FOTO: ROGÉRIO REIS_2007
Com o Pan nas mãos e muito chão percorrido
Chegou a hora de Agberto Guimarães mostrar que sabe abater baratas em vôo
Dorrit Harazim | Edição 10, Julho 2007
Terça-feira, 19 de junho, final de tarde. O Aeroporto Internacional Tom Jobim vivia um dia de cão, com o destempero se esparramando por balcões, corredores e portões de embarque. Um passageiro de índole contida e modos lhanos adentrou o saguão. Percebeu logo que não iria a lugar algum. Tinha vôo marcado para as 19h30, chegada em Belém prevista para as 23h30, mas suas chances de efetivamente vir a ocupar a poltrona 19G eram praticamente nulas. Ainda assim, permaneceu ali por mais de seis horas, até se extinguirem todas probabilidades de ele pousar no aeroporto de Val de Cans antes do sol raiar. Faltando 23 dias para a abertura dos XV Jogos Pan-americanos, a perda de tantas horas foi ainda mais sentida. Agberto Guimarães retornou ao seu apartamento, no Leblon, no início da madrugada. Não esmurrou a porta nem chutou o sofá. Seu estilo é outro.
“Barata voa”, costuma dizer esse homem discreto da cúpula do Pan, quando algo lhe foge do controle. Por ser precavido, trazia consigo um catatau de 944 páginas, que há um ano tenta terminar de ler. Assim, usou boa parte das horas de ócio compulsório para avançar na peculiar leitura de bordo: “Team of Rivals – The political genius of Abraham Lincoln” (“Equipe de Rivais – O gênio político de Abraham Lincoln”), da historiadora americana Doris Kearns Goodwin. O livro trata do estilo de liderança do 16o presidente dos Estados Unidos.
Especificamente, de como Lincoln amestrou egos, transformou em respeito o desdém social que seus pares tiveram por ele no início, e soube dar significado político a atributos humanos considerados menores. “O livro é uma aula sobre a habilidade de recuar”, diz o aluno brasileiro.
Ao contrário de Lincoln, Agberto Guimarães não tem por missão conduzir um país através do sombrio capítulo da sua história. Basta que, ao final dos dezessete dias de competição, 5 662 atletas de 42 países tenham disputado todas as provas acordadas com a ODEPA, a Organização Desportiva Pan-americana, de acordo com parâmetros planejados há cinco anos. Ele poderá, então, concluir a leitura de Lincoln e considerar consolidada a sua travessia de ex-atleta olímpico para administrador de esporte. Dezoito anos atrás, no Troféu Brasil de 1989, instantes antes de competir pela última vez numa pista, esse meio-fundista de três olimpíadas (1980, 1984 e 1988) cochichou ao ouvido do presidente da Confederação Brasileira de Atletismo, Roberto Gesta de Melo: “Hoje vou me aposentar. Quero ser administrador esportivo. E vou ser tão bom nisso quanto fui bom atleta”. Não fez alarde nem convocou a imprensa. Simplesmente descalçou para sempre as sapatilhas e começou a usar sapatos de couro. Estava com 32 anos de idade, metade deles vividos sob a tirania dos cronômetros.
Como diz o outro, nunca-na-história-deste-país, o esporte esteve tão politizado quanto no Pan. Não se trata, como nas copas do mundo de futebol, de um time (supostamente) representar o talento e a fibra nacionais. O que está em jogo é a capacidade das autoridades (leia-se: os políticos) em organizar, com um mínimo de eficácia, um evento esportivo. Como a reputação dos políticos está em baixa, um Pan minimamente decente teria o condão de limpar um pouco a imagem deles. E, para quem acredita em símbolos, um Pan bem organizado serviria para atenuar a sensação de desalento nacional. Na cidade que lhe serve de cartão-postal, o Brasil seria capaz de mostrar algo – aos outros, mas sobretudo a si mesmo – diferente do espetáculo rotineiro de super-exploração, banditismo e corrupção.
Como o custo do Pan foi várias vezes superior ao planejado, e as obras se arrastaram até a véspera da abertura dos jogos, a empreitada nasceu com a síndrome da desconfiança. Mas, para referendar a eterna idéia de que o jeitinho de última hora salva qualquer festa, aumenta a torcida para que o Pan saia vencedor, de virada. Os louros de um Pan, assim, poderão engalanar os ombros das autoridades – prefeito, governador e presidente, que estarão enfileirados para receber felicitações e (super)faturar dividendos políticos. Se não houver louros, e o Pan for devorado pelo sucateamento da vida urbana carioca, as autoridades se eclipsarão e o maior perdedor individual será Carlos Arthur Nuzman. O presidente do Comitê Organizador arriscou alto ao fazer do Pan uma vitrine para vôos olímpicos mais ambiciosos.
No caso de Agberto Guimarães, nada do que faz compete em visibilidade e materialidade com obras resplandescentes como o estádio João Havelange, com sua tecnologia de última geração, implantado à força no bairro de Engenho de Dentro. A impressão digital que Guimarães deixará no Pan se esconde por trás de um nome genérico – gerente geral de Esportes. No organograma do CO–Rio 2007, o espaço reservado para esse cargo é de quarto escalão. Hierarquicamente abaixo do presidente, do vice, do secretário-geral e de dois subsecretários, a função se situa no mesmo nível dos dez outros gerentes dos Jogos. Na prática, porém, a parte que cabe a Agberto é a única que se confunde com a essência umbilical do evento: a competição esportiva propriamente dita.
O calendário do Pan está assentado sobre uma grade de 332 eventos – dá-se o nome de evento à seqüência de disputas por uma medalha de ouro, seja ela individual ou coletiva, masculina, feminina ou mista. Somadas as etapas eliminatórias e classificatórias de cada evento, o número de provas, lutas ou jogos agendados para as duas semanas do Pan ultrapassará com folga a casa do milhar. E é essa teia de competições que terá sido montada e terá passado pelo crivo da Gerência Geral de Esportes.
Agberto Guimarães gostaria de ter embarcado para Belém naquela terça-feira de caos. Teria pisado novamente no chão onde nasceu – na Tucuruí de 50 anos atrás. Ou seja, na roça. Ele descreve assim a sua infância ali: “Até 13 anos, cresci com pouca grana e muita comida. Era peixe pescado no rio Tocantins, galinhas, patos e suínos criados no quintal de casa, legumes colhidos na horta. Fome zero, em suma”. Ele gosta de brincar que foi em Tucuruí que o futuro atleta fez seu primeiro trabalho de força – à falta de água tratada em casa, cabia-lhe a tarefa de ir buscar no igarapé, e na fonte do rio, o suficiente para abastecer dois tambores por dia. Do pai protético, que aprendeu o ofício de orelhada, mas acabou se tornando o melhor escultor de dentaduras da região – “Elas ficavam perfeitas e seus donos conseguiam mastigar alegremente os churrascos menos duros.”– o filho guarda três ensinamentos. Todos lhe tiveram serventia na operação Pan: 1) “puxa-saco é corrimão para a glória”; 2) “quem manda, paga a conta”; 3) “Você se une, mas não se mistura”.
Mas não é por isso que Guimarães, freqüentemente, almoça sozinho. Quando ele se junta ao grupo, os colegas da Gerência Geral de Esportes sofrem com os hábitos alimentares do chefe, dono até hoje de um insolente físico de meio-fundista (1,75 metro e 68,5 quilos). “Em geral, ninguém gosta da minha comida” – admite. Como atacar uma refeição cheia de pecados, quando a chefia mastiga com convicção apenas alimentos saudáveis e balanceados?
Carlos Arthur Nuzman tem resposta curta e simples para explicar a escolha de seu Gerente Geral de Esportes, não sendo ele nem da chamada máfia do Fluminense, nem da máfia do vôlei. “Eu fiquei na mão do Agberto uma vez, em 1994, e tudo funcionou”. Nuzman se refere ao campeonato mundial de vôlei feminino, realizado no ginásio do Ibirapuera, São Paulo, há treze anos. Torneios internacionais sempre deixam profissionais do olimpismo à beira de um ataque de nervos, pelos danos que podem causar à biografia. “Não foi o governador da época nem seu Secretário de Esportes que resolveram os problemas”, lembra Nuzman, “foi Agberto quem cuidou de tudo, desde a reforma dos banheiros até a escala de treinos das seleções em competição. E tudo deu certo”.
Contou pontos, também, o fato de o Gerente Geral de Esportes ter ampla familiaridade com o atletismo, esporte que abriga a maior variedade de modalidades e é considerado a estrela maior dos esportes olímpicos. De fato, foi decisivo. Nada é mais diferente de uma prova de arremesso de dardo do que uma corrida de 3 000 metros com obstáculos, embora ambas atendam pelo nome genérico de competição de atletismo. “Quem entende de pista e campo larga na frente como operador esportivo”, sustenta Nuzman.
Guimarães diz que a transição de atleta para executivo não é para qualquer um. “Você precisa estar preparado para servir, quando, bem ou mal, em toda a sua carreira de atleta você foi servido. Na vida de operador não tem medalha, pódio ou reconhecimento. Em compensação é mais duradoura. Mas, no fundo, até que se assemelha a um treinamento: o técnico te dá uma meta, e se você dá conta e a cumpre, ele te dá outra mais dura”.
Em sua carreira de atleta, Agberto Guimarães derrubou alguns mitos. Primeiro, o de que corredor sul-americano não tem talento para provas de meio-fundo. A seguir, obteve uma bolsa para treinar e estudar nos Estados Unidos – rota que seria trilhada pouco depois por Joaquim Cruz, Zeca Barbosa, Edgar Oliveira e tantos outros. Foi, também, o primeiro atleta de pista brasileiro a obter patrocínio fora do país, e primeiro a participar de um meeting internacional. “Meu cachê foi mequetrefe, coisa de uns 300 dólares, mas foi uma beleza”– relembra o atleta.
O talento de Guimarães foi percebido por um técnico estudioso, meticuloso e, portanto, tido como chato nos meios mais largados do atletismo brasileiro dos anos 70: Luiz Alberto de Oliveira, que organizou a melhor equipe brasileira de meio-fundistas. “A chatice dele com a minha se casaram muito bem”, diz o atual operador do Pan. “Ele era minucioso e lia muito, numa época em que técnicos ainda não se voltavam tanto para a pesquisa. Chegou a pagar médicos para lhe darem aulas de fisiologia”. Luiz Alberto Oliveira, por sua vez, encontrou um discípulo à altura. “O Agberto é tão disciplinado que poderia correr de olhos vendados. Ele parece um relógio”, dizia o técnico, que hoje atua no atletismo no Qatar. Não é um acaso.
Afinal, a petro-milionária Doha, capital do Qatar, é candidata a abocanhar os Jogos Olímpicos de 2016. Se o Rio de Janeiro sair vivo do Pan, e se credenciar para a Olimpíada, terá um concorrente de peso: o Qatar acaba de sair vitorioso como anfitrião dos Jogos Asiáticos, evento duas vezes maior e mais complexo do que o Pan. Com mais de 10 000 atletas, competindo em 46 modalidades, os Asian Games de dezembro último foram o terceiro maior evento esportivo mundial, atrás apenas da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos.
Os Jogos de Doha trazem uma lição e um aviso à turma do tasca, pronta a apontar falhas de planejamento em tudo que vier a dar errado no Pan. Uma coisa é o esperado colapso no trânsito, afundamentos de terreno, superfaturamento, estouro de orçamento, promessas não-cumpridas de saneamento de águas, ausência de beneficiamento urbano. Outra coisa são as hecatombes imprevistas, que podem resultar em danos até maiores para a realização das competições esportivas, mas não devem ser computadas na coluna dos pecados. No Qatar, o emirado-península fincado no Golfo Pérsico com a maior renda per capita do Oriente Médio, o chão é desértico e a chuva, um fenônemo raríssimo. Pois choveu nos Asian Games. E justo no primeiro dia. Ao final da cerimônia de abertura, que custou 160 milhões de dólares e superou todos os adjetivos, os portões do estádio Khalifa tiveram de ser fechados por duas horas, para impedir a saída do público – uma tempestade de proporções bíblicas tinha provocado um “apagão terrestre” lá fora. Nos dias seguintes, uma final de tênis teve de ser cancelada, o formato de alguns esportes foi modificado à última hora, um chinês que correu metade da prova de olhos fechados ganhou a marcha de 20 quilômetros, e o vôlei de praia se assemelhou a um exercício de mergulho aquático. Ainda assim, a nota final de capacitação do Qatar para sediar mega-eventos foi alta.
No caso do Pan, a clemência será bem menor em caso de falha grave de planejamento, organização ou estrutura. Se uma das grandes – e caras – obras pan-americanas erguidas na cidade se revelar inadequada, não haverá perdão fácil. Daí a correria e cuidado de 25ª hora com o Parque Aquático Maria Lenk, local das provas de natação, nado sincronizado e saltos ornamentais. A instalação, que não pode ser testada plenamente antes das competições, integra a chamada Cidade dos Esportes, em Jacarepaguá. Erguida em terreno do Autódromo do Rio, o complexo é formado por uma Arena multiuso supimpa, onde se realizarão os jogos de basquete e a competição de ginástica artística, e um Velódromo de sonhos para o ciclismo e a patinação de velocidade. Do trio, apenas o Parque Aquático necessita de preces para afugentar os maus presságios.
Última das grande obras pan-americanas da prefeitura a deslanchar, e única a ser fatiada por três construtoras (do consórcio Delta-Saverio-Midas), o Parque Aquático abrirá as portas com uma ferida imperdoável: na contramão da arquitetura esportiva contemporânea, o Maria Lenk não é coberto. Isso significa que a instalação, talvez a mais complexa do Pan, fique sujeita a chuvas e trovoadas – leia-se, alteração de volume, movimento e temperatura da água nas piscinas de aquecimento e competição – ou à incidência do sol sobre um atleta em pleno salto da plataforma de 10 metros. O próprio painel de resultados encomendado pelos construtores ao fabricante suíço Omega, de 4 x 5 metros, pequeno para as dimensões do local, poderá ter sua leitura prejudicada pela cambiante luminosidade natural.
Água é um elemento traiçoeiro, e para domesticá-la toda tecnologia é pouca. Numa piscina de competição (e numa piscina doméstica também, em outras proporções), tudo que envolva água pode falhar: o sistema hidráulico e elétrico, o sistema de filtração, a desinfecção, a iluminação e a sonorização sub-aquática. Para as provas de nado sincronizado, por exemplo, dez alto-falantes sub-aquáticos estarão instalados ao longo das laterais de 50 metros, transmitindo a música selecionada pela equipe em competição. Na piscina de saltos, um sistema de bombeamento com jatos de água, instalados nos eixos de cada trampolim, se encarregará de agitar o espelho d’água, para minimizar a sensação de vertigem ou perda de horizonte do atleta.
O corre-corre no complexo aquático advém da rígida separação entre Estado e Igreja, decidida nos primórdios da candidatura do Rio ao Pan: à prefeitura cabem as obras; aos dirigentes esportivos, a organização dos Jogos. Dado que água e cimento não fazem parte das atribuições do CO-Rio nem da sua Gerência Geral de Esportes, o poder de ação da equipe de Guimarães no parque aquático era virtual. As decisões centrais foram empurradas da prefeitura para a construtora, e dessa de volta para o colo da prefeitura, até que um veterano da natação brasileira saísse do seu casulo. No começo do ano, Ricardo Moura, com vinte anos de Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos nas costas, foi designado para coordenar as competições no Maria Lenk. Não gostou do que viu. Em relatórios copiosos, passou a apontar falhas, incomodando superiores e provocando desconforto burocrático. “Não sou engenheiro nem arquiteto, mas entendo de natação. Devo estar no filme errado”, dizia para si mesmo, cada vez que observava um vazamento ou uma pane elétrica. O projeto inicial, por exemplo, sequer previa uma arquibancada para a piscina de saltos. De tanto agitar, Moura chega ao Pan com a função dupla de gerente de competição e co-gerente de instalação. Na reta final, começou a tomar remédio para dormir.
Acaso cabalístico, desafio à crendice nacional ou fruto de um planejamento que levou em conta tanto a metereologia em julho, o calendário esportivo em outros países e o período de férias escolares, o fato é que a cerimônia de abertura dos XV Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro vai cair numa sexta-feira 13. Dessa vez, Agberto Guimarães pretende estar presente. Em fevereiro, manteve distância do Sambódromo e do desfile de carnaval da Portela, que homenageou o Pan e levou meio mundo do esporte nacional para a avenida. “Acho bacana, até iria se minha mulher pudesse ir junto,” desconversa.
No réveillon não foi diferente. O CO-Rio 2007 ficou esvaziado em sua nova sede, na Barra da Tijuca (alugada, até 2011, por 100 mil reais mensais), devido à folga coletiva de final de ano. Mas Guimarães continuou a trabalhar em sua saleta, no segundo andar do prédio. Queria concluir uma complexa planilha de cálculo de pagamento para os milhares de contratados individuais (só árbitros, o Pan 2007 tem quase 1 700).
Conseguiu a adesão de um empolgado assistente e o trabalho foi concluído na calada da noite. “Qual o nome do cara que me socorreu no réveillon?”, perguntaria alguns meses depois. Maurício Rodrigues, o jovem computeiro formado em Educação Física que montou as planilhas, e revelou talento para ler contratos que ninguém queria nem ver, passou de assistente a supervisor do Departamento de Políticas e Operações Esportivas.
O estilo de comando de Guimarães recomenda que em casos de crise, a forma de resolver contingências é a portas fechadas. “Podemos nos esmurrar, se necessário, mas o público não deve perceber absolutamente nada”, ensina. Confessa dar espinafradas sem cerimônia, mas admite ter perdido as estribeiras uma só vez. Foi com a supervisora de Oficiais Técnicos e Delegados, a ex-ginasta Soraya Carvalho, que fazia mestrado em Brasília, e por conta disso se ausentava do Pan periodicamente. Ela cogitou trancar a matrícula, mas Guimarães não permitiu. “Sei o quanto vale um mestrado”, diz. Soraya, então, pediu férias. “Caí duro. Como férias, com a casa pegando fogo? Me exaltei, falei alto, disse não”, conta ele. “Dois dias depois, ao abrir uma reunião do grupo, pedi desculpas públicas pela forma grosseira como a havia tratado publicamente”. Soraya não tirou férias. Apresentou sua monografia dois meses atrás e terá concluído seu mestrado antes do Pan começar.
Talvez por ter sido atleta, e saber o quanto vale a vivência do outro lado do balcão, Agberto Guimarães chamou vários ex-esportistas para integrar seu núcleo de colaboradores. Um dos convocados foi o baiano Edgar Oliveira, de 39 anos. Edgar competiu nos Jogos Olímpicos de Barcelona (1992) e Atlanta (1996), e detém até hoje a terceira melhor marca sul-americana nos 1500 metros. Como Gerente de Competição Esportiva ele tem sob suas asas um lote de modalidades pouco excitantes – badminton, beisebol, esgrima, softbol, handebol, trampolim, além de outras nove mais populares. Apesar de fluente em inglês e espanhol, e estar concluindo o curso de Administração e Marketing Esportivo, Oliveira se surpreendeu com a montanha de conhecimentos que lhe faltavam para executar sua função: identificar o material de apoio para todos os esportes em competição, e encaminhar o pedido de compra. Ou melhor apenas os artigos com certificação internacional fabricados no Brasil. Os importados (como as raias de remo húngaras, as máquinas de tiro ao prato francesas, o piso cor de framboesa alemão , os cronômetros americanos) são da alçada de outro gerente-esportista, o nadador e ex-recordista mundial, Ricardo Prado.
Montado numa lista de mais de 2 000 itens que passarão despercebidos do público, Oliveira sabe a importância de cada alfinete. Literalmente. Nas provas de atletismo, por exemplo, cada competidor precisa ter o seu número afixado na cestinha de pista onde joga a roupa de aquecimento. Esse número também deve constar no agasalho (frente e costas) e na camiseta de corrida (frente e costas). Como cada um desses números precisa ser afixado por quatro alfinetes, Edgar fechou a encomenda de 4 500 unidades. Antes, teve de fazer teste com alfinetes de pesos, dimensão e formatos variados, até concluir que o modelo mais confortável para o competidor mede 2,3 cm . E deve ser dourado, para visibilidade mais imediata (cabe a cada atleta afixar o seu próprio número de competidor).
Só reage com desdém à historieta acima quem não ouviu um mesmo clamor se espalhar pela arena do Riocentro durante o Mundial de Ginástica realizado em 2005: “Cadê meu alfinete?”
Exemplos semelhantes abundam. Há os 250 apitos para os árbitros coordenados por Soraya, que precisam ter uma potência de 115 decibéis, e vir em três cores – azul preto e vermelho. Há os pincéis atômicos à prova d’água, para escrever o número de cada atleta de triatlo e maratona aquática diretamente em seu braço ou perna. Neste caso, o cuidado maior fica por conta da aplicação, que não pode fugir ao padrão mundial: o número precisa medir exatamente 10 x 5 cm, e cada dígito deve ter 1,5 cm de espessura.
Até fevereiro, a área que Agberto Guimarães considerava de maior risco – o processo de inscrição dos atletas, por país, categoria, modalidade e outras variáveis – efetivamente se revelou a mais insana. Não basta ter um banco de dados de ponta, e a garantia de qualidade tecnológica do sistema ATOS, o mesmo que funcionou sem solavancos nos Jogos Olímpicos de Atenas, e será utilizado em Londres 2012. Isso porque, uma coisa é o processamento instantâneo e sem falhas dos dados inseridos, outra, bem diferente, são as trapalhadas dos humanos. Basta que se digite errado uma única letra do alfabeto para que um atleta de Porto Rico (“PUR”) vá ser somado à delegação do Suriname (“SUR”). O mesmo deslize pode transformar um pivô do basquete americano em arremessador de beisebol salvadorenho, uma vez que os acrônimos esportivos são parecidos (BK x BS). Sendo esses erros facilmente detectáveis, o conserto é igualmente simples. O perigo mora em outro canto da operação de inscrição e credenciamento de atletas, o dos dados enviados pelos competidores.
Sonia Almeida, 45 anos formada em Direito e Letras, migrou para o Pan com a experiência de onze anos no Comitê Olímpico Brasileiro, e credenciais para comandar essa parte nevrálgica da operação. Ela explica: “Sempre tem países espertinhos, em geral de expressão esportiva menor, que enviam dados contendo inconsistências – seja na qualificação do atleta, seja no peso que o habilita a competir em determinada categoria, seja outra variável. Estamos há meses fazendo o papel de cães de guarda, checando os resultados de todos os eventos classificatórios citados, e acompanhando os que ainda estavam em curso. Nossa preocupação é ter inscritos os atletas que realmente têm direito a se apresentar”. As armadilhas costumam se infiltrar em esportes individuais, que comportam várias categorias, como o boxe.
Em contrapartida, todos concordam que lidar com potências esportivas, como os Estados Unidos, Canadá e Cuba, é um deleite. São exigentes, precisos e pontuais. Daí o desalento da comitiva cubana que veio inspecionar as instalações cariocas, em fevereiro último. Foi uma visita de primeiro escalão: o veterano Alfredo Casaña, de Relações Internacionais, de bengala e tudo, René Pérez, o diretor técnico da delegação, Sergio Vigoa Urrutia, o homem da segurança, e Pedro Cabrera Isidrón, diretor de imprensa e Propaganda, como consta em seu cartão de visitas. Vigoa logo deixou claro que a preocupação dos cubanos em matéria de segurança não se situa nas favelas. “Me preocupam mais as ações voltadas especificamente contra nossos atletas, visando minimizar nossos resultados em campo”, esclareceu. Tradução: agentes americanos podem querer desestabilizar nossa delegação. René Pérez, por sua vez, sabatinou em profundidade o “prefeito” da Vila Pan-americana, o general de reserva Paulo Laranjeira, para prevenir surpresas nas acomodações dos atletas – que por sinal são de nível superior ao das sete últimas olimpíadas (melhor deixar os sucessivos afundamentos de terreno de fora). Laranjeira, ao informar que haveria duas medidas de cama à escolha das delegações (2 metros e 2,20 de comprimento) achou simpático concluir com uma nota leve:
– De todo modo, os atletas só voltam para seus quartos na hora de dormir, disse o militar brasileiro.
– Para nosotros, descanso es trabajo, rebateu o cubano. En desporto, el descanso es fundamental.
– Sim, é claro”, tratou de desconversar o alcaide.
Susto mesmo os homens de Havana levaram quando pediram para inspecionar o local onde se realizarão os jogos de beisebol, a paixão nacional cubana. No lugar do gramado impecável e arena em forma de diamante, depararam-se com um imenso descampado, povoado de pedregulhos, pedaços de asfalto derretido, sacos e mais sacos de plástico usados, e uma inexplicável quantidade de balões de festa, murchos. Ao fundo, o esqueleto de metal da Cidade do Rock. O choque e as ameaças a portas fechadas foram tão contundentes que o CO-Rio aceitou de imediato ajuda técnica de quem entende da matéria. O que explica a presença no Rio de Pedro Abella Hernandes, que está sempre de boina e frequentemente é confundido com algum integrante do Buena Vista Social Club. Às vésperas da abertura dos Jogos, ele exalava satisfação.
Foi numa manhã de sábado recente que Agberto Guimarães expôs parte de sua equipe ao teste do real. Um grupo de 34 pessoas se apresentou, às 8 e meia da manhã, em frente à sede do CO-Rio, e embarcou no ônibus fretado em clima de piquenique. Para muitos, seria a primeira vez que poriam os pés nas instalações que conhecem, há anos, sob forma de siglas, relatórios, gráficos, planilhas, mapas ou fotos digitais. Circunstâncias de última hora obrigaram Guimarães a saltar a parada inicial – a Vila Pan-americana, cujo terreno havia afundado na véspera e era manchete dos jornais cariocas daquela manhã, estava interditada. Quando o ônibus embicou pela Linha Amarela, a Vila apareceu do nada, à direita. O chefe não perdeu a piada. “Contei os prédios”, anunciou, em tom sério. “Estão todos lá. E de pé”.
Ricardo Prado recebeu os devidos aplausos porque conseguiu acordar cedo. Desde que se juntou à equipe de Guimarães – e sobretudo desde que escapou de um grave acidente cardíaco – retomou a natação “com o mesmo não-prazer da minha época de treinos”. Vive às turras com a balança, e tenta nadar 3 000 metros todos dias. Naquela manhã, estava preocupado com o partidor para as provas de remo, equipamento húngaro que custa perto de 70 000 euros e que havia sido danificado sob guarda da Polícia Federal. Em compensação, uma segunda leva de 240 bolas para hóquei sobre grama estava a caminho, vinda da Austrália, para substituir as trezentos compradas anteriormente na Nova Zelândia – uma mudança de padrão adotada no início do ano pela federação internacional levou o CO-Rio a se adiantar. Todos os equipamentos utilizados nos Jogos Pan-americanos precisam ser previamente homologados pelas federações dos respectivos esportes.
O caminho acabou sendo longo, da Barra da Tijuca até o Complexo Esportivo de Deodoro, na Zona Oeste. Recepcionado pelo coronel Mauro Secco, que mostrou as instalações de tiro com orgulho de curador de museu, o grupo chefiado por Guimarães foi pego de surpresa. Mesmo para quem não consegue memorizar as características básicas das quatro modalidades do esporte, as instalações de Deodoro impressionam. Ali foi erguido o maior centro de tiro esportivo do continente. “Talvez do mundo”, acrescenta, rápido, o coronel Secco. O galpão de concreto fechado, com capacidade para 80 postos de tiro de ar comprimido de 10 metros, surpreende pelo gigantismo.
Pelas contas de Ricardo Prado, naquela mesma manhã deveria estar aportando no Rio o tão aguardado carregamento para as provas de outra modalidade, o tiro ao prato – 55 máquinas do tamanho de um aquecedor de água, com 200 000 pratos da mesma marca que equipará os Jogos de Pequim, no próximo ano. O conjunto atende pelo nome de pedana e as carabinas são calibre 12, cuja autonomia de vôo não ultrapassa os 60 metros. No máximo 80, ensina o coronel Secco. Por conseguinte, nenhum motorista ou pedestre de passagem pelo trecho da Avenida Brasil , que passa a 300 metros dali, precisa ter medo de ser atingido por uma bala pan-americana perdida. Já o contrário não pode ser garantido. Baratas voam. Tiros também.
E abelhas picam. Em sua saudação ao grupo de visitantes do CO-Rio, o coordenador de competições de Deodoro, general reformado Pascoal Vaz, achou apropriado fazer um anúncio. “Tivemos uma notícia ruim. Morreu anteontem o cavalo.” Foi interrompido por um discreto aceno de mão de Agberto, sugerindo uma mudança de assunto. Na verdade, o general Vaz lamentava a morte, ocorrida dois dias antes, em Bruxelas, da montaria Oásis, grande aposta do cavaleiro Rodrigo Pessoa para as competições de porte de 2007. Só que o gerente geral de esportes pensava na égua Zamarra, que sofrera um ataque de abelhas durante o 39º Campeonato Mundial Militar de Pentatlo Moderno, o que embaçou ligeiramente aquele evento-teste realizado no mês de maio. A tenente Luciana Almeida, do 2º Regimento de Cavalaria de Guarda, que ainda tentou salvar o animal e levou quarenta picadas, sobreviveu. Já o animal, apesar da intervenção de três veterinários e da equipe de apoio, foi a óbito.
“Cavalos são, sempre, uma grande preocupação”, diz Guimarães. Tanto por sofrerem, como por provocarem acidentes sérios. Por isso, um helicóptero com uma mini-CTI a bordo, e equipamento para operações de resgate, foi requisitado à Marinha para ficar de prontidão no Complexo de Deodoro, onde se realizarão as provas de hipismo e pentatlo moderno.
É longa e sonolenta a travessia de ônibus de Deodoro até o estádio João Havelange, o chamado Engenhão. O celular de alguém da equipe, esquecido numa bolsa ou bolso, toca uma, duas, três vezes sem ser atendido. Postado à frente do ônibus, antes de se incomodar pela quarta vez, Guimarães levanta a sobrancelha, e comenta, em voz bem audível:”Chatinho esse som, não?”. Durante o resto da visitação, que durou até o final da tarde, nenhum celular tocou mais de duas vezes no ônibus.
Guimarães passou uma tarefa demente aos coordenadores técnicos e responsáveis de setor: elaborar uma lista, literalmente minuto a minuto, de tudo o que acontece duas horas antes, durante, e imediatamente após cada competição. No caso da natação, que tem provas com menos de 25 segundos de duração, o relatório resultou num catálogo de 35 páginas. Tal providência, em tese, ajudaria a evitar surpresas. “A que horas devem chegar as costureiras de plantão na Vila Pan-americana, contratadas para pregar a identificação dos judocas nas costas de seus quimonos?” pergunta uma voluntária. É que, com a chegada das delegações, cada chefe de equipe vai começar a entregar duas pilhas de uniformes que precisam ser costurados antes da competição. Um azul e um branco. Desde que a federação internacional acabou com a tradição dos competidores usarem quimonos só brancos – o que resultava numa confusão danada entre quem aplicava e quem levava o golpe –, todo atleta precisa ter quimonos azuis e brancos. A cor que usará em luta é decidida por sorteio.
Outra pergunta: quem fará a aferição das balanças, à disposição dos atletas 24 horas por dia, e com que freqüência? A localização das lixeiras na arena de ciclismo e a planilha com os horários de coleta já foram definidas pelo engenheiro da Comlurb? E a grade de desembarque e retorno dos árbitros, cujo contrato exige a chegada na cidade 48 horas antes de sua função, com partida 24 após o encerramento? É um quebra-cabeças que nunca fecha. Numa semana os árbitros estão apitando em Bruxelas e na semana seguinte podem estar em Mombassa, o que transtorna pela enésima vez o planejamento. “Além de dar muita dor-de-cabeça”, comenta um venenoso observador da classe, “eles são uma simpática turma de folgados que adora passear de carro e sabe perfeitamente onde morder.”
Agberto Guimarães perdeu uma medalha olímpica ao chegar, em quarto lugar, na prova dos 800 metros, em Moscou, em 1980. Foi uma experiência marcante. Ele a relata: “Eu poderia ter sido a grande zebra daqueles Jogos Olímpicos, vencendo o recordista mundial dos 800 metros, Sebastian Coe, e o recordista mundial dos 1500, Steve Ovett. Eu ia chegar com meu pescoço lá atrás, mas ia chegar, pois meu forte eram os últimos 200 metros, e ninguém me alcançaria quando eu deslanchasse. Mas hesitei. E quando você hesita, as conseqüências são desastrosas”, rememora.
Quatro anos mais tarde, em Los Angeles, ele viveu uma nova decepção: voltou sem medalha. Ele decidiu então voltar de vez ao Brasil, com 7 000 dólares no bolso. “Quando você volta dos Estados Unidos, é recebido com desconfiança. Ou você é um fracassado, ou vai botar banca por ter sido atleta de prestígio”. Traduzindo: ou vai tentar ser vereador, ou não vai querer botar a mão na massa. Ele decidiu botar a mão na massa. Organizou treze edições da corrida São Silvestre, dirigiu o Ibirapuera como funcionário da secretaria de Esportes de São Paulo, e acabou contratado para tocar vários projetos no Comitê Olímpico Brasileiro.
“Aprendi uma coisa”, garante. “Jamais vou ceder meu lugar para absolutamente ninguém, de graça. Quem quiser sentar onde estou, vai ter pelo menos de percorrer o mesmo caminho e passar pelas mesmas coisas que eu. Se quiser disputar espaço comigo, vai ter de ter competência para me tirar de lá. No que eu puder, vou defender meu espaço”. Foi com esse ímpeto competitivo que ele aceitou preparar o Pan. O parto foi longo e complicado. Mas, para ele, não foi o único parto do ano. Nem o mais importante. Num quarto do seu apartamento, na rua Marquês de São Vicente, Luiza adormece no seu colo, embalada pela voz de timbre anasalado de Guimarães. A menina nasceu no dia 20 de janeiro, com exatamente a mesma marca do pai: uma grande e inexplicável mancha escura no dorso do pé direito.
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