Marco Aurélio (Reginaldo Faria) e Odete Roitman (Beatriz Segall) em uma das cenas de Vale Tudo FOTO: Irineu Barreto/Acervo Globo
“Vale a pena ser honesto no Brasil?”
Existe um problema com a pergunta seminal da novela Vale Tudo
A novela Vale Tudo, escrita por Gilberto Braga com a colaboração de Leonor Bassères e Aguinaldo Silva, estreou em 1988 na TV Globo. Naquele ano, meu pai trabalhava como vigia noturno num prédio em Ipanema, na Rua Barão da Torre, onde morava a atriz Beatriz Segall, intérprete da vilã Odete Roitman. Eu só nasci em 1990, um ano depois de o último capítulo ir ao ar (em janeiro de 1989) e parar o Brasil. Toda vez que a atriz aparecia na tevê, minha mãe comentava, citando não o nome da artista, mas da personagem: “Seu pai e eu conhecemos a Odete. No Natal, ela deu um dinheiro para o seu pai e os outros porteiros ficaram com ciúmes.”
Era um prédio alto, com muitos apartamentos, quase dez funcionários. Os empregados, em sua maioria, eram do Nordeste, e escolheram viver no Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor – como meus pais. De tanto que eles falavam, coloquei na cabeça que deveria assistir à novela. Depois da morte de Gilberto Braga, em 2021, e de ter visto um documentário em sua homenagem (Gilberto Braga – Meu Nome é Novela), decidi finalmente assistir à história no Globoplay.
Conforme eu passava pelos capítulos, comentava com meu pai que a novela era atual. “A Beatriz Segall era simpática, pai?”, perguntei uma vez, imaginando que talvez a atriz (que morreu em 2018) pudesse incorporar a arrogância de seu personagem. “Ela era exigente, de poucas palavras. Uma vez chegou tarde da noite e me pediu para estacionar o carro dela na garagem. No dia seguinte me agradeceu e eu passei a manobrar o carro.”
Minha mãe contou que conheceu a atriz numa tarde, quando desceu para falar com meu pai depois de seu expediente como babá em um dos apartamentos. Beatriz estava sentada num sofá da portaria e perguntou: “Quem é essa moça?” “É minha esposa”, respondeu meu pai, meio sem jeito. “Muito bonita para você, viu…”, brincou. Em seguida, entregou um cheque para ele. “Ela gostava do trabalho do seu pai, queria que ele fosse o porteiro chefe. Ela era bem diferente da Odete”, disse minha mãe. Infelizmente, o cargo não foi dado ao meu pai. Imagino que a atriz tenha ficado decepcionada, mas ele conseguiu a vaga num prédio da mesma rua, antes mesmo de a novela terminar.
Na próxima segunda-feira, como parte das celebrações dos sessenta anos da TV Globo, Vale Tudo ganhará um remake – escrito por Manuela Dias –, que está cercado de expectativas e coloca novamente o país diante do espelho. O jornalista Fernando de Barros e Silva escreveu a respeito na edição de fevereiro da piauí. Tendo assistido à novela muitos anos depois da sua primeira transmissão, me vem à cabeça a pergunta que Braga estabeleceu como base para a história em 1988: “Vale a pena ser honesto no Brasil?”. Ele citava também uma versão mais longa da questão, e esta me intriga um tanto mais: “Vale a pena ser honesto num país onde todo mundo é desonesto?”
Braga contava que a inquietação nasceu de um encontro com alguns familiares. A história acabou ficando bem conhecida nos cânones da teledramaturgia: num jantar, o padrinho do autor foi chamado de “medíocre e babaca” por um parente por ter recusado suborno durante os anos em que trabalhou como delegado em Foz do Iguaçu e em Belém – tendo, assim, abdicado de enriquecer às custas da corrupção.
No primeiro capítulo da novela, Maria de Fátima (Gloria Pires), sentada à mesa da sala, pergunta a Salvador (Sebastião Vasconcelos), seu avô e funcionário da Receita Federal: “Eu quero que o senhor me explique na prática: a quem é que o senhor vai prejudicar se levar uma grana pra deixar um amigo da sua neta passar umas bobagens?” Salvador responde: “Na prática, Fátima, quem deixa passar mercadorias sem cobrar imposto está prejudicando o Brasil, você.” Raquel (Regina Duarte) vem da cozinha até a sala e repreende a filha por debochar da resposta do avô. Fátima levanta da mesa irritada e continua: “Isso aqui é um país de trambiqueiros, gente, vocês estão pensando que eu não leio jornal? Vai conseguir o que com a sua honestidade, vovô?”
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Fátima acreditava que todos os brasileiros são corruptos – dos políticos até o vendedor da esquina. Ela queria mesmo ser rica, não acreditava em trabalho honesto e, numa das sequências mais aviltantes da história da telenovela, vendeu o apartamento da mãe em Foz e sumiu com o dinheiro para o Rio de Janeiro (mais tarde, venderia o próprio bebê para um casal estrangeiro). Em busca da filha, Raquel vira vendedora de sanduíches na praia, se torna dona de restaurante e prospera com sua própria empresa de distribuição de alimentos, sem trair seus valores éticos.
Enquanto a novela ia ao ar em 1988, ainda se discutia uma nova Constituição. A inflação era altíssima e o overnight (operação bancária de curto prazo para fugir dos efeitos da inflação) era uma fonte de renda para os mais ricos. Muitos empresários tinham receio de investir no país. Na novela, o executivo Marco Aurélio (Reginaldo Faria) era ambicioso, tinha relações com políticos influentes em Brasília que lhe rendiam informações privilegiadas e, por conseguinte, muitos dólares. Tecia críticas ao país, mas só pensava em si e em salvar o dinheiro que desviava da companhia de aviação, a TCA (Transcapital Aerolinhas), em paraísos fiscais. O filho de Odete Roitman , o incauto Afonso (Cassio Gabus Mendes), passa a trabalhar na TCA e, em dado momento da trama, se posiciona contra a construção de um aeroporto, pois previa a desapropriação de moradias, além de invadir uma área de preservação ambiental. Tanto Marco Aurélio como Odete debocham da preocupação do futuro herdeiro e dão início à construção do empreendimento.
A cena do jantar no qual Odete Roitman critica o Brasil e os brasileiros é uma das mais famosas da novela. Nela, Odete, à mesa, diz coisas como: “Essa terra aqui não tem jeito, esse povo não vai pra frente, as pessoas aqui não trabalham, só se fala em crise. É um povo preguiçoso. Isso aqui é uma mistura de raças que não deu certo”. Ela enche a boca para falar dos problemas sociais e econômicos do país, enquanto representa o pior daquilo que critica.
Um exemplo da hipocrisia da personagem é a tentativa de conseguir autorização da alfândega para liberar equipamentos de aviação. Odete quer subornar o agente e pede a Ivan (Antonio Fagundes) que se encarregue do caso. Ivan sabe que é errado, mas decide presentear o agente com um carro em troca da liberação dos equipamentos. Mal sabe ele que está sendo vigiado por Odete, que usa o episódio como armadilha para separá-lo de Raquel.
Ivan é vítima de desemprego e se vira como pode para sustentar a família. Formado em administração de empresas pela Fundação Getulio Vargas, acaba conseguindo uma vaga como operador de telex na TCA. Torna-se diretor da empresa graças a uma mistura de talento, estratégia e cara de pau. Por conta do episódio do suborno, acaba preso – logo ele, que sempre foi honesto e nunca praticou ilícitos enquanto esteve na corporação.
Se Ivan foi punido por seu ato ilegal, Odete e Marco Aurélio deitaram em berço esplêndido, em mais uma prova de que os crimes de colarinho branco quase sempre terminam na impunidade – o gesto final do empresário – uma banana para o Brasil de cima do helicóptero – é quadro central na parede da nossa cultura. Décadas mais tarde, no entanto, essa interpretação comum do país – de que a desonestidade reina soberana, especialmente entre os poderosos e abastados – foi questionada com a Lava Jato, que investigou, condenou (e, por algum tempo, até encarcerou) empresários e políticos. Pese todos os muitos erros da 13ª Vara de Curitiba – que dariam uma Vale Tudo à parte, com toques de A Favorita (noveleiros politizados entenderão) – as relações nem um pouco honestas entre o público e o privado foram expostas. Assim como Marco Aurélio mantinha acordos e bom relacionamento com governantes, inclusive doando dinheiro – o famoso caixa 2 –, ficou evidente que, no Brasil, a ficção tinha lastro na realidade. Marcelo Odebrecht, ex-presidente da construtora Odebrecht, atualmente chamada Novonor, chegou a dizer em delação que “eu não conheço nenhum político no Brasil que tenha conseguido fazer qualquer eleição sem caixa 2”.
O tema da honestidade tem sido abordado transversalmente dentro dos estudos sobre moral e ética, de Sócrates a Platão. O filósofo alemão Immanuel Kant, já na era moderna, vinculou o conceito a uma esfera maior, de organização da sociedade, em que a honestidade está associada ao respeito ao que é particular, público e coletivo. Assim, ser honesto é “praticar o que é racionalmente correto ainda que ninguém esteja observando” e “preservar-se dos conflitos de interesses para não se deixar contaminar pelas tentações individuais”, como definiu Patrícia Elisabeth Ferreira em sua dissertação de mestrado[1] apresentada à faculdade na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) em 2018.
A honestidade é um valor partilhado. Ou seja: o modo como o outro a exerce (ou não) impacta mais as pessoas do que se imagina. É o que a psicologia define como “intersubjetivação dos valores”, um conceito que estuda fenômenos sociais. Isso significa que quanto mais situações desonestas vivenciamos no dia a dia, mais acreditamos que o ato desonesto compensa. Eu tinha 11 anos, ali pelo começo dos anos 2000, quando um técnico da NET ofereceu ao meu pai os canais de tevê por assinatura. Bastava lhe pagar 50 reais, que ele puxaria o fio do apartamento do vizinho e poderíamos assistir a todos os canais sem pagar nada. Meu pai recusou, falou que era errado. Ele já sabia que outros porteiros aceitavam o trambique, mas não quis compactuar. Eu queria assistir aos canais de desenho – Cartoon Network, Fox Kids, Nickelodeon – que tanto ouvia falar quando brincava com outras crianças, filhas de moradores. Meses depois, minha mãe ligou para a Central da NET, escolheu o plano mais barato e o técnico veio instalar corretamente sem puxar fio de nenhum lugar.
Recentemente foi noticiado que os agentes da Lei Seca, no Rio de Janeiro, irão utilizar drones em operações para flagrar motoristas que fogem da blitz. De janeiro até novembro de 2024, a Lei Seca flagrou mais de 27, 5 mil motoristas dirigindo sob o efeito de álcool no estado. Para além daqueles que desrespeitam a lei, há os que, ao se deparar com a blitz policial, preferem trocar de lugar com o carona apto a guiar ou manobrar o carro pela contramão. Não seria melhor utilizar um carro de aplicativo ou usar um táxi?
O problema é que os taxistas também não têm colaborado. Uma reportagem veiculada na Globo no início de fevereiro flagrou profissionais do Rio abdicando do taxímetro para cobrar valores fechados em seus deslocamentos, sobretudo em locais turísticos. Vivi situação similar em outubro passado, quando voltei de uma viagem a São Paulo e pedi um táxi à recepcionista de um dos tantos guichês que oferecem o serviço na rodoviária Novo Rio. Quando fui informada do valor, mais de cem reais, recusei, tentando argumentar que era muito caro – quase o dobro do que seria razoável para aquela distância. Um rapaz respondeu que estava barato. Continuei andando com minhas malas e sacolas, dividida entre chamar um carro de aplicativo ou sucumbir à proposta superfaturada do táxi. Até que encontrei um taxista que concordou em me levar cobrando o valor do taxímetro – deu bem menos de cem reais, como eu havia imaginado. No trajeto, fiquei me perguntando se esse taxista não seria visto como honesto demais pelos seus colegas.
Dia desses me deparei com o conceito de honest market, ou mercado honesto, outro produto de nossos tempos capaz de dizer, em alguma medida, o abismo (moral? ético?) em que podemos ter caído. Segundo reportagem do jornal O Globo de novembro de 2023, existem entre 5 mil e 6 mil lojas do gênero no país. A proposta é uma loja de conveniência sem a presença de funcionários para receber pagamentos. O próprio cliente pega o que precisa e paga com cartão ou PIX. Ninguém monitora presencialmente se os consumidores realmente pagam pelo que compram (até certo ponto, pois em geral há câmeras). Espera-se, justamente, que as pessoas sejam honestas.
Conversei com o empresário Hélio Freddi, diretor da rede de supermercados e minimercados em condomínios Hirota. Ele contou que os furtos representam cerca de 5% de todas as operações que suas máquinas – espalhadas pela capital paulista, Guarulhos e região do ABC – fazem diariamente. Há uma equipe de funcionários que monitora os estabelecimentos 24 horas por dia. Assim é possível identificar o gatuno, avisar o síndico do edifício e fazer uma cobrança no aluguel ou na mensalidade do condomínio. Ele diz ainda que está investindo em tecnologia para conter novos prejuízos. Quer implementar o reconhecimento facial – o morador que não pagar não consegue sair da loja, pois as portas de entrada/saída se fecham automaticamente. Resumindo: a confiança tem limite. “Alguns moradores acabam tirando benefício disso e levam a mercadoria sem pagar. Os itens mais furtados são cigarros e bebidas alcoólicas.” Um adendo: os condomínios residenciais onde os honest markets estão presentes são, em geral, espaços de classe média e alta. Não são típicos casos de necessidade famélica, como os (frequentemente punidos pela justiça) furtos a supermercados por pessoas que não têm o que comer (a desproporção entre crime e castigo nesta reportagem de Rogério Gentile e Thallys Braga é notável).
São muitos os casos constrangedores no dia a dia do país, para dizer o mínimo. Mas há uma particularização incômoda na versão estendida da pergunta de Gilberto Braga citada no início do texto. Quem disse que nós somos desonestos – ou melhor, que brasileiros são mais desonestos que pessoas de outras nacionalidades? Um honest market na Islândia, na Noruega, no Paquistão, no Japão ou em Uganda não precisaria de um mínimo controle e não teria nenhum índice de furto?
Voltemos nossas lentes para outros países. Com um conceito similar ao do honest market, a Amazon inaugurou em 2016 o sistema Just Walk Out (Apenas saia) em algumas de suas lojas Fresh (parecidas com uma mercearia) nos Estados Unidos e no Reino Unido. O negócio funcionava assim: antes de entrar no mercado, o cliente escaneava um QR Code na porta que, por meio de sensores, identificava sua presença no local. Assim, cada item retirado da prateleira era incluído automaticamente no carrinho virtual associado à conta desse consumidor. Ao sair do mercado, o valor da compra era debitado automaticamente do cartão do cliente, sem intervenção humana. Na teoria, um bom exemplo de como aliar tecnologia e confiança. Na prática, não funcionava bem assim. Em abril do ano passado, o site The Information revelou que cerca de mil trabalhadores indianos monitoravam remotamente as ações dos consumidores, colocando e retirando itens de seus carrinhos em tempo real conforme a movimentação nas lojas, se certificando de que tudo que eles pegavam seria pago. Na época, um porta-voz da Amazon afirmou ao site Business Insider que a mão de obra indiana servia para suprir uma falha da tecnologia de visão computacional, que ainda não conseguia determinar com total confiança as transações dos compradores. Três meses após as revelações, a Amazon informou que havia melhorado seu sistema de tecnologia – mas não disse se continuou utilizando os trabalhadores indianos.
Nas grandes cidades europeias, abundam os hoje célebres pickpockets (batedores de carteira). Eles atuam nos principais pontos turísticos e nos metrôs, quase sempre em bando, rodeando suas vítimas, que não conseguem se desvencilhar do ataque surrupiador. A audácia impressiona, porque as investidas acontecem à luz do dia, como se aquilo fosse um pedágio, uma consequência natural por querer conhecer aquele lugar (é um pensamento que talvez se aplique ao modo como os taxistas cariocas lidam com o público nos pontos turísticos do Rio). Diante do atrevimento reiterado dos pickpockets, grupos organizados decidiram agir por conta própria, como os justiceiros da “Patrulla Ciudadana de Barcelona”.
Olhemos então para o andar de cima. Assim como no Brasil, países europeus não estão imunes a casos graúdos de corrupção. Em 2015, uma investigação descobriu uma série de falsificações de resultados de emissões poluentes na Volkswagen. A empresa alemã admitiu que, para burlar as inspeções, usou um programa de computador em 11 milhões de carros em todo o mundo. O caso ficou conhecido como Dieselgate. E os aristocratas também não ficaram de fora. O antigo rei Juan Carlos, da Espanha, deixou o país em 2020 após uma investigação revelar seus negócios para lá de obscuros com a Arábia Saudita e suas contas bancárias em paraísos fiscais.
Em 2019, quando completou 25 anos, a Transparência Internacional, organização sem fins lucrativos fundada na Alemanha e atuante no combate à corrupção, listou 25 escândalos de corrupção que impactaram o mundo – o Brasil foi citado uma vez com a Lava Jato, mas lá também figuram Alemanha, Rússia, Estados Unidos, Malásia, Turquia, Peru…
No mesmo ano, a revista Science publicou um estudo feito por pesquisadores das Universidades de Michigan e Utah, nos Estados Unidos, e de Zurique, na Suíça, para medir a honestidade dos cidadãos ao redor do mundo. Foram distribuídas 17 mil carteiras em 355 cidades de quarenta países – com diferentes quantidades de dinheiro em cada uma delas, além de cartões bancários, chaves, e-mail e telefone para contato, entre outros itens.
No experimento de honestidade cívica, como definiu a publicação, a Suíça foi eleita o país mais honesto, com percentuais aproximados de devolução em 70% para as carteiras sem dinheiro e 80% para as carteiras com algum valor (não é um índice desprezível de Marias de Fátima). Depois, vieram Noruega, Holanda, Dinamarca e Suécia com resultados semelhantes, mas um pouco abaixo. A Alemanha foi a 9ª colocada (cerca de 50% sem dinheiro e 60% com dinheiro) e a França fechou o ranking das dez primeiras colocadas (50%-55%). A última posição ficou com a China (0,9%-20%).
O Brasil ficou na 26ª colocação, com média de 35% para devolução de carteiras sem dinheiro e 50% para as carteiras com dinheiro. Nosso desempenho nos colocou no terceiro grupo (de quatro no total), ao lado de países como Itália, Grécia e África do Sul.
Ainda que existam casos de corrupção mundo afora, por que a autopercepção de que brasileiros são mais desonestos do que outras populações se mantém? Não apenas autopercepção, aliás. Para seguir nos exemplos pop, um trecho irônico da canção To Brazil da banda eurodance holandesa Vengaboys, dos anos 1990, é confirmadora de uma certa reputação: “Venha para o Brasil (…) A única coisa que nós vamos roubar é o seu coração.” Ainda assim, há outras nações com fama semelhante ao redor do globo, a começar pela vizinhança, com os hábeis batedores de carteira argentinos.
Será que algum outro país do mundo tem uma Lei de Gérson para chamar de sua? Algum outro grande jogador, campeão do mundo com sua seleção, gravou um comercial de cigarros dizendo que o certo mesmo é levar vantagem acima de tudo? Desconheço. Mas dizer que há algo em nós genuinamente desleal, falso e enganador é uma distorção da nossa identidade. Em 2017, por exemplo, uma pesquisa do Datafolha mostrou que a honestidade era o terceiro comportamento mais admirado entre os brasileiros – atrás da alegria e da amizade.
Assim, se Manuela Dias repetir a pergunta que Gilberto Braga fez há 37 anos ao questionar se vale a pena ser honesto no Brasil, será interessante observar a reação dos brasileiros. Será que queremos mesmo levar vantagem em tudo? Passados mais de trinta anos, quem assistir à nova Vale Tudo vai se identificar mais com a personagem de Maria de Fátima – amoral, preguiçosa e inescrupulosa – ou com Raquel – honesta, trabalhadora e generosa? Gostaria que a resposta à pergunta de Gilberto fosse: sim, vale a pena ser honesto no Brasil. Mas que, antes de mais nada, fizéssemos essa pergunta de uma forma justa.
[1]Ferreira, Patrícia Elisabeth. A honestidade como valor moral: uma construção possível e necessária na escola. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2018.
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