Betania Santos no palco, em uma das apresentações da ópera Maria de Buenos Aires - FOTO: RAFAEL SALVADOR/Divulgação
Uma prostituta no palco do Municipal
Betania Santos relata como entrou para o elenco de uma ópera para viver seu próprio papel
Aos 48 anos, Betania Santos estreou no palco do Theatro Municipal de São Paulo interpretando a si mesma: uma prostituta. A maranhense fez parte da montagem paulista da ópera-tango María de Buenos Aires, do compositor argentino Astor Piazzolla. O papel principal, de María, coube à soprano Catalina Cuervo. Com direção-geral do cineasta Kiko Goifman e música da Orquestra Sinfônica Municipal, o espetáculo teve ingressos esgotados para as oito apresentações, realizadas ao longo deste mês de setembro. No relato a seguir, Betania conta o que sentiu ao pisar no palco centenário e como tudo só foi possível graças a Gabriela Leite, principal nome da luta pelos direitos das prostitutas no Brasil, morta em 2013.
(Em depoimento a Lia Hama)
“Sou Betania Santos, tenho 48 anos, sou prostituta, mulher, mãe, ativista, educadora.” Essa é a minha fala, que abre a montagem da ópera María de Buenos Aires. A peça, que esteve em cartaz até o último dia 19, trata da vida e da morte de uma prostituta na capital argentina. O diretor Kiko Goifman procurou a Daspu, grife carioca criada para dar visibilidade às mulheres que exercem o trabalho sexual, para que nós participássemos do espetáculo. Eu desfilo pela marca há nove anos. Foi assim, então, que eu e mais três colegas – a diretora da Daspu, Elaine Bortolanza, e as atrizes Dannyele Cavalcante e Lua Negra – passamos a fazer parte do elenco.
Muitos me perguntam se essa foi a primeira vez que pisei no Theatro Municipal, como se uma trabalhadora sexual não pudesse se interessar por cultura. Isso é o preconceito que as pessoas têm contra nós. Eu estive no Municipal várias vezes, inclusive acompanhando um cliente para assistir a um monólogo da atriz Fernanda Montenegro. Não posso dar detalhes, porque a discrição é a alma do meu negócio.
No palco, sim, foi minha primeira vez. Mas não tive que atuar – estava ali como a prostituta que sou. Tenho o pé no chão, então não me iludi achando que poderia ingressar numa nova profissão. Não sou atriz, sou puta. Havia, no palco, um cenário com mesa de bar onde eu e minhas colegas ficávamos sentadas. Nós o apelidamos de “cantinho da Daspu”. Fora a minha apresentação inicial no começo da peça, não tínhamos outras falas. Estávamos ali como convidadas. A Orquestra Sinfônica Musical ficava no canto oposto a nós e, no centro do palco, se apresentavam os cantores líricos e os dançarinos do Balé da Cidade de São Paulo.
Algumas pessoas consideram arrogância da minha parte não me sentir a última bolacha do pacote por ter me apresentado no Municipal. Mas o teatro é um local público. Não deveria ser novidade uma puta estar ali. Espero que isso seja visto como normal e que outras Marias possam ocupar esse espaço, que é de todos nós. A sociedade tenta nos deixar à margem, como seres invisíveis. Mas não estou à margem da sociedade, estou dentro dela, inclusive como arrimo de família.
Escolhi ser puta quando tinha 18 anos. Foi uma decisão minha, não foi falta de opção. Deixei minha cidade natal no Maranhão, Caxias, e vim para São Paulo determinada a exercer o trabalho sexual. Nunca escondi isso da minha família. Meu pai, que era marceneiro e hoje é falecido, se envergonhava. Dizia que eu tinha ido à cidade grande ser técnica em enfermagem. Uma vez, minha madrasta disse assim para ele: “Se Betania estiver por perto, vai te corrigir e vai ficar feio. Então é melhor dizer a verdade.”
Foi graças ao dinheiro de puta que criei minhas três filhas e fiz cursos de formação de cabeleireira, massagista e educadora. Agora, por conta do sucesso que a ópera fez, e pelo fato de eu ser a única prostituta de verdade em cena, venho dando muitas entrevistas. Tem sido uma forma de tentar quebrar o tabu que cerca o trabalho sexual.
A história de María de Buenos Aires é a de todas nós que exercemos a profissão mais antiga do mundo. Somos muitas Marias desde a bíblica Maria Madalena. Não sei se entendi direito o que o autor da ópera [Astor Piazzolla] quis dizer, mas, para mim, María de Buenos Aires foi uma mulher à frente de seu tempo. Era livre, transgressora e não tinha pudor em ser puta. É como me sinto também.
Nós, da Daspu, nos consideramos filhas da prostituta e ativista Gabriela Leite [1951-2013]. Graças ao trabalho dela, ocupamos o palco do Theatro Municipal de São Paulo. Sem Gabi, não haveria Daspu, e, sem Daspu, não teríamos chegado até o palco do Municipal. Quando estávamos ali, sentimos o tempo todo a presença dela.
Gabi era uma mulher pequenina, mas de coragem gigante. Nos anos 1970, largou a faculdade de Ciências Sociais da USP para se tornar prostituta. Em 1987, promoveu o Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas e passou a liderar a luta pelo reconhecimento dos direitos das profissionais do sexo no país. Em 1992, fundou a ONG Davida, de apoio às prostitutas, e em 2005, a Daspu – ou “das putas”, uma brincadeira com o nome da grife de luxo Daslu –, que deu visibilidade à causa. Pela Daspu, já desfilei em lugares como o MASP (Museu de Arte de São Paulo) e o Sesc Pompeia, também em São Paulo.
No Brasil, todo coletivo de putas está ligado à história de Gabi. Ela foi uma das pioneiras do movimento. Quando morreu, no dia 10 de outubro de 2013, senti que era preciso dar continuidade à causa. Foi como se escutasse ela dizer: “Filha, a água está batendo na sua bunda, agora aprende a nadar.” Eu dirijo a Associação Mulheres Guerreiras: Profissionais do Sexo Unidas pelo Respeito, que luta pelos direitos das prostitutas da região de Campinas (SP), onde moro. Somos ligadas à CUT (Central Única dos Trabalhadores).
Trabalho no Jardim Itatinga, uma das maiores zonas de prostituição da América Latina, aqui em Campinas. Eu lembro que, poucos dias depois da morte de Gabi, a polícia fechou o bairro, onde funcionavam, na época, 117 estabelecimentos voltados para o trabalho sexual. Isso porque um policial foi assassinado e a PM dizia que os assassinos estavam escondidos ali. Inspiradas pela luta da Gabi, eu e minhas companheiras decidimos então bloquear a Rodovia Santos Dumont, que fica ali perto, exigindo a abertura do nosso local de trabalho. Deu certo, e os estabelecimentos voltaram a abrir as portas no mesmo dia.
Em 2014, discuti com a categoria a regulamentação do trabalho sexual, com base no Projeto de Lei Gabriela Leite, de autoria do então deputado federal Jean Wyllys (Psol-RJ). O texto diferencia o trabalho sexual, que deve ser regulamentado, do crime de exploração sexual [isto é, apropriação total ou maior que os 50% do rendimento da atividade sexual por terceiros; não pagamento do serviço sexual; forçar alguém a se prostituir; prostituição de menores de 18 anos]. O projeto propõe legalizar as casas de prostituição, desde que nelas não se exerça a exploração sexual, e prevê benefícios, como aposentadoria após 25 anos de trabalho. Infelizmente, por conta da chegada desse “desgoverno” federal, Jean renunciou ao mandato, saiu do país e o PL não foi para frente. Mas nós seguimos lutando.
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