Lula, Michel Temer e o mercado financeiro são os termos mais desejados pelos procuradores. Qualquer candidato a colaborador de Justiça precisa considerá-los no cardápio da delação. ILUSTRAÇÃO: JOÃO BRIZZI
Vale tudo
A banalização das delações premiadas na Lava Jato
Em fins de julho, um advogado que já negociou alguns acordos de colaboração premiada com a força-tarefa da operação Lava Jato recebeu em Curitiba a visita do executivo de uma grande empresa de engenharia. Aflito, o potencial cliente levara consigo uma pasta recheada de documentos que, acreditava, poderiam interessar aos procuradores em uma possível negociação de delação premiada. Uma cena corriqueira, no Brasil dos últimos anos, não fosse o fato do sujeito nem mesmo ser investigado pela Polícia Federal. Tratou-se de uma consulta preventiva. “Ele queria saber, caso caísse na malha da operação, se tinha os elementos necessários para se candidatar a delator”, contou-me o jurisconsulto.
Os elementos aos quais se referia o aspirante a colaborador são os fatos e nomes que corroboram a tese acusatória brandida pela Procuradoria-Geral da República em Brasília e pelo Ministério Público Federal em Curitiba. Assim, é habitual que advogados que atuam na Lava Jato deixem um recado a clientes recém-capturados: devem buscar informações que sirvam como isca para que se abram conversas para um acordo de delação. “Nesse momento, o cliente deve falar que sabe algo contra Lula, Michel Temer ou mercado financeiro. Não quer dizer que a delação vai ser assinada. Mas abre-se uma mesa de negociação com os procuradores. Com isso, o advogado mostra serviço para o cliente”, explicou outro advogado da mesma banca.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – que em agosto tornou-se réu pela terceira vez em um processo em Curitiba – já foi referido pelos procuradores da força-tarefa como o “Santo Graal”. “Em conversas informais, eles diziam: o colaborador que trouxer evidências sobre a participação do ex-presidente terá todos os benefícios”, narrou o defensor que já celebrou alguns acordos.
Em entrevistas e aparições públicas, os próprios investigadores deixam claro que a feira livre das delações é “uma lógica de mercado aplicada ao processo penal”, como definiu, tempos atrás, numa palestra em Curitiba, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos cardinais da operação. “Quanto mais eu quero, mais eu preciso. Desse modo, normalmente melhor é a posição do delator. Ele faz o preço e eu acabo aceitando”, falou.
“A impressão que se tem é que se está pagando muito caro pelas informações”, zombou um advogado, fazendo menção às declarações do procurador. “O Estado está entregando um bisão em troca de um cacho de bananas”, cravou o jurista Lenio Streck.
Doutor em direito, laureado em 2014 com um prêmio Jabuti por um livro técnico que coordenou com, entre outros, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, e crítico contumaz da Lava Jato, Streck sustenta que as delações viraram uma espécie de pedra filosofal, “uma carta que a defesa tem o tempo todo na manga”. Ele também pôs em dúvida os critérios usados para oferecer os benefícios. “Como se calcula que, de uma pena de trinta ou cinquenta anos, a troca será por um ano e meio com tornozeleira?”
O advogado Antonio Figueiredo Basto – que fechou acordos como o de Alberto Youssef – me recebeu em seu escritório numa manhã de fins de julho. Enquanto trabalhava para tornar delatores o ex-diretor da Petrobras Renato Duque e o doleiro Lúcio Funaro, ele defendeu o mecanismo que usa a lógica do mercado. “É um sistema pragmático, sim, mas para a defesa é fantástico.”
A lei 12 850 – que serve de lastro às dezenas de colaborações premiadas firmadas pela Lava Jato – completou quatro anos em agosto. Sancionada pela então presidente Dilma Rousseff, era conhecida, à época, como lei das organizações criminosas. Além de estabelecer o que é um ajuntamento do tipo, o documento definiu como polícias e Ministério Público devem conduzir trabalhos de investigação criminal e produção de provas. É no capítulo dois que o texto trata das colaborações premiadas.
Em três artigos, divididos em mais um punhado de parágrafos e incisos, o texto estipula regras tais como: “Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.” A palavra não basta, é preciso anexar provas.
As delações produzidas em série na Lava Jato, porém, fizeram com que juristas enxergassem uma série de lacunas na lei. “Não há requisitos objetivos para se fechar um acordo, nem regras que evitem que alguém que feche uma colaboração tenha benefícios desproporcionais, algo que estamos vendo acontecer”, disse-me o advogado Marlus Arns de Oliveira, que negociou acordos para executivos da Camargo Corrêa e defendeu o deputado federal cassado Eduardo Cunha, hoje assistido por outro advogado, que negocia sua delação. O exemplo mais recente é o ajustamento firmado entre a Procuradoria-Geral e os empresários Wesley e Joesley Batista, da JBS.
Ao contrário de outros, que decidiram falar somente depois de presos, os irmãos acordaram com os procuradores que não iriam para a cadeia, sequer usariam tornozeleira eletrônica; suas empresas sofreriam danos controlados; e eles poderiam morar nos Estados Unidos.
Nas conversas que tive com advogados, ouvi críticas ao número de acordos firmados, mesmo dos que não são contra o instrumento. “Delações premiadas servem para se iniciar uma investigação, quebrar uma organização criminosa, desvelar o início de uma cena”, argumentou Gustavo Badaró, livre-docente em direito processual penal e professor da Faculdade do Largo São Francisco, em São Paulo, que escreveu pareceres para a defesa de implicados na operação, inclusive alguns políticos do PT.
“Os colaboradores já sabem o que a Lava Jato quer. Ela passou, em certa medida, a ter sua versão oficial dos fatos. Quem chegar com informações alinhadas a ela tem boas chance de se tornar um colaborador. Ainda que não seja um jogo de cartas marcadas, temos uma situação em que a delação de um investigado que traz elementos que apontem para uma versão diversa torna-se, no mínimo, muito desinteressante”, disse.
Outro advogado, que tem delatores em sua carteira de clientes, concorda. “Na Lava Jato todo mundo delata. Cadê os critérios para definir isso? Odebrecht e JBS, que comandaram esquemas criminosos, fizeram colaborações. Ora, eles deveriam ser os delatados.”
No fim de julho, a Folha de S.Paulo informou que policiais federais apontavam uma série de falhas nas delações firmadas em bloco entre a Procuradoria e os executivos da Odebrecht – são 77 delatores da empresa. Conforme relatórios da corporação, faltariam documentos e informações que sustentem a abertura de alguns inquéritos. A reportagem expôs mais um capítulo de uma guerra cada vez menos silenciosa que opõe o Ministério Público e a Polícia Federal, em disputa pelo protagonismo do combate à corrupção.
“Ouvi claramente de um delegado da Polícia Federal que não é preciso fazer acordo com a Odebrecht. Já havia provas para condenar os principais executivos da empresa. A PF fez força para não fechar esse acordo, e não ficou satisfeita com ele”, relatou-me um advogado com bom trânsito na corporação.
“A Polícia Federal foi comunicada dos termos das delações só depois de serem firmadas. O material que veio a Curitiba não está organizado de forma que nos permita avaliar em que partes cabe instaurar inquéritos. E em que parte nós já perdemos [o prazo, por prescrição dos crimes]”, disse a jornalistas durante uma entrevista coletiva, no início julho, o delegado Igor Romário de Paula, que coordenou a força-tarefa da Lava Jato na Polícia Federal na capital paranaense.
“Nos acordos da Odebrecht, já se atribuiu uma pena a ser cumprida pelos executivos. E, como a ministra Cármen Lúcia homologou, os delatores já estão cumprindo suas penas sem terem sido sentenciados nem se ter verificado a eficácia da delação”, criticou Gustavo Badaró.
Mesmo Figueiredo Basto, que me disse não ter “crítica nenhuma” à Lava Jato, acredita que que os acordos firmados com executivos da JBS e Odebrecht são “pontos totalmente fora da curva”. “Quem define os benefícios da colaboração, segundo a lei, é o juiz, na sentença. Mas no caso da Odebrecht os delatores já cumprem pena sem nem haver um processo aberto. É absurdo.”
“O delator tem que revelar um esquema muito maior do que o crime que ele cometeu. Do contrário, fica claro que ele é o líder do esquema. Nesses dois casos, me parece que deram benefícios aos líderes, a quem mais corrompeu e teve protagonismo dentro da organização. E quem corrompeu mais ganhou muito mais, pode pagar uma multa muito maior”, disse Basto.
Da frouxidão de regras se valem não só os advogados de defesa, mas também os procuradores da República. “As forças-tarefas têm capacidade limitada, e perceberam que delações podem ser uma via expressa para gerar condenações”, disse-me Badaró. “No caso da Odebrecht, não é possível que sejam necessários 77 colaboradores para fechar o quebra-cabeça daquele quadro de corrupção. As delações, ali, foram usadas para eliminar a necessidade de um processo.”
“A delação virou um atalho para se fazer acusação criminal. Ocuparam um lugar que já foi das escutas telefônicas. Em 1996, saiu a lei das interceptações. Dizia o seguinte: elas só podem ser usadas quando não há outro meio para se obter provas. Mas, rapidamente, ela passou a ser o meio preferencial”, comparou Streck. “Com as colaborações, foi a mesma coisa. De meio de produção de prova, virou um atalho processual, um fim em si mesmo. A delação de Pindorama é uma jabuticaba. Desse jeito, só dá aqui.”
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