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    Crédito: Intervenção de Paula Cardoso sobre imagens cedidas por Hugo Fernandes

depoimento

Voando no meio do fogo

Piloto no Pantanal há 46 anos diz que as queimadas deste ano foram as piores que já viu na região

Chico Boabaid | 23 out 2020_18h50
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Em setembro e outubro deste ano, o Pantanal ardeu em chamas em níveis que há muito tempo não se viam. A dimensão e a quantidade dos focos impressionaram até mesmo quem nasceu e se criou na região –  e está acostumado a ver o Pantanal de cima.  “Foram as piores queimadas que eu vi na minha vida”, disse Francisco José da Silva Boabaid, conhecido como Chico Boabaid, piloto há quatro décadas e meia e pecuarista na região. A bordo de seu monomotor Cessna 182, ele prestou apoio à ação de brigadistas e bombeiros militares em incêndios nos arredores de Corumbá. Testemunhou o trabalho intenso das equipes de combate às queimadas, ajudou no transporte de equipamentos e se comoveu ao ver os animais mortos pelo fogo. “Muito gado e muitos animais silvestres morreram, aquela fumaça a se perder de vista, o fogo se alastrando sem controle e os brigadistas fazendo de tudo para apagar”, disse. Chico conhece bem o Pantanal. Sua família se estabeleceu no entorno de Corumbá, Mato Grosso do Sul, há mais de cem anos. Ao longo das décadas, ele testemunhou as mudanças que, na avaliação do piloto pantaneiro, favoreceram as queimadas.

(Em depoimento a Felippe Aníbal)

*

Eu sou piloto há 46 anos, com mais de 20 mil horas de voo. Neste ano, vi muitos animais mortos, de toda espécie que você possa imaginar. Uma coisa terrível. Como piloto, sempre dou suporte a essa questão dos incêndios, mas este ano foi impressionante. A bordo do nosso Cessna 182 [um avião monomotor], levei muitos brigadistas aos pontos de combate, levei equipamento, motobomba. Muito gado e muitos animais silvestres morreram, aquela fumaça a perder de vista, o fogo se alastrando sem controle e os brigadistas fazendo de tudo para apagar. Tempo seco, calor de mais de 40°C e eles com aquelas roupas pesadas. Esses homens e mulheres são uns verdadeiros heróis.

Desde criança fui aficionado pela aviação, queria ser piloto. Com 16 anos, consegui me brevetar [tirar o brevê], mas meus pais precisaram fazer uma autorização para que eu começasse a pilotar. Com 17 anos, recebi a carteira de piloto e comecei a voar profissionalmente. Três anos depois, em 1978, me mudei para São Paulo. Trabalhava na aviação executiva, no interior.

Em 1984, meu pai faleceu e eu retornei a Corumbá. Abri uma empresa, a Aeropan Táxi Aéreo. Estava indo bem, mas, em 2004, a gente foi vítima de um assalto: um grupo de pilotos bolivianos e de traficantes brasileiros roubaram oito aviões no estado. Dois eram meus. Aí acabou minha empresa. A família tem, hoje, o Cessna 182, mas só pra uso próprio. É o avião que eu uso para dar suporte nas ações de combate às queimadas. Também tocamos fazenda há mais de cem anos.

Tudo começou com meu avô paterno, José Namen Boabaid, um libanês e cristão que veio para o Brasil em 1894, fugido da ocupação turca. Assim que ele desembarcou em Itajaí, Santa Catarina, mandou uma carta para a família e vieram todos: irmão, primos… Todos sem falar uma única palavra de português. Com dois anos de Brasil, ele conheceu minha avó, descendente de portugueses, alemães e franceses. Eles se casaram e, com minha avó grávida, meu avô montou em um burro e veio bater no Norte do Mato Grosso, para mexer com seringal. 

Dois anos depois, ele voltou a Itajaí para buscar a minha avó. Só então, conheceu o filho – meu tio mais velho – que tinha nascido em 1897. Meu avô se fixou em Corumbá e, como bom libanês, abriu um “boliche”, um armazém de secos e molhados. Logo se mudou para Poconé, a 100 km dali, e abriu outro armazém. Um dia chegou um freguês querendo trocar uma lancha a vapor pelo armazém. Meu avô trocou. Começou a “mascatear”, a fazer da lancha um tipo de vendinha, e ia de lugar em lugar comercializando coisas. O porto de Corumbá estava começando a explodir. Meu avô formou uma frota de lanchas e vendia produtos para a região toda: Cuiabá, Cáceres, Coxim…

Numa dessa viagens, meu avô conheceu o presidente de uma empresa inglesa que era uma das maiores proprietárias de terras no Pantanal. Era uma época em que não tinha energia elétrica, não tinha frigorífico. Eles criavam gado e aproveitavam só o couro, escoado por navios até Assunção, no Paraguai, e de lá para a Europa. As carcaças, jogavam no rio. O presidente dessa companhia propôs ao meu avô a compra de uma fazenda. Ele acabou comprando a Fazenda Boa Vista, ao lado do Porto Jofre, e os Boabaid somos fazendeiros desde então.

Sou um autêntico pantaneiro. Morei em fazenda até os 10 anos de idade. Tinha aulas em casa, com a minha mãe, que era professora. Só ia a Corumbá uma vez por mês, para fazer as provas. Depois, fiz o científico e entrei para a faculdade de agronomia, mas abandonei o curso porque meu pai adoeceu.

Para falar dessas queimadas, a gente tem que falar de 1974. Até 1974, o Pantanal era seco. Mas naquele ano veio uma chuvarada violenta, tão descontrolada, que começaram a se encher os rios, que estavam assoreados. Continuou chovendo nos anos seguintes, e as enchentes mataram o gado do Pantanal, que nunca tinha visto tanta chuva. Tinha fazendeiro que tinha 3 mil reses e que, no dia seguinte, já não tinha nenhuma. Nas fazendas da família, chegamos a ter 60 mil cabeças de gado. Nesses anos, perdemos mais de 30 mil. Foi uma catástrofe.

Depois disso, o Pantanal não secou mais. As enchentes alagaram definitivamente a parte que a gente conhece como “Baixo Pantanal”, dando à região a cara que a gente conhece hoje. Isso até o ano passado, quando começou a vir uma estiagem tão prolongada, tão violenta, que secou tudo. Os rios baixaram de um jeito que a gente não via havia décadas, revelando de novo o “Baixo Pantanal” e todas aquelas fazendas que estavam desativadas. Em volta de Corumbá, mesmo, tem várias fazendas assim, do “Baixo Pantanal”, desativadas.  Como não tinha gado para baixar esse mato, tinha muita matéria orgânica. Aí, num calor de 45°C, qualquer faísca faz virar um inferno. 

Isso culminou nesses incêndios desproporcionais, uma coisa muito sem propósito e avassaladora, matando muitos animais. Uma coisa muito, muito triste. Esse fogo é a maioria no “Baixo Pantanal”. E aí querem culpar o fazendeiro. Se você fosse fazendeiro, você ia pôr fogo [na vegetação], para o gado comer o quê? Cinza? Não tem lógica. Pode ser que um ou outro [fazendeiro] tenha colocado fogo. Eu, como pantaneiro, cidadão mato-grossense, eu fico muito triste com essas coisas que falam, que dizem.

Tem necessidade urgente de ter uma brigada permanente de incêndio aqui no Mato Grosso do Sul, mas uma coisa atuante, que tivesse recursos. Algo que funcionasse e que fosse imediato: pegou fogo, essa brigada já está a postos e já vai direto combater o incêndio. Devia ter uma prevenção por parte do governo estadual, principalmente. O governo federal cuida de 6% [do Pantanal sul-matogrossense] apenas, que é a parte do Ibama. O restante é o governo estadual, que é quem tem que monitorar.

As coisas mudaram bastante no Pantanal. Mas o que dói na gente mesmo é ver essas queimadas. As deste ano foram as piores que vi na vida. Nos anos anteriores também havia [incêndios florestais], mas nada perto do que vimos este ano. Uma coisa triste. Tudo em chamas, animais mortos. Foi terrível.

Agora a tendência é que diminuam [os focos], se não tiver mais estiagem. Tem que chover, né? Tem que chover. O povo do Pantanal está pedindo por água, que venha a chuva. Aí tudo vai melhorar, se Deus quiser.

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