estrada. Um resumo perfeito – e, por perfeito, também óbvio, caricato – dos quatro anos de destruição ambiental do governo Bolsonaro.

O crime ocorreu em Novo Progresso, no Pará, uma das cidades campeãs em desmatamento do estado campeão em desmatamento, num Brasil que viu o desmatamento ser transformado em política oficial. Foi na sexta-feira, 4 de novembro, poucos dias depois do resultado da eleição presidencial, quando manifestantes, vestidos de verde e amarelo, fechavam estradas país afora, em protesto contra a derrota de Jair Bolsonaro. Na maior parte do Brasil, as barricadas eram feitas com pneus, montes de terra, paus ou carros e caminhões estacionados nas vias, quase sempre sob a vista grossa da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Na BR-163, porém, optou-se por um obstáculo mais inusitado: uma castanheira de 30 metros – espécime de corte proibido –, que vivia à beira da estrada, colada a uma plantação de soja. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.

Poderia ser só mais uma das milhares de árvores decepadas, dia após dia, na Amazônia do governo Bolsonaro. Mas tudo, nesse caso, é muitíssimo simbólico: a cidade, a castanheira, a estrada.

Com 26 mil habitantes, Novo Progresso ganhou protagonismo nacional nos últimos anos. Foi lá que fazendeiros instituíram o Dia do Fogo, em agosto de 2019 – a queima generalizada da floresta, em apoio a Bolsonaro, que levou uma nuvem cinza a viajar pelo país até escurecer o céu de São Paulo. Foi lá que, depois da eleição, bolsonaristas jogaram pedras e deram tiros contra agentes da PRF, que tentavam desfazer uma barricada, após dias de conivência com o vandalismo. E foi lá, entre todas as cidades amazônicas, onde Bolsonaro demonstrou mais força no segundo turno: recebeu 82,9% dos votos.

A escolha da árvore tampouco se deu de maneira aleatória. A castanheira é uma espécie vistosa (pode chegar a 50 metros de altura), longeva (em alguns casos, ultrapassa os 500 anos) e rara (corre risco de extinção, segundo o Ministério do Meio Ambiente). Levá-la ao chão significa afrontar a nobreza e a resiliência da floresta. Não à toa, a árvore é protegida por uma lei estadual, sancionada em 2006 pelo então governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), e um decreto federal, assinado pela ministra Marina Silva durante o primeiro governo Lula, também em 2006. Hoje, quando se vê uma castanheira solitária, provendo a única sombra para meia dúzia de bois magros num descampado amazônico, entende-se que a cena não resulta do acaso, mas de imposições legais.

Por fim, a BR-163, que corta o Pará na vertical, ligando a soja do Centro-Oeste ao Porto de Santarém, é tão personagem na história recente de destruição da Amazônia quanto Bolsonaro e seu ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Asfalto, na floresta, equivale a desmatamento. É pela estrada que chegam tratores, escavadeiras e caminhões com gado, e é pela estrada que se escoa parte da madeira e do ouro extraídos ilegalmente. Além de Novo Progresso, a BR-163 cruza Altamira, outra campeã em desmatamento. É um corredor do agro – e da morte.

Em Novo Progresso, é raro achar quem aceite ter o nome publicado numa reportagem. Os habitantes temem a represália dos madeireiros e garimpeiros irregulares. O que se conta por ali é que o dia 4 de novembro começou agitado, com caminhoneiros bloqueando a BR-163 na saída que leva ao Porto de Miritituba, localizado no Rio Tapajós. “Aí houve uma ação da PRF para desarmar o bloqueio”, contou um morador. “Possivelmente, um grupo que estava do outro lado, vendo que a rodovia foi aberta, resolveu derrubar a árvore.” A nova barricada, com a castanheira, surgiu 18 km acima, em direção ao porto. “Me disseram que o grupo usou uma escavadeira para botar a árvore abaixo. A queda não teve nada a ver com vento, temporal ou algo do gênero”, continuou o morador.      A castanheira permaneceu algumas horas na rodovia de mão dupla, enquanto uma fila de carros e caminhões se formava nos dois sentidos. A PRF visitou o local, mas nada pôde fazer diante do peso da árvore. No fim da manhã, os funcionários de uma fazenda dos arredores apareceram com um trator e uma motosserra, usada para cortar o tronco em três partes. Aos pedaços, a castanheira foi empurrada pelo trator para fora da via. O trânsito voltou a circular.

O Ministério Público Federal pediu fotos e informações à PRF, mas, por ora, não há nem mesmo um inquérito em andamento. É provável que o caso acabe esquecido, como tantos outros crimes ambientais na região. O esquecimento será até compreensível, porque não faltam crimes: 2022 ainda nem terminou e já registra a maior taxa de desmatamento na floresta dos últimos catorze anos, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

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