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    Intervenção em fotos de Tomaz Silva/Agência Brasil e Onofre Veras/Folhapress

anais da violência

Uma investigação, duas narrativas

Fato incomum, delegado e promotoras dão entrevistas separadas sobre prisão de acusados de matar Marielle; governador pega carona

Allan de Abreu | 12 mar 2019_23h16
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Mais de cem jornalistas lotaram o auditório do Palácio da Guanabara, sede do governo fluminense, no bairro de Laranjeiras, Zona Sul do Rio, na terça-feira, 12. Às 11h30, com um atraso de meia hora, o governador, Wilson Witzel, o vice Cláudio Castro e três delegados perfilaram-se atrás da mesa no palco, sob o estalo frenético das câmeras. Era o início da entrevista coletiva em que a Polícia Civil apresentou detalhes da Operação Lume, que horas antes levara à prisão dois acusados pelo assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Gomes, em março do ano passado.

Na mesa e nas cadeiras do recinto, nenhum representante do Ministério Público do Rio, que também atua diretamente na investigação. As quatro promotoras responsáveis pelo caso preferiram falar com os jornalistas em uma segunda entrevista coletiva, que começou horas depois, na sede da corporação. Repórteres que cobrem a área de segurança pública no Rio dizem não se recordar de outra ocasião em que polícia e promotoria dessem duas entrevistas coletivas distintas para tratar de uma mesma operação. Desde o segundo semestre do ano passado, o Ministério Público e a Delegacia de Homicídios têm divergido sobre a investigação do crime.

Na madrugada do mesmo dia, por volta das 4h30 da manhã, o policial militar reformado Ronnie Lessa, 48 anos, e o ex-PM Elcio Vieira de Queiroz, 46, foram presos, e em seguida denunciados à Justiça pelo assassinato de Marielle e de Anderson. Para a polícia e o Ministério Público, Queiroz dirigiu o carro utilizado na noite do crime, um Cobalt prata, e Lessa, do banco de trás, fez os disparos com uma metralhadora.

Ambos são suspeitos de integrar milícias da Zona Oeste do Rio e de envolvimento com o jogo do bicho – Queiroz já teve uma academia na comunidade de Rio das Pedras, Zona Oeste, berço dos grupos paramilitares cariocas, e Lessa, segundo as investigações, já foi integrante do “Escritório do Crime”, grupo de sicários que matam a mando da milícia e do jogo do bicho. Ronnie Lessa também é suspeito de tráfico de armas – na casa de um amigo de Lessa no Méier, Zona Norte da cidade, os policiais encontraram 117 fuzis M-16 desmontados.

Ao centro da mesa, o ex-juiz federal Witzel, que durante a última campanha eleitoral participara de um comício em que foi exibida uma placa em homenagem a Marielle rachada ao meio, exaltou o trabalho da Polícia Civil pela “elucidação de um crime bárbaro e inaceitável”. O governador também disse que, assim que tomou posse, no início de janeiro, reuniu-se com o delegado que cuida do caso, Giniton Lages, um dos presentes à mesa. “Pedi que Giniton me apresentasse as linhas de investigação para que eu pudesse colaborar com a minha experiência de 17 anos de magistratura.”

Lembrando sua campanha eleitoral, Witzel criticou o sucateamento da Polícia Civil e prometeu abrir concurso público para a contratação de mil novos policiais. Ele também exaltou as câmeras de reconhecimento facial instaladas em Copacabana em fevereiro, sem qualquer relação com a investigação do caso Marielle. “Vamos ampliar para toda a grande metrópole.”

Witzel disse ter convidado as promotoras para participar da entrevista coletiva no Palácio Guanabara, o que, segundo ele, foi recusado. Sobre a decisão de fazer as entrevistas separadamente, a promotora Simone Sibilio do Nascimento, do Gaeco (braço do Ministério Público que investiga o crime organizado), deixou implícito o desconforto em participar do evento na sede do governo fluminense: “Todas as coletivas à imprensa são feitas no prédio do Ministério Público, na Cidade da Polícia ou no CICC [Centro Integrado de Comando e Controle]. Preferimos fazer aqui.” Em contraponto ao discurso de Witzel, as promotoras se limitaram a analisar o caso tecnicamente. “Hoje não é dia de sorrir, é dia de refletir”, disse a promotora Eliane de Lima Pereira.

Lages e Nascimento convergiram em um ponto: Lessa e Queiroz mataram Marielle e Anderson por não simpatizarem com políticos de esquerda. Segundo o delegado, nos dias que antecederam o crime, Lessa, que já foi filiado ao MDB, pesquisou na internet informações sobre Marielle e sobre o deputado federal Marcelo Freixo, de quem a vereadora morta havia sido assessora. Suas pesquisas, entretanto, não se limitaram a militantes de esquerda – ele também buscou por informações sobre militares, como Walter Braga Netto, na época interventor federal na Secretaria de Segurança Pública do Rio. A pesquisa de Marielle foi mais profunda – Lessa, segundo o delegado, teve acesso a informações particulares sobre a parlamentar, como seu endereço residencial, por meio do Infoseg, banco de dados que só é acessado por policiais na ativa. Como Lessa é reformado e Queiroz foi expulso da corporação, o delegado acredita que eles tenham tido auxílio de outros policiais. Apesar de enfatizarem a ojeriza da dupla a militantes de esquerda, tanto Lages quanto a promotora Nascimento evitaram afirmar que foi um crime de ódio. “Tecnicamente, não existe esse termo no direito. Foi um motivo torpe.” Tampouco descartam que haja um mandante, embora o delegado diga não ter ideia de quem seja. “Hoje não sabemos se havia mandantes, se ele agiu sozinho. Isso tudo está na segunda fase da investigação”, afirmou Lages.

O delegado Lages exibiu aos jornalistas slides sobre o inquérito de 29 volumes e 5,7 mil páginas. A apresentação veio recheada de números sobre a investigação: 230 depoimentos, 33.329 linhas telefônicas analisadas e 533 gigabytes de dados telemáticos.

Por meio de dezenas de câmeras de segurança, a polícia conseguiu rastrear o trajeto do Cobalt prata desde a tarde daquele dia 14 de março de 2018 – a sequência das cenas foi exibida pelo delegado Lages durante a entrevista coletiva. Às 17h24, o carro surgiu na Barra da Tijuca, Zona Oeste, em um lugar conhecido como “Quebra-mar”. Passou pelo Alto da Boa Vista, às 18h chegou à Tijuca e 47 minutos mais tarde estacionou na rua dos Inválidos, Centro, onde Marielle participaria de um evento na Casa das Pretas. Por volta das 21h o carro começou a seguir o veículo de Marielle, até o Estácio, onde foram feitos os disparos fatais. Em nenhum momento os ocupantes do Cobalt desceram do veículo.

O “Quebra-mar” da Barra fica a três quilômetros do condomínio fechado onde mora Lessa e também o presidente da República, Jair Bolsonaro – durante a campanha eleitoral do ano passado, Queiroz, que é filiado ao DEM desde 2011, publicou em suas redes sociais uma foto dele ao lado do então candidato à Presidência.

Tanto Elcio Queiroz quanto Ronnie Lessa são figuras conhecidas no submundo do crime. Lessa atuou no Bope, a tropa de elite da PM do Rio, e também como “adido militar” na Polícia Civil. Tornou-se segurança do contraventor Rogério Andrade e, em 2009, perdeu parte de uma das pernas em um atentado a bomba, o que motivou sua aposentadoria por invalidez.

O delegado Lages não revela detalhes sobre os meios utilizados pela polícia para chegar até Lessa. Diz apenas que seu nome apareceu nas investigações em outubro, quando o envolvimento do “Escritório do Crime” na morte de Marielle já era uma linha de investigação do Ministério Público. O setor de inteligência do Ministério Público comprovou a presença de Lessa no Cobalt por meio da análise de câmeras com sinal infravermelho. As imagens traziam uma mancha escura nos braços do atirador. Eram tatuagens muito semelhantes à do PM reformado. A comparação das imagens com as características físicas de Lessa levaram os promotores a concluírem ser ele o atirador. Por meio de análises de antena de celular e de mensagens trocadas por Lessa, os investigadores chegaram ao segundo suspeito, Queiroz, outro PM que enveredou pelo crime – ele foi expulso da corporação após uma operação policial de 2011 revelar que ele integrava um grupo de policiais que dava proteção a bingos ilegais na cidade. O MP descartou a presença de um terceiro ocupante no Cobalt, que até esta terça-feira não havia sido localizado.

Uma segunda fase da investigação pretende alcançar possíveis mandantes do crime e também elucidar o que motivou os assassinatos, para além do “ódio a militantes dos direitos humanos” por parte de Ronnie Lessa, conforme ressaltado pelos delegados e promotores. O major Ronald Paulo Alves Pereira, apontado como líder do “Escritório do Crime” e suspeito de participar das mortes de Marielle e Anderson, não foi citado nas duas coletivas.

A deflagração da operação estava prevista para esta quarta-feira, dia 13, mas foi antecipada para terça-feira, segundo a promotora Nascimento, depois de surgirem indícios de vazamento da operação. Tanto Lessa quanto Queiroz foram presos às 4h30 nas ruas em frente às suas casas. Segundo a promotora do Gaeco, Queiroz admitiu aos policiais que o prenderam que soubera da operação. Além das duas prisões, foram cumpridos 34 mandados de busca. “É uma antecipação da segunda fase da operação, que segue agora sob sigilo”, disse o delegado Lages.

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