voyeur
O taxista carioca
Armando Japiassú dirige com o cotovelo para fora, finge que o ar-condicionado quebrou agorinha mesmo e definitivamente não acredita que a reta seja o caminho mais curto entre dois pontos
Marcos Caetano | Edição 52, Janeiro 2011
Meu nome é Armando Japiassú, sou carioca de Rocha Miranda, tenho 52 anos e plena consciência da minha condição de representante de um dos mais temidos estratos da sociedade brasileira: o dos taxistas cariocas. Devo esclarecer que reúno algumas características pessoais que, embora não me excluam do grupo, impedem que eu seja considerado um herói tutelar da classe. A mais visível de todas, como o leitor mais atento já percebeu, é minha capacidade de escrever direitinho. A explicação não chega a causar espanto. Se existem taxistas professores, engenheiros, jornalistas, ex-jogadores de futebol, advogados, policiais e bandidos, por que não haveria de existir um taxista formado em letras? Ao receber o canudo, olhei para a minha tese – “Recortes da sociabilidade urbana na obra de juventude de Cornélio Pena” – e suspeitei que minhas perspectivas profissionais não eram particularmente promissoras. Tenho ótima intuição.
Alguém pode estar imaginando que, por causa da formação acadêmica, eu seja uma espécie de dândi das ruas do Rio. E estará imaginando errado. Ninguém com um pingo de verniz social conseguiria sobreviver seis meses na praça carioca. Eu estou rodando há mais de trinta anos e – tenho orgulho de dizer – sempre com o mesmo carro: um Dodge Polara 1978, que jamais me deixou na mão. Já deixou um ou outro passageiro na mão, é verdade, mas, a mim, nunca. (Não consigo tirar da cabeça aquela senhora sob a qual o banco cedeu, lá pelos idos de 1987. Se não fosse ela agarrar a minha nuca, tinha atravessado o chão e ficado no meio da avenida Brasil. Eu não cobrei a corrida, só o colete ortopédico.) Quando boto o Houaiss (apelido carinhoso do meu Dodginho) para rodar, eu sou mais taxista do que qualquer outro na praça. Posso dizer, estufando o peito, que nesses trinta anos de asfalto jamais pus o cinto de segurança, que fica estrategicamente largado sobre as minhas vergonhas. E só uma vez, ainda assim para evitar uma capotagem feia na Curva do Calombo, encostei a mão esquerda no volante.
O Houaiss é equipado com todos os itens essenciais ao bom exercício da profissão. A alavanca de câmbio tem aquele siri dentro da bolota de plástico. Colado no painel, o passageiro verá o ímã com fotos esmaecidas dos meus dois filhos, na época um casalzinho, Aurélio e Clarice, e a inscrição famosa; “Não corra, papai”, que eu já obedeci pelo menos sete vezes. Dependurado no retrovisor, aquele pinheirinho indefectível, que um dia já foi cheiroso e hoje serve apenas para marcar as datas das trocas de óleo. No para-brisas dianteiro, tenho um escudão do Glorioso. No vidro traseiro, aquela clássica imagem de um torcedor do Fogão sentando numa cadeira de engraxate, enquanto um negrinho torcedor do – com o perdão da má palavra – Flamengo engraxa-lhe as botas. O conjunto é completado por um decalque do Brizola e um plástico anti-Collor, “Nelle não!”. Eu tinha também um adesivo do Sujismundo, com o bordão “Povo desenvolvido é povo limpo”, mas esse eu arranquei porque o passageiro entrava no táxi, olhava em volta e caía na gargalhada. Gosto particularmente do cachorro de pelúcia com cabeça de mola, que, deitadão lá no fundo do carro, vai fazendo meneios de cabeça para os passantes.
E já que falei em mola, tem uma saltada no estofamento do banco traseiro que está perto de despachar o milésimo passageiro para a emergência do Miguel Couto. Como só dois deles contraíram tétano, a média é ótima e prova que venho respeitando as normas da Anvisa. Eu já pensei em consertar, mas a verdade é que a mola fica num lugar estratégico, obrigando as passageiras a entrar na mira do espelhinho que instalei perto da saída do ar-condicionado. Nas minhas contas, a eventual espetadinha é um preço justo a pagar pela visão de certas coxas. Claro que quando falei em ar-condicionado foi por força de expressão. O Dodginho jamais teve refrigeração. Eu comprei uns botões de ar-condicionado de Monza e preguei no painel. Quando alguém pede para ligar, eu digo que o fluido acabou justo na corrida anterior. Passo a alavanca para o sujeito descer o vidro, peço para ele tomar cuidado com a mola e acelero, que é para o vento circular mais.
Aproveito a ocasião para imprecar contra o avanço das paulistices na praça carioca. Não bastasse o ar, o vidro elétrico e a trava elétrica, agora é carro com tevê, com DVD, com GPS… Ora, pelo amor de Deus! Onde é que estamos que o sindicato não faz nada? Como eles esperam que a gente vá ganhar o pão? Caramba, eu passei a vida levando QSAs* do Leblon para Copacabana via Laranjeiras. Uma beleza de corrida! Pois agora vêm uns idiotas e colocam um troço no carro que fica gritando: “Desvio da rota, desvio da rota!” Nunca entendi o escândalo. Na praça, desvio de rota é como ultrapassar pela direita, falar mal de mulher no volante ou trancar cruzamento: só não faz quem não é daqui. Aviso logo: os gringos que quiserem ver a Olimpíada terão que aprender que, comigo, se vai da Zona Sul ao Maracanã pela Região dos Lagos.
Eu não poderia encerrar esse ensaio sem revelar como foi que descobri minha vocação. Todo taxista é, no fundo, um voyeur. Eu, no caso, gosto de ouvir conversa alheia. Como faço ponto no aeroporto do Galeão, e a literatura me deu rudimentos de várias línguas, tenho à minha disposição conversas do mundo inteiro. Aprendi a dar golpe de internet ouvindo dois nigerianos. Descobri que trocar a foto dos filhos pela de três vira-latas esquálidos faz o maior sucesso com americanos – na minha experiência, a caminho de Copacabana, antes mesmo de chegar a Duque de Caxias um deles já estará convencendo o outro a caprichar na gorjeta porque eu tenho alma de são Francisco. Escandinavos são ótimos para aplicar o golpe dos nigerianos, basta que a mensagem de socorro seja assinada por uma ONG com trabalho social em favela.
A verdade é que, fora uma ou outra desilusão menor – como um Zé Ruela que um dia pediu para eu dar uns 3 reais de marcha a ré porque não tinha grana para pagar uma corrida mais tortuosa –, a vida de taxista é boa. Exemplo: a grana tá curta? Liga a bandeira dois. Para o passageiro comum, as normas que regem o uso da bandeira dois são mais misteriosas do que a obra de Derrida (davam na faculdade…). Se o QSA desconfiar, invente: “Decreto 6781, dia do taxista.” Ou: “Emenda Garotinho: os termômetros estão acima de 40º.” Ou ainda: “Lei Municipal das Vias Carroçáveis à Beira-Mar. Se o senhor não estiver com muita pressa, posso sair da Atlântica e pegar a Nossa Senhora de Copacabana.”
Em tempo: como escrevi estas mal traçadas entre 13h e 14h30 nas imediações do Maracanã, aviso aos editores que cobrarei pelo texto em bandeira dois.
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