O delegado Protógenes deu à Globo a exclusividade da cobertura da prisão de Daniel Dantas e usou funcionários da emissora para gravar um suposto flagrante de tentativa de suborno
Protógenes e eu
Raimundo Rodrigues Pereira | Edição 48, Setembro 2010
O delegado Protógenes Queiroz comandou, desde o início de 2007, a famosa Operação Satiagraha, que em julho do ano seguinte levou à prisão o banqueiro Daniel Dantas. Escrevi várias reportagens e artigos a respeito da operação na revista mensal Retrato de Brasil. A opinião que formei sobre a investigação de Protógenes Queiroz é a pior possível. Mas só o conhecia por meio das suas obras: os relatórios e documentos que produziu durante e depois da Satiagraha, tomados como base para o meu trabalho. Quis então vê-lo em ação. Tinha feito duas tentativas de contato, por meio de um conhecido de nós dois, o ex-líder sindical Luiz Antônio de Medeiros. Protógenes não quis me receber.
Na noite de 22 de julho passado, no entanto, ele estava prestes a dar um passo público importante: virar político profissional. Ia inaugurar o escritório central de sua campanha para deputado federal por São Paulo, pelo Partido Comunista do Brasil. O evento tinha para mim outros significados. Embora não seja nem nunca tenha sido do PCdoB, tenho inúmeros amigos no partido, e tentei entrar nele em 1991. Desisti dessa pretensão por motivos que não vêm ao caso. Mas respeito o partido.
Fui ao lançamento da candidatura sob o impacto de ter lido, dois dias antes, um documento escrito pelo próprio Protógenes Queiroz. O texto é a defesa que apresentou, no final do ano passado, à 7ª Vara Federal Criminal de São Paulo, no processo em que a Polícia Federal o acusou de violar as suas tarefas funcionais.
A autodefesa de Protógenes é risível. Há partes que são verdadeiros disparates. Ele argumenta, por exemplo, que a denúncia contra ele é inepta porque ignora o custo pessoal que teve na sua investigação contra Daniel Dantas. E diz, a seguir, que esse argumento “não é apelativo, mas está inserido no contexto abstrato, ou aberto ou ainda indeterminado do direito, denominado de justa causa, em que a apreciação correta do léxico impõe análise valorativa, transjurídica dogmática”.
Passagens patéticas desse tipo já estavam presentes em inúmeros relatórios que o delegado escreveu durante a Satiagraha, e com os quais conseguiu autorização judicial para a escuta telefônica e a quebra do sigilo na internet de umas vinte pessoas.
Como se comportaria o delegado no lançamento de sua candidatura? Diria alguma besteirada do mesmo tipo? Era a hipótese que eu tinha. E ela estava errada. Para os fins a que se propõe, o delegado saiu-se muito bem.
Cheguei ao comitê, perto da estação de metrô da Vila Mariana, em São Paulo, às sete da noite. Havia pouca gente e ele ainda não havia chegado. E saí perto das 22 horas, quando, depois de uma sequência de discursos em seu apoio, ele encerrou o evento sob o aplauso de cerca de 300 pessoas.
O primeiro a falar foi José Rainha, o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Pontal do Paranapanema. Ele deu o tom dos pronunciamentos. Rainha, que já foi preso algumas vezes, observou o que é tão certo quanto trágico: cadeia no Brasil é lugar para pobre. Baseado nessa constatação, concluiu que era preciso eleger o delegado porque ele mostrou que tudo pode ser diferente: prendeu Daniel Dantas, o rico. “Por isso dou nota 95 para você, Protógenes”, disse. E explicou a seguir que não dava nota 100 porque ainda era preciso que ele prendesse um homem da classe social opressora dos sem-terra, um latifundiário.
Na sequência, falou o combativo vereador Jamil Murad, do PCdoB paulistano. Para nova vibração do público, Murad corrigiu o líder dos sem-terra: “Você esqueceu, Rainha, que Daniel Dantas é também um grande latifundiário. Ele tem mais de 500 mil cabeças de gado em suas fazendas no Pará.”
Protógenes atuou como mestre de cerimônias. Citou inúmeras pessoas pelo nome e chamou para o lugar das autoridades todos os muitos candidatos a deputado estadual que o apoiam. A partir das pessoas e cargos que citou nominalmente se pode deduzir que criou vínculos nas mais diversas camadas. Lá estavam católicos, protestantes e muçulmanos; maçons e umbandistas. Artistas de nomeada como Netinho de Paula e Lecy Brandão, bem como sambistas e representantes de grupos culturais da periferia. Havia operários, professores e um empresário de uma importante rede de ensino que, aliás, fez questão de comparecer, embora poucos dias antes tivesse feito uma cirurgia.
Depois das inúmeras apresentações, o delegado falou poucos minutos. Resumidamente, apresentou três livros, dois relacionados com o combate à corrupção e um terceiro, do poeta Eduardo Alves da Costa, intitulado No Caminho, com Maiakóvski. Os livros sobre corrupção serviram de gancho para repetir os bordões que vinha dizendo em palestras desde que foi afastado da Polícia Federal. Do livro que cita o escritor russo, leu um poema que fala de um coração indômito.
Àquela altura, Protógenes tinha estado com vários partidos. Falou primeiro com o Partido Socialismo e Liberdade, formado basicamente por ex-dissidentes do PT. Esteve também com Ricardo Berzoini, o presidente do Partido dos Trabalhadores. Anunciou a Berzoini que queria se filiar a um partido da “base aliada”, ou seja, do grupo de apoio ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Quase entrou no Partido Democrático Trabalhista, através do deputado Paulinho, da Força Sindical, uma das centrais de trabalhadores.
Na inauguração do comitê, ele estava há quase um ano no PCdoB, do qual se tornara, além de candidato, dirigente regional. E, como se pode concluir de seu desempenho naquela noite, passou por uma espécie de curso de madureza do partido. O PCdoB fez com que ele se concentrasse na campanha em São Paulo, a despeito de ser requisitado para palestras em todo o país.
É possível que Protógenes Queiroz tenha uma boa votação. Por um motivo simples: é uma ideia bastante difundida que, para dar certo, o Brasil precisa de grandes homens que combatam os grandes ladrões. O delegado não seria o primeiro a se eleger por esse caminho. Diversos caçadores de corruptos, que depois se provariam mais falsos que uma nota de 3 reais, subiram bastante por essa via, depois de iludir muita gente. Em 1960, o Brasil elegeu Jânio Quadros presidente. Meio século depois, apesar de muita coisa ter mudado, não estamos, a meu ver, numa época de grande desenvolvimento político.
Tentando explicar melhor: desde 1989, votei em Luiz Inácio Lula da Silva para presidente. E votarei agora na sua candidata, Dilma Rousseff. Mas acho que o caso Daniel Dantas ganhou a notoriedade que teve porque serviu bem à construção dessa conjuntura de expectativas reduzidas em que vivemos: o presidente Lula, que procuramos levar ao poder sob o impulso de um grande movimento popular, e com a pretensão de que um governo liderado por ele promovesse transformações nas seculares e injustas estruturas sociais do Brasil, acabou fazendo dois governos preocupados em se transformar no “pai” e, ao final, em eleger uma “mãe” dos pobres – e, do ponto de vista estrutural, não mudou nada.
A tarefa que o delegado Protógenes Queiroz recebeu da Polícia Federal no começo de 2007 era investigar a relação existente entre o dinheiro do Opportunity Fund – um fundo em Cayman, gerido por Dantas, que investiu na compra de empresas de telefonia estatais nas privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso – e o chamado “mensalão”, o escândalo político do primeiro mandato do presidente Lula. Com dinheiro das empresas de telefonia que controlou de 1998 até perto do final de 2005 (a Brasil Telecom, a Telemig e a Amazônia), Dantas teria sido um grande financiador do PT, na campanha vitoriosa de Lula em 2002, e depois da sua posse. Pelo lado do partido, o esquema teria sido montado pelo tesoureiro, Delúbio Soares, e pelo publicitário mineiro Marcos Valério.
É preciso reconhecer que não era uma tarefa fácil, pois seria preciso comprovar, além da ligação do banqueiro com o “mensalão”, a presença irregular de brasileiros no Opportunity Fund, gerido por Daniel Dantas nas ilhas Cayman. Seria preciso entender, para começar, que as leis relativas às aplicações de fundos como o do Opportunity tinham sido criadas exatamente para permitir que brasileiros com dólares levados de modo irregular para o exterior pudessem aplicá-los no país sem serem identificados.
Tanto que o Opportunity Fund foi lançado em 1992, logo depois que um rol de normas legais foi estabelecido para, digamos assim, limpar as entradas de dinheiro sujo. Isso começou em 1986, com o decreto-lei 2285, que instruiu o Conselho Monetário Nacional a aplicar a esses fundos regras favorecidas de imposto de renda. No ano seguinte, a resolução 1289 definiu os limites dessas aplicações favorecidas. Em 1991, já no governo liberal de Fernando Collor, o Banco Central criou o famoso Anexo IV para organizar os investimentos no Brasil dos fundos constituídos no exterior. E, finalmente, em janeiro de 1992, a Comissão de Valores Mobiliários regulamentou essa modalidade de negócio.
Quando Protógenes recebeu a sua tarefa, não havia mais sequer a exigência formal de que esses fundos constituídos no exterior, para aplicação no Brasil, só poderiam aceitar pessoas físicas ou jurídicas não residentes aqui. Desde 2000, a legislação estabeleceu amplíssima abertura do Brasil aos capitais externos. Pelas normas em vigor em 2007, qualquer pessoa brasileira, física ou jurídica, para fins de aplicações no país, passou a ser considerada não residente, desde que invista aqui através de um fundo domiciliado no exterior. O fundo – e não os que investem nele – é que tem de ser não residente.
As dificuldades da investigação desses fundos pelo delegado, no entanto, não se deram devido a essas questões amplas e complexas. Elas nem são mencionadas em seu relatório final, que em vários pontos se propõe a defender o “sistema financeiro” em geral.
Os problemas são mais comezinhos. Da leitura das transcrições de gravações – selecionadas por ele e apresentadas nos inúmeros relatórios com os quais conseguiu do juiz Fausto de Sanctis a prisão de quase todos os que pretendia prender – resulta um amontoado de coisas muitas vezes incompreensíveis. O trabalho técnico das transcrições é malfeito. O que é pior, elas são interpretadas algumas vezes à beira do delírio. E constituem, no essencial, um conjunto de bobagens sobre o sistema financeiro.
Vejamos algumas delas. Protógenes afirma – ou endossa a opinião de seu exército de analistas e grampeadores – que Naji Nahas, uma figura marginal no sistema financeiro brasileiro, manipulava o Federal Reserve, o banco central americano. Sustenta que Nahas estava à frente do processo de formação do Fundo Soberano que iria ser criado pelo Brasil (que, de fato, foi posteriormente aprovado pelo Congresso Nacional) e receberia uma comissão pelos títulos a serem emitidos.
O delegado também defende que o Fundo Soberano brasileiro seguirá o modelo adotado por países “totalistas”, onde empresários são também detentores do poder político. O delegado acha que paraíso fiscal é uma coisa maligna, e não parte de uma construção financeira intrincada e de alcance internacional.
Por exemplo: desconfia da existência de um pagamento em paraíso fiscal para o ex-ministro José Dirceu. E justifica a suspeita com a interpretação da transcrição de um grampo de um sócio de Dantas, Humberto Braz. Este último fala com um “Giba” – e Protógenes acha que é Gilberto Carvalho, secretário do presidente Lula. Na conversa surge o nome de Andréa – ela se transforma em Andréa Michael, da Folha de S.Paulo, que o delegado queria prender. Na transcrição, aparece também o pagamento em nome de um “ele” e uma “conta curral”. O “ele” vira José Dirceu – porque Protógenes supôs que “conta curral” é um termo cifrado para um pagamento no exterior.
Só que o delírio é inspirado por uma transcrição malfeita. O que se diz na gravação não é “conta curral”; é Ponta do Curral, um local no sul da Bahia onde Daniel Dantas e Braz tinham um projeto. Andréa não é a repórter; é o nome da secretária de Humberto Braz. O delegado vislumbra, ainda, junto com as quadrilhas de Dantas e de Nahas, uma quadrilha mais acima, sugerindo que se trata do Palácio do Planalto.
Esse conjunto de hipóteses sem fundamento só adquiriu credibilidade perante a opinião pública porque os procuradores e o juiz que as leram, ou deveriam ter lido, não se deram conta do seu absurdo. São hipóteses de fraudes homéricas. Se comprovada qualquer uma delas, estouraria um megaescândalo nacional, e mesmo global. E o delegado poderia, com muita razão, prender os culpados e expô-los à execração pública. Mas não se fez nada para efetivamente comprovar o valor dessa manada de suposições levianas ou mal-intencionadas. Lamentável é que, graças à ajuda da imprensa, esse trabalho ruim adquiriu ares de verdade.
A Polícia Federal tem um órgão técnico que poderia ter ajudado Protógenes Queiroz na busca de operações suspeitas do Opportunity, pelo menos no aspecto contábil. Na minha crítica ao trabalho do delegado, ressalvo o Instituto Nacional de Criminalística, órgão do Departamento de Polícia Federal que lhe apresentou três relatórios sobre o exame do disco rígido do computador central do Opportunity, apreendido em 2004, mas só liberado pela Justiça para exame em 2006.
A conclusão do Instituto é datada de 19 de junho de 2008. Ela é cautelosa. Sugere que sejam feitos “exames contábeis e financeiros em toda a documentação do banco”. Diz como deveriam ser feitas operações de fiscalização e quebra de sigilo bancário, para facilitar a perícia técnica necessária, “em padrão e leiaute utilizados pelo Instituto Nacional de Criminalística”. O relatório pede esse esforço ao destacar “a dificuldade de se apartar os clientes normais daqueles que efetivamente possam ter participado de operações suspeitas”.
No mesmo dia, o Instituto Nacional de Criminalística entregou o seu relatório, no entanto, o delegado Queiroz desistiu de perseguir o dono do Opportunity por essa via difícil. E decidiu pedir ao juiz Fausto de Sanctis a permissão para realizar a operação com a qual viria obter, posteriormente, do mesmo juiz, a condenação de Daniel Dantas por suborno.
Desde meados da década de 80, eu e vários companheiros, em projetos dos quais participei, optamos por pesquisar essa “via difícil”. O objetivo desde então foi fazer uma investigação ampla do sistema financeiro nacional, sem a preocupação mesquinha de produzir bodes expiatórios, mas com vistas a entender os mecanismos do sistema. E assim contribuir para popularizar os seus segredos, e corrigir as leis que estimulam a especulação financeira desenfreada no qual o Brasil está enfiado.
Com esse intuito, em abril de 1989 publiquei uma reportagem na revista Playboy sobre os caminhos do dinheiro. Ela ajudava a desmistificar a imagem de Cayman vendida pelos que acham que o mundo está mal por conta dos conspiradores e das quadrilhas de ladrões que carregam malas de dinheiro escuso para paraísos fiscais. Na reportagem, a ilha caribenha foi apresentada como uma das peças do sistema financeiro internacional, criada sob comando dos americanos, num país sob sua tutela, nos anos 60, para servir a seus interesses hegemônicos no grande mundo das finanças. E explicava:
Se uma empresa japonesa faz uma exportação de 10 milhões de dólares para os Estados Unidos e recebe o pagamento em um banco em Nova York, tanto ela pode converter os dólares em ienes, e remetê-los de volta para o Japão, como pode pedir que o banco lhe transfira esses 10 milhões para um banco que seja correspondente do primeiro em Cayman. Os dólares são considerados, após essas tratativas – devidamente registradas no papel e reconhecidas pelo Fundo Monetário Internacional, que supervisionou a montagem do sistema financeiro da ilha – como dólares em Cayman. E sujeitos às leis da ilha, feitas exatamente para atrair dólares. Não há nenhum tipo de imposto, além de uma taxa de 9 mil dólares por ano. Com a garantia do sigilo absoluto dos nomes envolvidos. O governo de Cayman só informa o nome da empresa e sua localização. Não diz nem de que país é; muito menos quem são seus sócios. A legislação da ilha pune ainda o cidadão que der informações além dessas com prisão.
A reportagem defendia que Cayman não era “o paraíso onde a máfia da cocaína e a lúmpen-burguesia do Terceiro Mundo lavam e enfurnam dólares. Os negócios do crime e as finanças pessoais de uns tantos ladrões são gotas no oceano de dólares movimentados por grandes bancos, empresas e governos nacionais”. E esclarecia:
No mundo de hoje, com taxas de câmbio livres, as grandes companhias não têm como determinar de antemão as margens de lucro nas exportações de bens que exigem prazo longo de fabricação, como equipamentos pesados, aviões. A fixação do preço das moedas é uma guerra, decidida entre os bancos centrais das grandes nações, as grandes corporações e os bancos privados. Todos entram pesado no mercado para puxar para lá ou para cá esta ou aquela moeda nacional, conforme seja este ou aquele o negócio que se pretenda realizar.
Retornando ao caso que nos interessa: foi para aproveitar cerca de 700 milhões de dólares que tinha a receber da dívida externa brasileira que um banco americano, o Citibank, um dos grandes jogadores desse mercado global de dinheiro, criou um fundo em Cayman. Depois de uma renegociação da dívida, o Brasil voltou a pagar. E o Citi constituiu Daniel Dantas como gestor desse fundo de aplicações no Brasil. Isso daria ao Citibank uma enorme força em vários negócios da privatização das estatais brasileiras.
O delegado Protógenes Queiroz não procurou ver esse quadro mais amplo porque seu método para analisar as questões financeiras foi grampear conversas e mobilizar arapongas e analistas precários. E tirou desses grampos os fragmentos que o mau jornalismo transformaria em escândalo.
Depois da Satiagraha, as operações do delegado vieram a ser investigadas pela própria Polícia Federal. No dia 5 de novembro de 2008, foram apreendidos materiais da investigação dele em seus locais de moradia. Esses materiais comprovaram que a prisão de Daniel Dantas e de várias pessoas, comandada pelo delegado em julho daquele ano, fora precedida por dezenas e dezenas de conversas telefônicas com Luiz Roberto Demarco, um empresário de porte médio, sabidamente o mais implacável dos inimigos do banqueiro.
As gravações indicam que Demarco ajudou Protógenes a preparar a prisão de Dantas. Em abril, três meses antes das prisões, o empresário declarou a um repórter da revista italiana L’Uomo que estava em andamento uma grande operação contra Dantas, envolvendo a Polícia Federal e o Judiciário.
Dias depois da entrevista, o delegado recebeu a transcrição do grampo de uma curta conversa entre Dantas e seu sócio Humberto Braz, na qual o nome “Protógenes” era citado. A transcrição cabe em duas páginas, e o delegado as selecionou, entre as 6 mil páginas de grampos e análises da Satiagraha, e as colocou nos seus dois relatórios finais, um preliminar e outro definitivo, quando já estava afastado da chefia da operação.
Quando li essas duas páginas pela primeira vez, no escritório do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, me pareceu que Protógenes encontrou nelas a oportunidade para armar o bote perfeito contra a presa que vigiava há meses. Era a chance de prender Dantas, não por crimes financeiros, como há anos tentava, sem êxito. Mas por corrupção.
A conversa transcrita não era muito clara. Mas o nome “Protógenes” aparecia. E havia duas falas de Dantas, destacadas pelo delegado em negrito, que poderiam sugerir, de fato, que o banqueiro o procurava. Eis a transcrição, com as ênfases adicionadas pelo delegado:
Humberto Braz: Alô… oi…
Daniel Dantas: Oi… não… o Chico acabou de me ligar que ele esteve com Aline e ela disse pra ele uma coisa um pouquinho diferente do que disse pra você, acho até que disse pra você certo… Mas não mencionou esse assunto de que houve aquela discussão…
Braz: Tá…
Dantas: Meio que colocou que o objetivo continua sendo o original… e quem tá responsável é esse Protógenes mesmo…
Braz: Sei. Eu acho também, é o que eu acho também… eu não tenho… aliás eu não tenho dúvida nenhuma até porque afinal ele teria…
Dantas: Ele não tinha dito que tinha recebido de Otávio uma orientação em direção oposta?
Braz: Não, ele não recebeu… ele tem…
Dantas: Ele não… ele soube que foi recebido…
Braz: Soube e eu não tenho dúvida nenhuma que recebeu pelos detalhes que ele deu…
Dantas: Tá bom…
Braz: Nenhuma, nenhuma…
Dantas: Agora já que identificou quem é…
Braz: Agora ele tem… o problema é que ele tem um contato ali que ele quer proteger até o fim da vida, viu? Então ele… ele não vai nem confirmar isso aí não…
Dantas: Confirmar pra você?
Braz: Não… pra mim tudo bem… pra mim tudo bem, eu tô dizendo ele…
Dantas: Não… eu sei, mas minha pergunta é: se dá… se a gente já sabe quem é o endereço… se não podia entrar em contato?
Ouvi o próprio grampo, pela primeira vez, no Opportunity. Como parte do processo, Daniel Dantas tem direito de baixar no seu computador as gravações sobre o caso que estão na Polícia Federal. Fui lá também para entrevistar Dantas: queria saber como ele se defendia da acusação de Protógenes que se apoiava naquela gravação.
Escutei a gravação em seu computador, no seu escritório no 28º andar de um prédio ao lado da Academia Brasileira de Letras, no centro do Rio. Ouvi primeiro com Dantas. E depois com ele, Humberto Braz e Danielle Silbergleid, advogada do Opportunity, que ele chamou para a sala.
Dantas me apontou a transcrição errada de um nome: “Aline” seria na verdade um tal “Helinho”. E me apresentou um relatório com vários problemas técnicos apontados por peritos contratados pelo Opportunity e apresentados na Justiça em sua defesa. Os peritos contestam a data da gravação, que não seria a mesma no material apresentado ao juiz. Alegam que há saltos que provariam a edição do material periciado. Dantas quis saber a minha opinião sobre uma determinada interrupção na conversa. De fato, essa interrupção me pareceu clara: ela aparece logo depois que Braz diz “não tenho dúvida nenhuma porque afinal ele teria”.
O aspecto principal, e mais convincente, da defesa de Dantas foi o de que na transcrição aparecem claramente dois assuntos distintos. Um é o caso em que surge o nome Protógenes, e ele não tem sequência. O outro caso tem a ver com um “Otávio”. Dantas diz, no grampo: “Ele não tinha dito que tinha recebido de Otávio uma orientação em direção oposta?”
Quem é Otávio? Ora, é Otávio Azevedo. Agora há pouco, em julho, Otávio Azevedo estava nos jornais. Ele anunciava, em nome da Andrade Gutierrez Telecom, da qual é presidente, e da La Fonte Telecom, de Carlos Jereissati, os dois grupos controladores da Oi, a venda, com apoio do governo, de uma fatia da empresa para a Portugal Telecom.
A Oi é a “tele verde-amarela”. Nos dias do grampo, numa articulação comandada pelo governo, ela estava no processo de compra da Brasil Telecom, que até então pertencia ao Opportunity, ao Citibank e aos fundos de pensão brasileiros liderados pela Previ, dos funcionários do Banco do Brasil.
Segundo Dantas, logo depois de mencionar Otávio, quando se fala em “entrar em contato”, o que se queria dizer é que era preciso procurar os advogados da Brasil Telecom. Esses advogados estavam sob o comando de uma empresa gestora de recursos, a Angra Partners. Os advogados seriam prejudicados pelo acordo entre Citibank, Opportunity e fundos de pensão, para venderem juntos a Brasil Telecom à Oi, fato que tornaria caducas todas as inúmeras ações judiciais de uns contra os outros. O acordo deixaria os advogados sem as gordas comissões a serem recebidas pelo chamado “êxito”, a vitória nos litígios.
Eu conhecia um desses advogados, José Roberto Santoro, do tempo em que ele era procurador da República. Pareceu-me lógica, e razoável, a explicação de que Santoro estava interessado em continuar as ações contra Dantas. E a explicação me parece mais razoável agora: Santoro foi uma das muitas pessoas de fora da Polícia Federal com quem Protógenes falou na época da prisão de Dantas.
Não é só minha a opinião de que o trabalho do delegado era imprestável para o fim a que se destinava, o de reunir provas contra crimes. Uma procuradora que analisou alguns de seus relatórios, com os quais justificava o pedido de novos grampos e mais prazo para investigação, a certa altura pareceu perder a paciência.
A investigação, naquela ocasião, já tinha perto de um ano. Em 5 de dezembro de 2007, a procuradora federal Adriana Scordamaglia advertiu Protógenes nos seguintes termos:
Preliminarmente, requer o Ministério Público Federal que a Autoridade Policial indique, pormenorizadamente, quais são as provas até então coletadas que demonstram, concretamente, indícios da prática de crime pelas pessoas em investigação, já que, da análise do contido no procedimento não vislumbro fato palpável que mereça/imponha a continuidade da diligência investigatória. Requer, ainda, que seja esclarecido qual(is) é(são) exatamente o(s) crime(s) e quem são os suspeitos de autoria.
As considerações da procuradora foram encaminhadas ao juiz Fausto de Sanctis, e ele as repassou ao delegado para responder. Dois dias depois, Protógenes respondeu com uma espécie de autoelogio: “Esta Divisão de Operações de Inteligência Especializada, por determinação do diretor-geral, é responsável, dentre outras, pelo desenvolvimento de investigações de inteligência policial complexas.”
A seguir, insinuou que a procuradora claramente ignorava o caso: “É fato notório que a ilustre representante do Ministério Público sequer tem ciência das inúmeras investigações que se processaram ao longo desses anos, no Brasil e no exterior (Itália e Cayman).”
E deu uma informação errada: “Recentemente, autoridades italianas, por meio de um processo de investigação criminal aberto por conta da disputa do Grupo Opportunity e da Telecom Italia, pelo controle da empresa de telefonia Brasil Telecom, em que vários dirigentes foram presos e acusados de diversos crimes, entre os quais financeiros.”
Na verdade, o inquérito aberto em Milão investigava as atividades de espionagem e suborno da Telecom Italia, no país e no exterior. E só tinha a ver com a briga da empresa italiana com Dantas, indiretamente – e o brasileiro aparece como vítima nesse processo.
Protógenes concluiu, com soberba e extravagância, a resposta à procuradora:
O método é lógico e dedutível se existem crimes que estão sendo investigados envolvendo o grupo Telecom Italia, Brasil Telecom e o grupo Opportunity na Itália em que se vislumbram operações financeiras e no mercado de capitais para tal contenda com indícios de fraudes e outros ilícitos, que também tiveram passagem no Brasil, por razões óbvias que existem indícios de crimes financeiros e outros a serem apurados também no Brasil.
Passaram-se mais alguns dias e a procuradora Adriana Scordamaglia voltou à carga. Disse que não recebeu resposta para o que pediu. Observou que o delegado sugerira que ela ignorava os fatos. Chamou seu arrazoado de sem sentido: “A Autoridade Policial, a seu turno, ao ser intimada para prestar os esclarecimentos solicitados, restringiu-se a tecer comentários genéricos, abstratos e desconexos…”
A procuradora argumentou que não bastava achar que os acusados foram bruxas no passado:
A qualidade e a especificidade da investigação policial, marca registrada de todas as investigações em tramitação nas varas especializadas, não dispensa, a toda evidência, que haja documentado nos autos, ao menos um começo de prova a incentivar a investigação. Infelizmente, ainda que as pessoas em investigação nesses autos sejam conhecidas por seu passado criminoso, até agora não existe nada que, ainda que iniciariamente, demonstre a necessidade de continuação das investigações e, sobretudo, a viabilidade da acusação.
O parecer da procuradora foi ao juiz De Sanctis e voltou a Protógenes, que encaminhou novo pedido, mudando o argumento genérico para outro, também evasivo, onde desenvolve sete pontos sobre a questão da “manipulação de informações”. E insistiu na bobagem de dizer que Nahas teve informações privilegiadas sobre decisões do Federal Reserve a respeito de juros, e, portanto, era uma ameaça ao sistema financeiro, o que não é crível para qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento do assunto.
Pouco depois, a procuradora Scordamaglia saiu do caso. O seu substituto aceitou as alegações do delegado. O juiz De Sanctis as despachou favoravelmente. E Protógenes continuou obtendo a abertura de sigilos telefônicos e de comunicações de várias pessoas. Ele trabalhava com efetivos da Polícia Federal e, à margem dela e à revelia de seus chefes, com uma legião de arapongas e analistas que catou na Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, e na iniciativa privada.
Com essas forças, conseguiu a prisão de Humberto Braz por tentativa de suborno. A tentativa teria se consumado durante um jantar no restaurante El Tranvía, em São Paulo, perto da estação de metrô Marechal Deodoro, em junho de 2008. Dele participaram Humberto Braz, o delegado Vitor Hugo (um amigo de Protógenes que serviu de isca) e Hugo Chicaroni, um ex-professor da Universidade de São Paulo.
A cena da corrupção foi levada ao ar pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, numa reportagem de César Tralli. A gravação tem quatro minutos e quarenta segundos e mostra seis sequências de imagens. Eu e Armando Sartori, editor de Retrato do Brasil, analisamos durante cerca de dez horas as falas, a narração, as imagens e a montagem da reportagem do Jornal Nacional, e publicamos uma avaliação na revista. Concluímos que havia uma dezena de erros factuais, que não vem ao caso repetir agora, embora mostrem a precariedade do trabalho da emissora.
Fiquemos no substancial, a armação. Uma das imagens mostra Humberto Braz e Chicaroni trocando de lugar na mesa do restaurante. O áudio, no entanto, registra um diálogo entre Chicaroni e Vitor Hugo. A simultaneidade de som e imagem era impossível: se vê, claramente, Braz e Chicaroni em primeiro plano, e, mais ao fundo, Vitor Hugo. Se o diálogo e a imagem fossem da mesma cena, se veria Chicaroni, diante de Braz, tentar obter do delegado Vitor Hugo a concordância em extorquir de Braz mais dinheiro. Nas falas, reproduzidas em legendas da Globo, Chicaroni diz: “Já que ele ofereceu 500 mil, pede 1 milhão de dólares.” E, depois: “Pra ele chegar em 700, 800.”
A montagem mostra, portanto, um absurdo. E mesmo se aquela cena tivesse realmente existido, a prova não teria valor legal. Nas operações controladas para flagrar tentativas de suborno (feitas obrigatoriamente sob estrita vigilância do juiz, que precisa ser notificado de todos os passos dados e de todos os resultados obtidos), a pessoa que se apresenta para ser subornada não pode tomar a iniciativa. Se o fizer está cometendo um crime, de extorsão. E a prova não vale.
Ainda assim, a prova valeu para muita gente importante. Valeu para o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal. Ao se pronunciar contra o habeas corpus concedido por outro ministro do STF, Eros Grau, que soltou Humberto Braz depois de um mês de prisão, Barbosa declarou: “Como você pode soltar um homem que aparece no Jornal Nacional oferecendo suborno?”
Na análise que publicamos na Retrato do Brasil, afirmamos: “O que não se sabe ainda é quanto da armação veio pronta da PF e quanto é contribuição própria da Globo.” Isso se sabe agora, graças à investigação feita pela Polícia Federal sobre o trabalho do delegado, e aos autos do processo aberto na Justiça para avaliar os delitos que ele cometeu.
O inquérito sobre a Satiagraha foi aberto, no dia 24 de julho de 2008, pelo delegado Amaro Vieira Ferreira. O seu relatório final foi entregue ao juiz Ali Mazloum, da 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo, nove meses depois.
O delegado Amaro Ferreira estabeleceu que Protógenes contou com amplos recursos. Durante meio ano, incluiu entre seus auxiliares, de modo totalmente informal, 82 colaboradores da Abin. Somados os recursos oficiais recebidos, dispôs de mais de 850 mil reais, quase 100 mil por mês: 466 mil da PF e 381 mil da agência, sem computar os custos do pessoal envolvido. Foram cerca de trinta pessoas por mês: dez dos quadros da PF, ao longo de todo o tempo, e mais vinte por mês, em média, da Abin.
Os funcionários da agência foram fornecidos pelo seu então diretor-geral, Paulo Lacerda, a partir de outubro de 2007, conforme declarações dele na Comissão Parlamentar de Inquérito das Escutas Telefônicas Clandestinas, também chamada de a CPI do Grampo, na qual prestou depoimento.
Paulo Lacerda, que foi afastado da Abin em função desses acontecimentos, declarou ao Jornal do Brasil considerar a cessão de funcionários da Abin à PF uma coisa normal, tendo em vista ser “o alvo do perfil de Daniel Dantas”. Disse ainda que, “se ele [Protógenes] tivesse pedido 300 [funcionários], seriam 300”.
Para Amaro Ferreira, Protógenes desobedeceu às ordens de seu chefe na Polícia Federal, o delegado Daniel Lorenz. Ele foi advertido quando Lorenz flagrou um funcionário da Abin em área reservada da PF, onde fica o comando do Guardião. E foi proibido de continuar com essa prática. Mas funcionários da Abin, sob a orientação de Protógenes, continuaram no local. O Guardião é uma espécie de Big Brother: é o sistema de grampo policial que se infiltra na rede de telefonia e de internet para gravar conversas e mensagens de números de telefone e endereços na rede cujo segredo tenha sido aberto pela Justiça.
Pelo relatório de Ferreira, fica evidente que o delegado não apenas deu à Globo a exclusividade da cobertura da prisão de Daniel Dantas. Ele usou funcionários da emissora, no papel de policiais, para gravar a famosa conversa no restaurante El Tranvía mostrada no Jornal Nacional. Protógenes dissera ao juiz Fausto de Sanctis que a gravação havia sido feita pela Polícia Federal. Era mentira. A prova maior está na fita sem cortes, encontrada na busca policial do dia 5 de novembro de 2008 num dos locais em que o delegado morava, o apartamento 2508 do Shelton Inn, em São Paulo.
De acordo com a declaração de bens que fez em julho passado à Justiça Eleitoral, ao se inscrever como candidato a deputado, Protógenes tem seis imóveis: duas casas no estado do Rio (uma em Niterói e outra em São Gonçalo) e apartamentos em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo (Guarujá) e no Paraná (Foz do Iguaçu).
Quando Amaro Ferreira ordenou as buscas e apreensões, o delegado não estava em nenhum desses imóveis, mas num apartamento de um hotel no centro de São Paulo. Ele havia feito uma palestra para estudantes da Pontifícia Universidade Católica na noite do dia 4, e chegara ao Shelton Inn às duas da madrugada. A busca no local foi feita, como no caso da prisão de Dantas e seus amigos, logo que raiou o dia, como manda o regulamento da PF.
Na gravação em vídeo encontrada com Protógenes, aparecem os dois cinegrafistas da equipe da Globo que fizeram o trabalho, Robinson Cerantula e William Santos. Eles surgem testando a câmera diante de um espelho – com o que se incluíram na fita. Na investigação, o delegado Ferreira ouviu Cerantula e Santos, o repórter César Tralli e o motorista que os conduzia. Tomou também os depoimentos de Vitor Hugo (o delegado que ajudou a montar a cena do suposto suborno) e Amadeu Bellomusto, o escrivão que foi o auxiliar mais próximo de Protógenes durante a Satiagraha. Pelos dados do inquérito, Amadeu Bellomusto recebeu 40 mil reais do delegado Protógenes.
Amadeu Bellomusto, segundo Ferreira, mentiu num primeiro depoimento: disse que foi ele quem fizera a filmagem no restaurante El Tranvía. Afirmou que teria usado uma pequena câmera, um transmissor, um receptor e um MP4. “A verdade só veio à luz com a apreensão das gravações originais e a revelação inconteste de que a filmagem foi realizada por repórteres da Rede Globo”, escreveu Ferreira no relatório.
Isso fez com que Amadeu Bellomusto mudasse de versão. Num segundo depoimento, confessou ter feito contatos com a Globo e reconheceu que acompanhou a realização das filmagens. Também admitiu que editou as imagens gravadas, de modo a suprimir evidências de participação da equipe da Globo, e ajudou a encaminhá-las para a instrução processual.
Amaro Ferreira analisou os extratos das ligações telefônicas efetuadas e recebidas por aparelhos de uso do delegado Protógenes Queiroz. O exame dos grampos dos dias entre o jantar no El Tranvía e a prisão de Daniel Dantas, segundo o delegado, revela “de modo inconteste” os intensos contatos do delegado com jornalistas da Globo. Ferreira contou 74 telefonemas. Diz que Protógenes entrou em contato com César Tralli primeiro às 5h9 do dia 8 de julho, antes de as equipes da PF saírem para as prisões. E continuou falando ao telefone com Tralli praticamente a cada quinze minutos.
O arquivo com a versão integral das imagens feitas pela Globo no El Tranvía está num pen drive de 2 gigabytes. Ele foi apreendido com Protógenes durante a busca no Shelton Inn. A gravação da Globo foi feita a partir das 20h52 do dia 19, e repassada para o pen drive do delegado seis dias depois, dia 25, às 13h11.
Ferreira ressaltou no seu inquérito que a parceria entre a Globo e Protógenes não era nova. Era uma reincidência. Tralli acompanhou o delegado na cobertura de dois outros casos espetaculosos: a prisão do filho de Paulo Maluf e a do árbitro de futebol Edilson Carvalho, que integraria uma “máfia do apito”.
No seu depoimento, o delegado Vitor Hugo afirmou que não tinha nada a ver com as gravações porque Protógenes as providenciara, e somente depois lhe disse que tudo tinha dado certo.
Em dezenas de reportagens posteriores sobre o escândalo de Daniel Dantas, jamais a Rede Globo informou a seus telespectadores que a cena no Tranvía era uma manipulação fraudulenta.
No dia 10 de junho passado, Protógenes Queiroz esteve na sala de audiências da 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo. Acompanhado de seus advogados, compareceu perante o juiz Ali Mazloum. Depois de uma declaração sobre os méritos de sua carreira, negou todas as acusações que lhe foram feitas.
Protógenes disse não saber o motivo de haver registro de dezenas de ligações telefônicas entre os seus aparelhos e o do diretor da Abin, Paulo Lacerda. Ignorava também as centenas de telefonemas entre funcionários da Rede Globo e os usados por ele. Desconhecia as ligações para funcionários ou profissionais a serviço da Brasil Telecom, como o advogado José Roberto Santoro. E alegou o mesmo desconhecimento para as 100 chamadas entre seus telefones e os da empresa Nexxy, de Luiz Roberto Demarco.
Também não teve nada a dizer sobre um trecho do relatório de Amaro Ferreira que reproduz a gravação de uma discussão ocorrida na sede da PF, em São Paulo, cinco dias depois de Daniel Dantas ter ganho dois habeas corpus e ser libertado. Um dos temas da discussão gravada foi justamente o habeas corpus concedido a Dantas pelo presidente do Supremo, Gilmar Mendes.
Nesse debate, um dos assistentes de Protógenes conta que conversou com o delegado e combinaram de solicitar ao juiz De Sanctis um novo pedido de prisão. Esse auxiliar acrescenta que ele próprio, sob comando de Protógenes, redigiu os fundamentos para o novo pedido de prisão. E que fez isso depois de deslacrar os materiais apreendidos com o banqueiro e ter encontrado “alguns documentos que complicavam ele [Dantas]”.
Por fim, Protógenes disse que não sabia explicar o motivo de ter sido encontrado no pen drive apreendido em seu poder um relatório de vigilância relacionado à ex-chefe da Casa Civil da Presidência, Dilma Rousseff.
Depois de diversas reportagens e artigos sobre o escândalo Daniel Dantas, que consumiram muitos e muitos dias de trabalho entre julho de 1998 e julho de 2010, posso resumir as conclusões a que cheguei da seguinte forma.
Houve uma disputa de interesses entre grandes grupos econômicos. De início, entre a Telecom Italia e o Citibank, interessados no controle da Brasil Telecom. A empresa italiana via a importância do mercado brasileiro para o seu futuro. E não tinha conseguido uma posição de comando em qualquer um dos grandes blocos na privatização de 1998.
O Citibank, maior sócio da Brasil Telecom, estava bem colocado. Selecionara Daniel Dantas para gerir os 700 milhões de dólares que estavam num fundo em Cayman. A existência desse fundo se apoiava na legislação feita pelo Banco Central, e não pelo Congresso, para permitir o ingresso legal no Brasil de dinheiro que tivesse saído ilegalmente. A Telecom Italia decidiu que esse seria o alvo.
Que outros poderia escolher? Todos eram mais difíceis. Na Telefónica de Espanha e a Portugal Telecom tinham tomado a Telesp, o filé-mignon, o mais rico e maior mercado da telefonia privatizada. Um outro pedaço ficara sob o controle da Telemar, a sociedade formada por dois grupos brasileiros de grande peso econômico e político, o de Sérgio Andrade (que contribui com as campanhas do PT e é amigo de Lula) e o de Carlos Jereissati (que contribuiu com as campanhas tucanas e é irmão do senador Tasso, dirigente do PSDB). Outra parte importante, a telefonia de longa distância, acabara nas mãos do mexicano Carlos Slim, um dos empresários mais ricos do mundo.
Para desbancar Dantas da Brasil Telecom, a Telecom Italia precisava do apoio dos grandes fundos de pensão das estatais – a Previ (Banco do Brasil), o Funcef (da Caixa Econômica Federal) e a Petros (da Petrobras). Isso porque os fundos eram tanto sócios de Daniel Dantas na Brasil Telecom quanto da Andrade Gutierrez e do grupo de Jereissati na Telemar.
Para entender os interesses dos grandes fundos de pensão das estatais é preciso olhar o quadro mais amplo. Os fundos são participantes de peso no grande arcabouço financeiro que envolve e comanda o Brasil desde o governo Collor. Eles foram formados pelas contribuições de algumas centenas de milhares de trabalhadores. E garantem aposentadorias bem razoáveis, para os padrões da previdência pública brasileira, por meio de dois mecanismos. Primeiro, devido a sua sociedade com o grande capital em inúmeras empresas. E em segundo lugar porque são aplicadores na dívida interna brasileira, que paga os juros reais mais altos do mundo.
Os dirigentes desses fundos aderiram ao projeto da Telecom Italia. Não apenas porque estavam insatisfeitos com a condição de sócios menores desse esquema financeiro. Mas por motivos políticos. A Telecom Italia foi apoiada pelos governos italianos reformistas de Romano Prodi e Massimo D’Alema.
Esses dois políticos tinham identidade com os governos reformistas brasileiros, primeiro com o de Fernando Henrique Cardoso e depois com o de Lula. Prodi e D’Alema apoiaram Fernando Henrique e Lula externamente, e defenderam os interesses da Telecom Italia no Brasil. Desde o governo tucano, os fundos estatais brasileiros apoiaram a Telecom Italia. Não só porque esses fundos são controlados pelo governo. Também porque, no campo sindical, não há muita diferença entre alguns blocos social-democratas de trabalhadores do PSDB de FHC e alguns blocos de trabalhadores social-democratas do PT de Lula.
O ataque ao dono do Opportunity mudou de patamar no governo Lula porque Dantas serviu, à perfeição, para um papel. Parecia um homem de Antonio Carlos Magalhães, um dos símbolos do mal na política brasileira. Era dono de banco e, portanto, um dos responsáveis pela estagnação e as crises dos governos Collor e Fernando Henrique. Atacá-lo, para não mudar nada, nem nas telecomunicações, nem nas finanças, foi uma jogada de mestre.
Quem é Daniel Dantas, que interesses ele representa? Na nossa história ele era o Citi, mas “o Citi não era ele”, como disse certa vez Luiz Roberto Demarco. Quando foi escolhido, em 1998, para dirigir as aplicações do fundo do Citi em Cayman, Dantas era um dos muitos operadores de um sistema financeiro que atravessava um processo de grandes transformações.
No ano seguinte, os Estados Unidos desmantelaram o Glass-Steagall Act, a lei de 1933 que separava os bancos comerciais (de captação de dinheiro dos cidadãos comuns, ou de pequenos e médios empresários, para empréstimos rigidamente controlados pelas autoridades monetárias) dos bancos de investimento (de dinheiro tomado dos homens de negócios, e gente rica do mundo todo, e emprestado para os grandes negócios).
No seu lugar criaram o chamado Gramm-Leach-Bliley Act, a lei da modernização dos serviços financeiros. A nova lei permitiu aos bancos comerciais, caso do Citi, o controle de empresas comerciais, por meio dos fundos de private equity.
Como disse uma diretora do Citi, Mary Lynn Putney, em diversas cartas ao governo brasileiro, Dantas era um gestor de private equity, um homem de dinheiro. Mas não muito. O gestor coloca de seu bolso, em regra, 2% do capital dos fundos dos quais participa.
Daniel Dantas não era uma pessoa, mas uma espécie. É o que afirmava Mrs. Putney. Se o sistema financeiro moderno é o inferno, pode-se dizer que Dantas não é Lúcifer, o pior dos anjos caídos. Era um diabo como os outros. Para promovê-lo à condição de Príncipe das Trevas era preciso uma farsa, que foi a encenada, sob a batuta do governo Lula, pelos grandes interesses aqui descritos e por muitos outros interesses menores.
Como os do delegado Protógenes. A sua Operação Satiagraha foi uma pantomima que o levou ao estrelato. E agora pode conduzi-lo à Câmara dos Deputados. Não com o meu voto. Em matéria de besteira política, já me basta uma, bem grande: em 1960 votei em Jânio Quadros.
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