Bolsonaro, investigado pela PF sob suspeita de ter fraudado o cartão de vacina Foto: Pedro Ladeira/Folhapress
‘Vacinadora’ de Bolsonaro nega ter imunizado ex-presidente
Técnica de enfermagem disse à piauí que já havia deixado setor de imunizações; depoimento dela ainda será ouvido pela PF
A técnica de enfermagem Silvana de Oliveira Pereira, de 36 anos, teve um dia normal de trabalho naquela sexta-feira, 14 de outubro de 2022, na Unidade Pré-Hospitalar do Pilar, em Duque de Caxias-RJ, na Baixada Fluminense. Ela trabalhava na emergência do hospital, em uma jornada de 12 horas, e não mais no setor de imunização. Seu nome, no entanto, foi envolvido no esquema criminoso que supostamente teria beneficiado o ex-presidente Jair Bolsonaro e a filha Laura Bolsonaro com a emissão de um certificado de vacinação contra a Covid – e que seria, de acordo com a investigação da Polícia Federal, parte de um plano para facilitar a entrada deles e outros auxiliares do ex-presidente nos Estados Unidos. Segundo dados obtidos pelos investigadores no Sistema da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), Silvana teria aplicado em Jair Bolsonaro uma vacina da fabricante Pfizer, lote FP7082, no Centro Municipal de Saúde de Duque de Caxias, no dia 14 de outubro do ano passado. O registro, porém, é falso, segundo a PF. À piauí, a técnica de enfermagem confirmou que jamais aplicou vacina no ex-presidente.
“Eu desconheço tudo isso”, disse Silvana de Oliveira Pereira à piauí. A técnica de enfermagem disse que sequer aplicava vacinas naquela data. O período em que trabalhou na vacinação de Covid, segundo ela, foi apenas no ano de 2021, quando estava lotada em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). “Trabalho na prefeitura há alguns anos e não estou entendendo nada”, disse ela, que lamentou ter tido seu nome envolvido no escândalo. A técnica de enfermagem afirmou também desconhecer as duas pessoas apontadas pela PF como operadoras do sistema de informações que teriam feito a inclusão e a exclusão dos falsos dados de vacinação em Duque de Caxias.
Além dela, outra pessoa que aparece no Sistema da Rede Nacional de Dados em Saúde como tendo aplicado a vacina em Jair Bolsonaro é Diego da Silva Pires, de 36 anos, também morador de Duque de Caxias. De acordo com os dados lançados no sistema, Diego Pires teria aplicado no então presidente uma dose da vacina Pfizer-Cominarty, lote PCA0084, em 13 de agosto de 2022, também no Centro Municipal de Saúde de Duque de Caxias. A piauí entrou em contato com ele. Por mensagem de WhatsApp, Pires disse apenas: “Não sou médico”. Pires também questionou como a reportagem conseguiu seu número e, em seguida, bloqueou o contato.
No parecer encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria-Geral da República pediu a tomada de depoimentos de Silvana de Oliveira Pereira e Diego da Silva Pires durante a investigação. O ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou que a PF ouça os dois em um prazo de cinco dias. Essa foi uma das medidas determinadas por ele na Operação Venire, deflagrada nesta quarta-feira, 3 de maio.
O ministro determinou a prisão do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens de Jair Bolsonaro na Presidência, e de outras cinco pessoas. A Operação Venire também incluiu a inédita realização de busca e apreensão no endereço residencial de Jair Bolsonaro, em um condomínio em Brasília.
Espécie de braço direito do ex-presidente, Cid é quem teria iniciado, segundo a PF, uma série de ações que resultaram no lançamento de dados fraudados no sistema do SUS e na emissão de comprovantes de vacinação falsos para Bolsonaro; para a filha dele, Laura Bolsonaro; de seu ajudante de ordens no Planalto, o coronel Mauro Cid; da esposa e das filhas de Cid; e de um deputado bolsonarista, Gutemberg Reis (MDB-RJ). Com isso, alguns auxiliares de Jair Bolsonaro na presidência “puderam emitir os respectivos certificados de vacinação e utilizá-los para burlarem as restrições sanitárias vigentes imposta pelos Poderes Públicos (Brasil e Estados Unidos) destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa, no caso, a pandemia de covid-19”, escreveu o delegado da Polícia Federal responsável pelo caso.
A PF ressaltou que dois assessores do ex-presidente, Max Guilherme Machado de Moura e Sérgio Rocha Cordeiro, que teriam que acompanhar Bolsonaro na sua estadia nos Estados Unidos, necessitavam, para isso, obter o certificado de vacinação contra a Covid. Do mesmo modo, Mauro Cesar Cid e a esposa, Gabriela Santiago Cid, precisavam de um certificado de vacinação para atenderem ao requisito de entrada em território americano.
De acordo com a investigação, a trama criminosa começou com Mauro Cesar Cid em busca de um certificado de vacinação para a esposa. Ele pediu ajuda a Luis Marcos dos Reis, também ajudante de ordens da Presidência da República. Reis contatou um sobrinho médico, Farley Vinicius Alcântara, que emitiu um cartão de vacinação da Secretaria de Saúde do Estado de Goiás, preenchido com duas doses da vacina contra a Covid em nome de Gabriela Santiago Cid, com as datas de 17/08/2021 e 09/11/2021.
Depois disso, mostra a investigação, houve uma mudança de DDD. As novas emissões de registros de vacinação foram feitas no município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, com participação direta do secretário municipal de Governo do município, João Carlos de Sousa Brecha. Outros servidores do município teriam participado ou da inclusão ou da exclusão das informações de vacinação de Bolsonaro no Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), que também foi fraudado. Sim, inclusão e exclusão: poucos dias após a emissão dos registros de vacinação e da emissão do certificado de vacinação, os nomes foram apagados do sistema, como se nunca tivessem sido vacinados.
Os investigadores não têm dúvidas de que Bolsonaro tinha “plena ciência” das fraudes. “Os elementos informativos colhidos demonstraram coerência lógica e temporal desde a inserção dos dados falsos no sistema SI-PNI até a geração dos certificados de vacinação contra a Covid-19, indicando que JAIR BOLSONARO, MAURO CESAR CID e, possivelmente, MARCELO COSTA CAMARA tinham plena ciência da inserção fraudulenta dos dados de vacinação, se quedando inertes em relação a tais fatos até o presente momento”, diz o relatório da PF. Para chegar a essa conclusão, listam o fato de que “o acesso ao aplicativo ConecteSUS e as consequentes emissões de certificado de vacinação contra a Covid-19 nos dias 22 e 27 de dezembro de 2022, pelo usuário do ex-presidente da República JAIR BOLSONARO foram realizados no Palácio do Planalto”.
O ministro Alexandre de Moraes concordou com essa observação. “É plausível, lógica e robusta a linha investigativa sobre a possibilidade de o ex-presidente da República, de maneira velada e mediante inserção de dados falsos nos sistemas do SUS, buscar para si e para terceiros eventuais vantagens advindas da efetiva imunização, especialmente considerado o fato de não ter conseguido a reeleição nas eleições gerais de 2022”, escreveu o ministro do Supremo. Ele também ressaltou o notório posicionamento público de Jair Messias Bolsonaro contra a vacinação, objeto da CPI da Pandemia e de investigações no STF.
Os crimes que a Polícia Federal vai apurar são: infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores. Somente a inserção de dados falsos em sistema de informação federal tem pena de dois a doze anos de prisão mais multa, exatamente igual ao crime de corrupção. A Operação Venire levou à prisão preventiva de Mauro Cesar Barbosa Cid, Max Guilherme Machado de Moura, Sergio Rocha Cordeiro, Ailton Gonçalves Moraes de Barros, Luis Marcos dos Reis e João Carlos de Sousa Brecha. A reportagem ainda não conseguiu contato com eles.
Após a execução do mandado de busca e apreensão em sua casa, Bolsonaro afirmou, em coletiva, que não tomou vacinas contra Covid e não fraudou os dados de vacinação. Mas a investigação o contradiz. Segundo a PF, um dos certificados de vacinação contra Covid foi emitido pelo usuário do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no aplicativo ConecteSUS, exatamente um dia após a inserção de dados no sistema.
A apreensão do celular de Bolsonaro pela PF trouxe um elemento adicional de expectativa a respeito dos desdobramentos das investigações contra o ex-presidente. Bolsonaro é investigado em uma série de inquéritos e, caso surjam novos elementos, nada impede que provas obtidas nesta quarta sirvam para alimentar outras investigações. A própria Operação Venire se deu no âmbito do chamado inquérito das Milícias Digitais. Esse inquérito mira uma suposta organização criminosa focada em atacar integrantes de instituições públicas como o Supremo Tribunal Federal, desacreditar o processo eleitoral brasileiro e reforçar o discurso de polarização, além de estimular a animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes da República, além de outros crimes.
A PF já avisou que é importante o compartilhamento das provas deste inquérito com aquele outro que apura os fatos relacionados ao 8 de janeiro. “Seja nas redes sociais, seja na realização de inserções de dados falsos de vacinação contra a Covid-19, ou no planejamento de um golpe de Estado, o elemento que une seus integrantes está sempre presente, qual seja, a atuação no sentido de proteger e garantir a permanência no poder das pessoas que representam a ideologia professada”, diz o relatório da PF que embasou a Operação Venire.
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