FOTO: DIVULGAÇÃO/CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA
Vacina em causa própria
Veterinário que comanda o Departamento de Imunização do Ministério da Saúde inclui a própria categoria na fila prioritária de vacinação contra a Covid-19
Apesar da escassez de vacinas no Brasil, o veterinário Laurício Monteiro Cruz, diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, assinou um ofício no último dia 18 incluindo a sua categoria profissional entre aquelas que têm acesso prioritário à imunização contra a Covid-19. Agora, ao lado de médicos e enfermeiros da linha de frente do combate à pandemia, os veterinários estão na lista dos primeiros a serem vacinados no país. Cruz, além de trabalhar no ministério, preside o Conselho Regional de Medicina Veterinária do Distrito Federal, órgão responsável por fiscalizar o setor e expedir carteiras profissionais.
No documento, Cruz afirma que “os médicos-veterinários atuam em diversas frentes e estão inseridos nas clínicas, hospitais, defesa sanitária, desempenhando atividades que vão desde a gestão até a vigilância de zoonoses, vigilância ambiental em saúde, epidemiológica e sanitária, o que os torna mais suscetíveis à doença”. Ele solicita que “todos os postos dos municípios, estados e do Distrito Federal disponibilizem a vacina” para veterinários. Para ter acesso às doses, explica o diretor, basta que eles apresentem sua carteira de identidade profissional.
O ofício foi uma resposta ao Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), que no dia 11 de janeiro havia pedido ao Ministério da Saúde que informasse se veterinários e seus “respectivos técnicos e auxiliares” faziam parte do grupo prioritário da vacinação contra a Covid. Em caso afirmativo, a entidade queria saber como eles poderiam comprovar seu vínculo com o trabalho hospitalar, “visto que os estabelecimentos veterinários não estão inseridos no rol do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde”.
Ao incluir os veterinários no começo da fila da vacinação, Cruz citou um informe do Ministério da Saúde, publicado no mesmo dia 18, em que são detalhados os grupos prioritários da campanha nacional de imunização. O documento é baseado na Resolução nº 287 de 1998, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que considera que categorias como enfermeiros, fisioterapeutas e veterinários são profissionais de saúde como quaisquer outros. Teriam, portanto, a mesma prioridade que os médicos na hora de serem vacinados.
O CNS considera como trabalhadores de saúde catorze categorias profissionais de nível superior. A lista contempla funcionários de recepção, segurança, limpeza, transporte de pacientes, além daqueles que muitas vezes trabalham na informalidade, como cuidadores de idosos e doulas. Levando em conta apenas dez do total de catorze categorias, trata-se de 4,4 milhões de brasileiros. O cálculo foi feito pelo professor Mário Scheffer, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, em uma nota técnica publicada pela Rede de Pesquisa Solidária. “Se incluirmos todos esses grupos, os formais e os informais, serão muito mais de 5 milhões de pessoas”, observou Scheffer. Além disso, são necessárias duas doses para que a pessoa fique imunizada.
“A meta, ao final, tem que ser a cobertura vacinal em massa de todos eles, mas não temos vacina para isso. Então é preciso hierarquizar”, explica o especialista. “A prioridade absoluta, sem discussão, é daqueles que trabalham com pacientes de Covid internados. Em seguida, aqueles que cobrem serviços de urgência e emergência, maternidade e atenção primária, que fazem triagem e encaminhamento de pacientes suspeitos, incluindo o pessoal de apoio.”
Para o pesquisador, na ausência de uma diretriz nacional adequada para a vacinação, um ofício como o assinado por Cruz “só tumultua”. “Você cria favoritismos de determinadas categorias profissionais. Parece mais uma intenção de furar a fila”, criticou. Scheffer afirmou que a carteira de registro profissional não deveria ser usada como critério para a vacina, e sim as características da ocupação de cada profissional e o risco a que estão expostos.
Formado em medicina veterinária pelo Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro-Oeste (UNIDESC), faculdade particular de Goiás, Laurício Monteiro Cruz foi nomeado para o Departamento de Imunização por Eduardo Pazuello quando este ainda era ministro-interino, em agosto de 2020. O veterinário é filiado ao PL, partido comandado por Valdemar Costa Neto, e assumiu o posto como parte da negociação do presidente Jair Bolsonaro com o Centrão para fortalecer a base aliada do governo no Congresso.
Sua nomeação, em substituição a um servidor de carreira, foi criticada à época por Wanderson Oliveira, que foi secretário nacional de Vigilância Sanitária durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta. “Nada contra os veterinários, mas essa pessoa que colocaram para coordenar o Programa Nacional de Imunização é um veterinário sem experiência com imunização”, lamentou Oliveira, no final de agosto. Para o professor Mário Scheffer, o acúmulo de cargos de Cruz – que está ao mesmo tempo no ministério e no Conselho Regional de Medicina Veterinária – “demonstra conflito de interesses e uma visão técnica inadequada num momento de escassez de vacinas”.
A campanha de vacinação contra a Covid começou no último dia 17 em São Paulo, minutos depois de a Anvisa – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – aprovar o uso emergencial da CoronaVac, vacina fabricada pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac. Sua utilização foi desacreditada por Bolsonaro, que em diversas ocasiões questionou a eficácia do imunizante e chegou a dizer que o Brasil não aceitaria a tecnologia chinesa. Agora, no entanto, ele depende dela para dar conta da campanha de imunização.
O governo federal apostou na vacina elaborada pela Universidade de Oxford e a farmacêutica britânica AstraZeneca, que seria produzida pela Fiocruz. Mas a produção dessa vacina depende da compra de insumos vindos da Índia, o que não se concretizou até agora. Na última quarta-feira, a Fiocruz previu que a vacina deve começar a ser distribuída só em março.
Como diretor do Departamento de Imunização, Laurício Monteiro Cruz é responsável, entre outras coisas, pela aquisição e distribuição de seringas e agulhas. Recentemente, em ofício encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, o Ministério da Saúde admitiu que o abastecimento desses produtos pode ser insuficiente em ao menos sete estados. A pasta afirmou que “atualmente, o quantitativo disponível no conjunto dos estados é suficiente para o início da campanha, em janeiro e fevereiro, uma vez que o fornecimento e a distribuição das vacinas serão realizados de forma gradual, de acordo com a disponibilidade dos laboratórios”.
O país dispõe, por ora, de apenas 6 milhões de doses da CoronaVac para a primeira fase da campanha, que inclui grupos de risco como idosos, pessoas com deficiências físicas internadas em instituições e indígenas em terras demarcadas. O plano de imunização do Ministério da Saúde coloca na linha de acesso prioritário à vacina, sem distinguir etapas e cronogramas, todos os operadores do sistema hospitalar brasileiro.
Na nota publicada pela Rede de Pesquisa Solidária, Scheffer critica o fato de que, “apesar da urgência, o país segue sem metas objetivas e prazos definidos e até mesmo sem saber quem são e quantos são os que compõem os grupos prioritários”. Ele lamenta que a “ausência de planejamento, a omissão de informações, os atrasos na aquisição de itens estratégicos e a falta de insumos para o enfrentamento da Covid-19 têm sido constantes no longo intervalo de tempo desde fevereiro de 2020, quando foi registrado o primeiro caso no país, até janeiro de 2021”.
Questionado pela piauí a respeito da decisão de incluir os veterinários entre os grupos com prioridade para vacinação, o Ministério da Saúde afirmou apenas que “a programação para o início da imunização de cada fase depende do quantitativo de doses entregues pelos laboratórios fornecedores de vacinas aprovadas pela Anvisa. Portanto, este cronograma deverá ser constantemente atualizado, uma vez que dependerá de vacinas disponíveis”.
A pasta disse ainda que orienta os entes federados a seguirem o plano de operacionalização, mas que “o SUS é tripartite e, portanto, estados e municípios têm autonomia para estabelecerem a ordem de vacinação dentro das peculiaridades de cada localidade de modo que melhor atenda a população”
*Reportagem atualizada às 16:59 do dia 20/01 para incluir nota enviada pelo Ministério da Saúde.
Foi repórter da piauí. É autora de A Organização: A Odebrecht e o Esquema de Corrupção que Chocou o Mundo (Companhia das Letras)
Foi repórter da piauí. Na Folha de S.Paulo, foi correspondente em Nova York e repórter de política em São Paulo e Brasília
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