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    Ilustração de Paula Cardoso

questões de saúde

Vagas em UTI e respiradores artificiais: as exigências do coronavírus

Brasil tem dois leitos de terapia intensiva para cada 10 mil adultos, e sobrecarga de hospitais é risco para controle da doença; no auge da crise, Wuhan, na China, usou 2,6 leitos para 10 mil adultos

Emily Almeida, Amanda Rossi e Luiza Ferraz | 13 mar 2020_12h08
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Na madrugada de 6 de março, a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Regional da Asa Norte, referência no atendimento ao SUS em Brasília, recebeu uma paciente de 52 anos vinda de um hospital particular. O motivo da transferência, alegou a rede privada, era a falta de preparo para lidar com o caso, ainda inédito no Brasil: a paciente havia recebido resultado positivo para o exame de SARS-COV2, o nome oficial novo coronavírus, e era o primeiro caso grave no Brasil. Uma semana depois, a mulher permanecia internada na UTI do SUS, em estado crítico, e respirava com a ajuda de um respirador artificial – a chamada ventilação mecânica, que auxilia a entrada e saída de ar nos pulmões em casos de baixos níveis de oxigênio no sangue.

Conseguir um leito na UTI e acesso a respiradores artificiais não foi um problema para o caso grave número um do Brasil, nem na rede privada, nem na pública. Mas, com o aumento esperado no número de pessoas infectadas pelo novo coronavírus, o país pode enfrentar a escassez desses recursos de saúde, considerados os mais importantes no tratamento de pacientes em estado crítico. No centro da China e no norte da Itália, as regiões mais afetadas pela pandemia até agora, a estrutura de tratamento intensivo ficou saturada e não deu conta de atender a alta demanda. Na cidade chinesa de Wuhan, ponto de origem do vírus, dois novos hospitais precisaram ser construídos em menos de um mês para comportar o alto número de internações. Já na Itália, incapaz de reproduzir o ritmo chinês de construção, a Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Ressuscitação e Tratamento Intensivo publicou um manual de recomendações éticas sugerindo dar prioridade na UTI para os pacientes com maior chance de sobreviver. “Um cenário desse tipo pode ser comparado ao campo da ‘medicina de desastres’”, diz o guia, fazendo referência às escolhas médicas em situações de guerra, por exemplo.

No Brasil, existem 50 mil leitos em UTIs, sendo 33 mil para adultos, e 65 mil respiradores. Em média, são 2 leitos de UTI para cada 10 mil adultos, para casos de todo tipo, de infarto do miocárdio a transplantes. O cálculo leva em conta apenas os adultos porque são raros os casos de crianças e adolescentes com Covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus. É 23% a menos do que foi necessário para atender os pacientes críticos de coronavírus em Wuhan nos dias de pico da epidemia – 2,6 leitos de UTI para cada 10 mil adultos, segundo estudo publicado pela Universidade Harvard, em 10 de março. A quantidade de internações nas UTIs de Wuhan chegou a 2.087 por dia – número equivalente ao total de leitos nas UTIs de toda a cidade do Rio de Janeiro. Segundo o Chinese Center for Disease Control and Prevention, 5% dos casos de coronavírus na China precisaram de tratamento intensivo.

No auge da superlotação das UTIs em Wuhan, a taxa de mortalidade pelo Covid-19 chegou a 4,5%, segundo o estudo divulgado por Harvard. Já no restante da China, onde a capacidade do sistema de saúde não foi excedida, foi de 0,8%. “Exceder a capacidade do sistema de saúde também pode reduzir a qualidade do atendimento, como não dar acesso a um ventilador, o que aumenta a taxa de mortalidade”, diz o estudo. O mesmo está acontecendo na Itália, onde a taxa de mortalidade já passa de 5%. ”Cada respirador vale como ouro”, relatou nas redes sociais o médico Daniele Macchini, que atende pacientes com Covid-19 em Bérgamo, no norte da Itália, epicentro da doença no país. Sem leitos disponíveis, pacientes tiveram de ser internados em centros cirúrgicos.

Até 12 de março, o Brasil registrava 77 casos confirmados do novo coronavírus. É um número similar ao da Itália dezenove dias antes (62). Nesse período, o número de casos no país europeu foi multiplicado por 200 e se aproxima de 13 mil. Se o Brasil não conseguir conter a transmissão e o número de casos seguir a trajetória italiana, a disponibilidade de leitos nas UTIs pode se revelar um obstáculo para o tratamento dos casos graves. A situação é mais grave na rede pública. “No Brasil, metade dos leitos de UTI atende quem tem acesso a saúde suplementar [plano de saúde]. A outra metade atende quem usa o SUS. Só que 25% da população têm acesso a saúde suplementar e 75% utiliza o SUS. Isso significa que, no Brasil do SUS, há uma vaga em UTI para cada 10 mil adultos, enquanto no Brasil da saúde suplementar, são 4 para cada 10 mil. São dois ‘brasis’ diferentes”, afirma Ederlon Rezende, membro do conselho consultivo da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) e diretor do Serviço de Medicina Intensiva do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. 

Em um primeiro momento, os casos registrados no Brasil eram de pessoas contaminadas em viagens ao exterior, com perfil de renda alta – um público que tem maior acesso a planos de saúde. Os dois primeiros casos foram confirmados no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, um dos mais conceituados – e mais caros – da rede privada do Brasil. Agora, o país está entrando em um segundo momento, com transmissão interna, o que deve exigir mais da rede pública. “A partir de agora, teremos um problema importante. Pessoas que utilizam o SUS vão começar a ser atingidas”, diz Rezende. Segundo o médico intensivista, a rede privada tem uma taxa de ocupação de 75% nas UTIs para adultos. Já o SUS, acima de 95%. “Nossa capacidade para uma situação dessa dentro do SUS é absolutamente reduzida”. 

Em janeiro, o Ministério da Saúde iniciou os preparativos para contratar mais mil leitos de UTI por conta do coronavírus. Nesta quinta (13), anunciou que pretende lançar novo edital para obter mais mil, além de contratar 5,8 mil médicos extras. Além disso, para poupar os leitos de UTI do SUS, a Ministério da Saúde não irá mais permitir que as unidades particulares de saúde transfiram seus pacientes com coronavírus para a rede do SUS – como ocorreu com a primeira paciente do DF – segundo o secretário executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo.

A situação dos respiradores é menos grave, avalia Rezende. São 65 mil equipamentos no país, sendo 43,7 mil em condições de uso pelo SUS, segundo o Ministério da Saúde. Uma das aplicações do respirador é auxiliar pacientes com quadro de pneumonia, a complicação mais comum em casos de Covid-19. A experiência dos países mais afetados mostra que o uso do respirador é mais frequente no coronavírus do que em outras infecções virais, como a gripe. “A taxa de uso de ventilação mecânica na UTI [nos tratamentos em geral] varia de 25% a 60%”, diz o médico intensivista Leonardo Rolim Ferraz, gerente do Departamento de Pacientes Graves do Hospital Israelita Albert Einstein. Já no caso do coronavírus, essa taxa pode ser duas vezes maior. Em Wuhan, na China, pesquisadores monitoraram 52 pacientes com Covid-19 em estado grave, que apresentaram pneumonia. O resultado, publicado na revista científica The Lancet no final de fevereiro, mostra que 71% deles precisaram de ventilação mecânica. 

 

“Esperamos o melhor cenário, mas temos que nos preparar para um possível pior cenário, e sermos mais pró-ativos do que reativos”, diz a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, em comunicado no início de março. O pior cenário é uma situação como a do norte da Itália. Devido à explosão no número de casos e à incapacidade da estrutura de saúde de atender a todos, as equipes de saúde estão sendo obrigadas a tomar decisões extremamente difíceis. “Pode ser necessário estabelecer um limite de idade para a entrada na UTI. Não se trata de fazer juízo de valor, mas de reservar os recursos, que podem ser muito escassos, em primeiro lugar para aqueles com maior probabilidade de sobreviver. E, em segundo lugar, para aqueles que podem ter mais anos de vida salvos, com o objetivo de maximizar os benefícios para a maioria das pessoas”, recomenda o manual da Sociedade Italiana de Anestesia e Tratamento Intensivo. Esses critérios não se aplicam apenas aos pacientes com Covid-19, mas a todos que precisam de UTI. Isso mostra que o prejuízo para a saúde pública ultrapassa os grupos de risco do coronavírus.

Para evitar o pior cenário, é preciso se antecipar ao problema, diz o epidemiologista Marc Lipsitch, diretor do Center for Communicable Disease Dynamics (CCDD) da Universidade de Harvard. Em Wuhan, o auge de internações na UTI ocorreu cerca de um mês depois do início da quarentena, no final de janeiro. O motivo, explica Lipsitch, é que “leva bastante tempo até que uma pessoa infectada precise de tratamento intensivo. Nós não devemos nos preocupar com a situação de hoje, mas com a situação que vamos enfrentar daqui a quatro semanas”. 

Para não sobrecarregar o sistema de saúde, não basta preparar a rede hospitalar. Especialistas dizem que é preciso tomar medidas para reduzir a velocidade do contágio, como restrições de aglomerações – cancelamento de aulas, partidas esportivas, eventos religiosos. Assim, o número de casos não cresce de uma vez. No estudo sobre as internações na UTI em Wuhan, os pesquisadores também analisaram os números de Guangzhou, a mil quilômetros de Wuhan, no extremo sul da China, perto de Hong Kong. A cidade de 13 milhões de habitantes deu início a medidas de isolamento social apenas uma semana depois do registro dos primeiros casos. Foi o suficiente para alterar radicalmente o cenário nos hospitais. No pico da epidemia em Guangzhou, o número de pacientes com Covid-19 internados em UTI foi de apenas quinze por dia. “Guangzhou é um ótimo exemplo da importância de ‘achatar a curva’”, explica o epidemiologista Lipsitch, de Harvard, que colaborou com o estudo. No jargão da epidemiologia, “achatar a curva” quer dizer evitar um pico de casos muito grande em um período muito curto, que pode levar o sistema de saúde à exaustão. O melhor é que os casos estejam mais distribuídos ao longo do tempo, para não esgotar os recursos de saúde. 

O vice-diretor de Serviços Clínicos do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz), Estevão Portela, chama a atenção para as consequências de possíveis medidas de isolamento em um país com condições socioeconômicas como as do Brasil. “Vamos ter que aprender com o que está sendo feito lá fora em termos de afastamento social, mas sempre observando a linha tênue entre o que é realmente imprescindível e benéfico, e o que é duvidoso e pode nos causar problemas [sociais e econômicos]. Afastar as pessoas do trabalho pode ser prejudicial para autônomos que lidam com o público. Motorista de aplicativo, por exemplo”, alerta.

Além de limitar aglomerações, especialistas dizem que é importante ter uma percepção adequada sobre o número de casos. Para isso, é preciso fazer testes de Covid-19 em uma grande quantidade de pessoas. Um número baixo de casos pode ser apenas o reflexo de um número baixo de testagens – e, equivocadamente, levar autoridades de saúde a evitarem tomar medidas de contenção mais severas. De acordo com o Ministério da Saúde, foram realizados 843 exames para o novo coronavírus no Brasil. Nesta terça-feira, o órgão decidiu ampliar o grupo de pessoas passíveis de serem submetidas a testes de Covid-19 em cidades que já tiveram casos confirmados. Entre elas estão pessoas que deram entrada em unidades de saúde com quadro gripal leve ou grave, mesmo que não tenham viajado para o exterior ou tido contato direto com pessoas infectadas. A produção de testes diagnósticos está a cargo da Fiocruz, que já produziu 30 mil kits e tem capacidade para produzir mais 20 mil novos kits por semana. Os insumos estão sendo distribuídos pelo país. Segundo o secretário de Vigilância em Saúde do ministério, Wanderson Kleber de Oliveira, até o fim do mês, laboratórios nos 26 estados e no Distrito Federal devem estar capacitados para realizar testes de diagnósticos. 

Na teoria, a existência de um serviço universal, único, gratuito e garantido pela Constituição Federal como dever do Estado – o caso do SUS – é um ponto a favor do Brasil no que se refere à capacidade de combater a pandemia. Nos Estados Unidos, por exemplo, fazer um teste de coronavírus pode custar centenas de dólares. Atendimento em UTI, outros milhares. Além disso, a legislação americana não prevê licença médica remunerada – quem deixar de trabalhar por conta da doença terá o dia de serviço descontado, o que pode desestimular que doentes fiquem em casa para reduzir a propagação do vírus. 

O gargalo brasileiro é de outra ordem. Portela, da Fiocruz, admite que há “vulnerabilidades” na estrutura de saúde pública do Brasil e que o desempenho do enfrentamento ao coronavírus vai depender das particularidades do SUS em cada lugar do país. “Sabemos que alguns estados estão sofrendo mais do que outros. O Rio é um exemplo claro disso. O coronavírus aparece em um momento em que há um esgarçamento da estrutura do município”, diz. Nos hospitais brasileiros, o coronavírus ainda vai precisar dividir espaço com casos de sarampo e dengue, ambos em alta, e com as filas para consultas, exames e cirurgias.

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