21 de abril de 1960, rumo à Praça dos Três Poderes. Na inauguração de Brasília, os caminhos empoeirados servem tanto às caravanas de candangos como a autoridades de fraque e cartola FOTO: ACERVO PESSOAL_MARCOS DE AZAMBUJA
Videla é a mãe
A inauguração de Brasília e a missão brasileira na ONU: às vezes, a clareza e a brevidade são absolutamente necessárias
Marcos de Azambuja | Edição 55, Abril 2011
“O quarto não está mal. Mas ainda estão a construí-lo.” Era abril de 1960. Tinha acabado de deixar um eminente membro da delegação portuguesa no apartamento que lhe havia sido reservado para a inauguração de Brasília. Não era uma queixa, apenas a expressão resignada e bem-humorada de quem acabava de entrar de uma longa viagem, com sua bagagem, num quarto onde operários ainda ultimavam as instalações. O comentário ilustra a essência do que foram aqueles dias de corrida contra o relógio.
Foi, sem dúvida, um delírio. Várias dúzias de jovens vindas do Rio de Janeiro ensaiavam um grande espetáculo, no qual dança, canto e música se misturavam, exaltando as capitais que o Brasil teve ao longo de sua história, culminando com Brasília. O texto, acredito, era de Josué Montello; a música, de Villa-Lobos; e a montagem de Chianca de Garcia – uma trinca nunca ou depois reunida em um mesmo projeto, e que utilizava como palco as rampas e as plataformas dos edifícios do Congresso Nacional.
Uma missa campal era ao mesmo tempo montada, ao lado, na grande Praça dos Três Poderes. Holofotes (“refletores”, diziam os militares) cruzavam o céu como na preparação de um ataque aéreo que não vinha. A Esquadrilha da Fumaça fazia evoluções. O Palácio do Planalto se preparava para sediar um grande baile de gala para o qual, todavia e simplesmente, não estava preparado. Autoridades em fraque (durante o dia) e casaca (durante a noite) se moviam entre multidões de candangos (a palavra mesma parecia ter sido inventada naqueles dias) que comemoravam sua participação na grande obra. Caravanas chegavam, empoeiradas, de todos os quadrantes. O final de um grande filme de Fellini não teria coroação tão múltipla e vibrante.
À medida que o dia 21 de abril se aproximava, fui sendo degradado de hotel para hotel, cada um mais modesto do que o anterior, para dar espaço aos convidados importantes que chegavam de dentro e de fora do Brasil. Acabei em um barracão na chamada Cidade Livre, que tinha também o nome burocraticamente mais respeitável de Núcleo Bandeirante. Pude, nas vésperas da inauguração, dizer pela primeira e última vez uma frase verdadeiramente papal. Ao convidar, por ordem do presidente Juscelino Kubitschek, os cardeais reunidos para comer alguma coisa, respirei fundo e conclamei: “Vamos almoçar, Eminências?” Fui atendido.
A surpresa maior estava em que o programa se cumpria, em linhas gerais, como previsto, e a atmosfera era a de uma grande festa. Todos pareciam prestar atenção em tudo por suspeitar (como faço agora) que aqueles dias seriam a matéria-prima de memórias e, com o tempo, ganhariam contornos cada vez mais prestigiosos.
Uma de minhas missões era treinar, em vários percursos, uma escolta de motociclistas que havia acabado de chegar de Belo Horizonte. Nunca haviam estado em Brasília os audazes pilotos. Acabei perdendo-os de vista dentro de uma nuvem de poeira vermelha que então envolvia qualquer movimento pelos caminhos ainda não asfaltados do Planalto Central. Não vi mais a escolta antes ou durante os festejos. Nem soube dela depois. Sumiu para todo o sempre.
Um grande diplomata sueco, Jan Mårtenson, que começou sua vida profissional por esses idos no Brasil, disse-me décadas depois que a expressão brasileira da qual mais sentia falta era a palavra “sumiu”. Quando dava por falta de alguma coisa em sua casa, nos seus tempos cariocas, a explicação da empregada era sempre a mesma: “Sumiu.”
Mårtenson dizia que a palavra explica o inexplicável, encerra o assunto e não o leva a nenhuma consequência policial ou administrativa. Estava nas coisas a faculdade de sumir e, aceita essa premissa, não se falava mais no assunto. As coisas tinham também a faculdade de reaparecer mais tarde, sem maiores explicações. Sumiu. Apareceu.
Com traje de gala, na noite do baile, subi na boleia de um carro-pipa de uma das empreiteiras engajadas na obra e trouxe água para fazer funcionar os banheiros do Palácio do Planalto. Foi comigo nessa expedição Marcio Moreira Alves, que acompanhava o pandemônio como jornalista.
Poucos meses depois, já num posto em Nova York (que tinha a designação augusta de “Assessor da Missão Permanente do Brasil junto à Organização das Nações Unidas”) aquela aventura no pó do cerrado parecia implausível. Os Estados Unidos viviam um momento extraordinário. A então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas havia abalado (um pouco, não muito) a autoconfiança norte-americana com o lançamento ao espaço da cadela Laika e do satélite Sputnik. E os fiascos ianques em Cuba e no Vietnã, que estavam próximos, mas ainda por vir, agravariam um pouco mais a crise de autoestima.
Ainda assim, o país emanava otimismo. Jack e Jackie Kennedy eram a encarnação mesma do sonho americano. Tudo parecia possível. Washington procurava atingir uma dimensão mitológica, à medida que o novo governo parecia disposto a recriar a lenda e o espírito de Camelot, o reino encantado da Távola Redonda que, na forma de um musical, era representado na Broadway por Julie Andrews e Richard Burton. Os anos dourados se prolongavam assim nos Estados Unidos, onde uma grande (mas frágil, como se viu depois) primavera parecia estar em marcha.
Tenho de 1960 as mais persistentes recordações. Os impérios francês e inglês se desfaziam, novos países asiáticos e africanos acediam aos punhados a uma sonhada independência e, para cada um deles, o símbolo mais eloquente do novo status era a admissão na ONU. Ser moço é sempre bom. Estar em Nova York também é quase sempre bom. Ser jovem e estar em Nova York, em 1960, era meramente o melhor dos mundos.
A nossa missão junto à ONU ocupava todo um andar de um prédio na Park Avenue, entre as ruas 54 e 55, endereço então, como ainda agora, de grande prestígio. Por ser o mais moço – eu tinha 25 anos –, devia cuidar da copa e da cozinha da delegação. Em vez das grandes negociações internacionais que havia antecipado, e nas quais me via brilhando como protagonista, meu primeiro desafio foi falar com o administrador do prédio. Ele veio nos ver acompanhado de um engenheiro especializado e com uma grave suspeita. A bateria de elevadores do prédio, numerosos e de última linha, entrara em colapso. Ou bem estavam todos em um determinado andar, ou todos iam juntos subindo ou descendo. Havia se desfeito um sofisticado programa que deveria permitir que subissem ou descessem alternadamente, capazes de dar rápido atendimento, e não ficassem, como acontecia então, retidos em um só andar.
O administrador confessou-me terem feito algumas investigações. E descobriram que éramos nós, brasileiros, a causa de todo o transtorno. Haviam previsto a parada de cada elevador por um número preciso de segundos. Mas no nosso andar a pausa era imprevisível, e muito mais longa. Por causa de uma mistura de gentilezas e respeito a precedências; por esperar algum retardatário para quem mantínhamos a porta aberta; por uma mensagem de última hora que não podia deixar de ser dada; para ajudar alguém a entrar num sobretudo, tínhamos desorganizado todo o sistema.
Diante desse verdadeiro choque de civilizações, pediam-me, o administrador e o engenheiro, que os ajudasse a resolver o imbróglio. Prometi que faria alguma coisa, mas, naturalmente, não mudamos nossos hábitos nem encurtamos as nossas gentilezas. Acredito que os americanos, com sua tecnologia, devam ter encontrado uma nova programação, que ajudou a superar o problema. Ficou-me a constatação, reforçada tantas vezes depois ao longo da vida (em elevadores, no final de almoços, jantares e festas), de que a nossa liturgia de partidas tem um ritmo que não pode ser abreviado. E que, se os franceses saem sem se despedir, os brasileiros se despedem sem sair.
O prédio da ONU era ainda um dos mais modernos de Manhattan. E a Organização guardava ainda, apesar do engessamento da Guerra Fria, muitas das esperanças que cercaram sua criação. No outono, havia a Assembleia Geral, à qual, como hoje, acorriam líderes mundiais em penca, que iam dar seu recado e dizer como viam o estado do mundo. Em 1960, houve um extraordinário comparecimento de novos e velhos timoneiros, vários dos quais fundadores das nações que ali representavam. Lá estavam Nehru, Nkrumah, Sukarno, Fidel, Kruschev, Nasser, Tito, Touré e tantos outros representantes de novos países que se faziam ouvir pela primeira vez.
Dag Hammarskjöld, hoje nome quase mítico, era o secretário-geral da ONU, e a URSS queria diluir sua influência pela criação de um triunvirato, ao qual deram o nome de uma equipagem russa de três cavalos, cuja designação pegou: seria a troika, fórmula que, se adotada, levaria a ONU a não ter mais um comando unificado e eficaz. A ideia, felizmente, não prosperou. Hammarskjöld morreu meses depois, em um acidente aéreo na África, onde havia ido tratar de um problema residual do colonialismo – a luta pelo controle da província mineral de Catanga, parte de um Congo onde emergiria Patrice Lumumba, um novo modelo de herói da descolonização.
Se, de fato, todo o mundo é um palco, aquela grande assembleia feita de som e de fúria foi um espetáculo montado às margens do East River, transformado em el gran teatro del mundo, como na invenção de Calderón de la Barca. Dois momentos ficaram para mim indeléveis. Kruschev tirando os sapatos e batendo com eles na sua bancada para interromper um orador que o havia desagradado. E Fidel Castro abrindo sua fala com a declaração “Senhor presidente, procurarei ser breve” e começando, com essas palavras trapaceiras, o mais longo discurso que as Nações Unidas haviam até então escutado. As coisas estavam mudando. Depressa.
Não tínhamos, nós os brasileiros, como competir com nada disso. Era nosso privilégio sermos o primeiro orador no debate geral. Direito que se faz tradicional desde os tempos em que Oswaldo Aranha presidiu a primeira sessão. Os Estados Unidos falavam logo depois. Não havia, entretanto, muito a dizer, e éramos ouvidos com polido desinteresse.
Às vezes, o New York Times registrava em uma frase algum ponto da nossa fala. Nem sempre. Era meu dever levar à sala de imprensa da ONU numerosas cópias do nosso texto e deixá-las lá na ilusória esperança de que uma ávida imprensa mundial viria buscá-las e divulgá-las pelo planeta afora. Dias depois, voltava à sala; e lá continuavam empilhadas e intocadas as palavras que haviam sido produzidas com tanto cuidado e madura reflexão. Não tínhamos poder bastante para impressionar; não estávamos envolvidos em nenhuma crise que interessasse ao mundo; nossos agentes não eram nem coloridos nem pitorescos. Fazíamos parte de um coro bem-comportado e isso era naquele tempo o limite da nossa presença.
Os restaurantes em Nova York eram, com poucas exceções, bares cercados por mesas. Na cidade da invenção e consumo de cocktails tomar um ou dois (ou mesmo três) martínis antes do almoço era natural. Fumar não era proibido em lugar algum. E era uma atividade quase obrigatória. O cigarro desse tempo ocupava o lugar que o leque havia assegurado gerações antes. Para acender o cigarro de uma mulher bonita, dois ou três isqueiros saltavam de bolsos masculinos com a velocidade e a determinação de revólveres no Velho Oeste. É impossível imaginar hoje uma canção tão ecologicamente incorreta quanto Smoke Gets in Your Eyes.
Não seria um paradoxo dizer que foi a partir de Nova York que comecei a ver – e quem sabe entender – melhor o Brasil como um todo. A minha experiência até então havia sido essencialmente municipal. Eu via o Brasil através das lentes da minha carioquice e da minha circunstância. Em termos de padrões de comportamento, estilos de vida, de maneiras de falar e vestir, o Brasil era bem menos homogêneo do que é hoje. No exterior, os brasileiros ainda se cumprimentavam ao se encontrar – éramos poucos, e ouvir alguém falar a nossa língua era razão de prazer e surpresa.
O que fazia a nossa missão junto às Nações Unidas diferente dos outros postos do Itamaraty era o fato de que, durante três meses a cada ano, ela se transformava em um microcosmo do Congresso brasileiro (e, portanto, do Brasil): contava com a presença de um número expressivo de observadores parlamentares, vários dos quais já eram líderes de nossa política e outros que, mais tarde, viriam a sê-lo. Nesse âmbito, fiz amizades que me ficaram para a vida.
Perdeu-se em parte, com o passar dos anos, o nosso forte colorido regionalista. Os homens eram mais típicos das regiões que representavam. Benedito Valadares, Magalhães Pinto e Tancredo Neves eram arquétipos mineiros. Pela palavra, pelo gesto, pela confirmação mesma do espírito, pela maneira de ser, enfim, Daniel Krieger e Flores da Cunha eram gaúchos por todos os costados. Vitorino Freire parecia saído diretamente do sertão nordestino. Carlos Lacerda era inevitavelmente carioca e fluminense. Adhemar de Barros, quase caricaturalmente paulista.
José Sarney e Mário de Souza Martins, no entanto, foram precursores do Brasil mais homogêneo que estava por chegar, embora ainda guardassem traços de fidelidade às suas terras de origem. Assistimos os três juntos, com Antônio Houaiss, ao debate televisionado entre John Kennedy e Richard Nixon que inaugurou toda uma era de intenso emprego mediático das novas tecnologias no jogo político americano. Prática que, depois, se irradiou pelo mundo afora. Por ser católico e de origem irlandesa – e não um anglo-saxão de confissão protestante – a eleição de Kennedy representou uma ruptura só excedida, décadas depois, pela eleição de Obama.
Quero resgatar duas lembranças mineiras: Benedito Valadares e Magalhães Pinto. Começo por Benedito Valadares, que disfarçava uma aguda e sutil inteligência ao procurar se mostrar um homem simplório, evasivo e de fala mansa. Aprendi muito com ele, embora não tenha podido – por limites da minha personalidade – pôr em prática quase nada do que havia aprendido. Benedito Valadares fingia não ouvir bem e, talvez, no fim da vida isso até fosse verdade. Não era assim quando o conheci: ouvia até murmúrios quando o assunto lhe convinha e interessava. Não ouvia o que lhe aborrecia ou podia comprometer. Era um homem de poucas palavras, ditas mansamente e com muitas pausas. Uma vez, anos depois desses encontros iniciais em Nova York fui buscá-lo em casa para irmos juntos a um jantar no Itamaraty. Estava de casaca e trazia as insígnias da Grã-Cruz da Ordem do Mérito Militar, idem Naval, idem ibidem a da Aeronáutica e a comenda da Ordem de São Gregório Magno, do Vaticano. Disse a ele do meu assombro por vê-lo totalmente apoiado, ao mesmo tempo, por César e por Deus, e que mais e melhor não se podia fazer. Olhou-me com uma expressão de alguma surpresa e um pouco da desconfiança que era muito sua. Disse-me apenas: “Ah. Não havia reparado.”
Teria dele mais episódios, mas este serve para desenhá-lo. De Magalhães Pinto, com quem ele compartilhava algumas afinidades de temperamento e a mesma genealogia política, apesar de adversários políticos, também aprendi bastante. Uma vez, no Catete, estivéramos com o presidente Costa e Silva, de quem ouvimos algumas observações. Ao chegar de volta ao Itamaraty, repeti o que tinha ouvido do presidente. Magalhães Pinto, muito cuidadosamente, me corrigiu: “Não foi exatamente isso o que o presidente disse.” E acrescentou: “Eu presto muita atenção no que o presidente diz.” A lição era clara. Mais do que procurar parafrasear o presidente – como eu, afoito, havia feito –, é prudente registrar palavra por palavra o seu pensamento. Por alguma razão, Minas existe.
Outra lição aprendi quando o acompanhei, em Nova York, em entrevistas com líderes que desejavam manter contato conosco. Uma vez, com os israelenses (não me lembro se o interlocutor era Moshe Dayan ou Abba Eban), Magalhães Pinto ouviu sem interrupção por quase meia hora. Pediu-me então que falasse apenas o seguinte: “Diga a ele que o Brasil é a favor da paz.” Só isso. Sabia que qualquer palavra ou conceito adicional poderia envolvê-lo em dificuldades com interlocutores com agendas muito precisas, e que sabiam infinitamente mais que nós sobre o que acontecia em seus próprios quintais.
Eram mestres, cada um a sua maneira, na arte do understatement, coisa valiosa em política, seja ela nacional ou internacional, e sabiam usar sua mineiridade ou mineirice – vale a pena distinguir as sutilezas de sentido entre essas duas palavras – para camuflar intenções e projetos. Daniel Krieger, Carlos Lacerda e Vitorino Freire, por exemplo, não sabiam manejar esse tipo de jogo que requer, além de grande astúcia, temperamento apropriado.
Eu tinha, como tenho até hoje, gosto pela diplomacia parlamentar. Como no Brasil era ator menor e atuava em picadeiro marginal – como continua a ser a América do Sul –, o nosso acesso aos grandes temas tinha que se fazer por meio dos instrumentos e foros que oferecem o multilateralismo. Era a maneira que então tínhamos – e em parte ainda continuamos a ter – de participar dos grandes temas e debates do nosso tempo.
Os temas mudam, e sua hierarquia também. Naqueles tempos, desarmamento, descolonização e desenvolvimento estavam no alto da agenda. E o chanceler Araújo Castro, sagaz, reuniu-os em uma aliteração, “os três D” que deviam nos ocupar e preocupar. De meio ambiente não se falava; a proteção dos direitos humanos era uma questão virtualmente insuscetível de tratamento internacional, já que a definição então aceita dos limites das soberanias nacionais fazia com que o tema fosse da alçada doméstica. A sua consideração pela comunidade internacional era vista como intromissão potencial na esfera do que cabia exclusivamente a cada Estado nacional.
O D de desarmamento estava ligado ao inverno nuclear, que fatalmente se seguiria a um conflito com armas atômicas. Temia-se um traumático esfriamento do mundo, produto do levantamento de uma poeira ainda maior que a vista na inauguração de Brasília, e que cobriria o sol por período indefinido. Hoje perdemos o sono com o aquecimento global.
O medo da explosão demográfica (pululavam neomalthusianos de várias dimensões) era muito maior do que o do esgotamento dos recursos minerais não renováveis. A palavra “terrorismo”, retirada a sua dimensão nuclear, não fazia sentido. Quando pela primeira vez ouvi a palavra “ecologia” – e isso aconteceu quase no fim da década de 60 –, não tinha ideia do que aquilo pudesse significar.
Se me falassem então de um mundo sem a União Soviética; que a China seria uma imensa potência industrial e comercial, vivendo em simbiose com os Estados Unidos; que um grupo de potências emergentes (entre elas, o Brasil) começaria a encontrar seu espaço; teria considerado tudo isso um desatino.
Já pensei em escrever um livro sobre tudo aquilo que, sendo previsto, não ocorreu na minha vida. E um segundo volume sobre tudo que era imprevisto e que de fato aconteceu. Gosto de pensar que Mark Twain tinha razão quando disse, já na velhice, que ao longo da vida tinha visto um grande número de problemas – a maioria dos quais nunca aconteceu.
Nas nossas reuniões semanais internas de avaliação do que acontecia na Assembleia Geral, os temas eram distribuídos seguindo os temários das grandes comissões e do plenário. O chanceler do dia, quando estava em Nova York, presidia a reunião. Era um luxo termos Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Araújo Castro conduzindo as reuniões, que se faziam em boa ordem e brevidade. Isto até que chegasse a hora de ouvir Gilberto Amado, nosso decano, decano da Sexta Comissão (a que tratava de assuntos jurídicos) e, sem sombra de dúvida, meu maître à penser.
Nossa relação começou tempestuosa e, com o tempo, não melhorou. Quando me apresentei, ele me disse que minha indicação para assessorá-lo mostrava como havia diminuído o seu prestígio. Em anos anteriores, havia sido assessorado por Roberto Campos, por José Sette Câmara, por Ramiro Saraiva Guerreiro e… agora por mim. Não era um começo auspicioso, o que não impediu que eu logo me desse conta do vigor, da extensão e da originalidade de seu espírito. Aceitava minha admiração com completa naturalidade. Achava até pouco. Dizia mesmo que tínhamos um importante ponto em comum… uma imensa admiração por ele.
Gilberto Amado queria mais do que um assessor, no sentido habitual da expressão. Queria alguém que lhe prestasse serviços de toda sorte. Para me massagear o ego, e para me induzir a aceitar tarefas pouquíssimo prestigiosas, identificou em mim talentos especiais: para encontrar táxis, e cruzar ruas dando a ele apoio e segurança. Demoliu em mim convicções que eu carregava desde sempre sem reexame e sem uma reflexão maior. Falava mal do Brasil com graça e precisão, mas era dele mesmo a frase de que se considerava um detrator público e um adorador privado do Brasil. Dizia também, de maneira igualmente memorável: “Eu não gosto de quem não gosta do Brasil.”
De seu repertório de maneiras de pensar e dizer podia-se fazer um livro. Explicava sua irascibilidade – e seus maus modos – por uma disfunção hipoglicêmica. Talvez essa explicação, em parte, tivesse fundamento, mas me parece que o motivo central era sua incompatibilidade com os tolos e a tolice, além de várias implicâncias e fobias que hoje, quase com a idade que ele tinha então, descubro que em boa parte herdei.
Detestava os perfumes fortes, a fumaça dos cigarros, os apertos de mão e a proximidade de pessoas resfriadas. Sabia-se feio – há uma página sua, memorável, sobre a primeira vez que se viu, já adulto, de corpo inteiro no espelho de um hotel em Recife – e tinha, por uma conformação defeituosa no maxilar, o hábito de comer fazendo que seu interlocutor assistisse, sem remédio, o processo de mastigação. Há um diálogo seu sobre esse tema com Oswaldo Aranha, que, almoçando com ele, em um determinado momento não se conteve e disse: “Gilberto, por que você não fecha a boca quando come?” Gilberto fulminou: “Oswaldo, por que você não fecha a boca sempre?”
Seus livros de memórias são extraordinários e seus ensaios, lúcidos. Sua poesia, no entanto, com uma ou outra exceção, sofre dos maneirismos da época em que foi escrita. Há contudo um poema, “Minha Vida”, que releio com prazer: ele mostra como seu espírito agitado e inquieto queria pausa e norma.
Quando se impacientava comigo, literalmente me ameaçava de morte; e dizia (o que era verdade) que havia matado um homem quando estava em sua plena maturidade e tinha muito a perder. Agora, acrescentava ele, na sua velhice, acabar comigo seria coisa que lhe pesaria pouco na consciência. Não cumpriu a ameaça, mas ela pairava sobre nós. E voltava a ser feita quando alguma palavra desastrada ou desatenção minha o exasperava de forma especial. Nunca acreditei plenamente que levaria a cabo essa intenção. Também nunca fiquei absolutamente tranquilo de que não pudesse acontecer.
Além dos deputados e senadores, nossos companheiros sazonais, havia o núcleo duro dos que estávamos ancorados em Nova York. Faço, mais uma vez, sua chamada: Cyro de Freitas-Valle era o chefe; Mário Gibson Barboza, o seu principal escudeiro; atrás vinham Geraldo de Carvalho Silos, Pedro Braga, Antônio Houaiss, Sergio Paulo Rouanet, Paulo Pires do Rio, Zoza de Médicis e o escriba dessas recordações. Era um bom time, tenho orgulho de ter sido parte dele.
Como acontece com toda missão diplomática, negociávamos para fora e para dentro. Muitas vezes o diálogo com a nossa matriz, na rua Larga, era mais complicado do que a negociação com os interlocutores externos. Era difícil, às vezes, fazer ver ao Itamaraty coisas que para nós, em nossa perspectiva, pareciam evidentes e, a rigor, sequer dignas de discussão. As dificuldades – e elas são intrínsecas ao exercício diplomático – iam das construções mais complexas às evidências mais claras e simples.
É um truísmo dizer que a diplomacia é uma arte e um ofício que requer flexibilidade e capacidade de ver e entender o outro, mesmo se no fim for preciso rejeitar em parte ou no todo os seus argumentos. Como dizia Charlie Chan, aquele falso detetive chinês de tantos filmes ruins dos anos 40 ou 50: “O espírito é como um paraquedas. Só funciona se estiver aberto.” Mas há ocasiões – e não são infrequentes – em que o que importa é a firmeza e a clareza dos gestos e das intenções. Em última análise, não é bom deixar o outro lado no escuro e sem saber o que podemos e o que não podemos aceitar.
Cyro de Freitas-Valle era nosso embaixador no Chile, e preparava-se a visita do presidente Gabriel González Videla ao Brasil. O Itamaraty só se referia a ele, em várias comunicações, como o presidente Videla. Cyro recordou que no Chile, como nos demais países de língua espanhola, a sequência dos sobrenomes era o oposto da nossa. Assim, o sobrenome paterno vinha em primeiro lugar, e o materno depois. Apesar disso, o Itamaraty insistia em só falar da visita do presidente Videla. Cyro novamente corrigiu. Quando isso não surtiu efeito, enviou uma mensagem final que, por sua clareza e brevidade, me parece ainda absolutamente exemplar: “Videla é a mãe.”
Estou falando, talvez, bem demais dos mortos. É uma das poucas compensações, e talvez a única vantagem, que eles podem ter sobre os vivos. Lembro que Pedro Nava contava que uma vez foi ao Cemitério de São João Batista. Atrasado, pediu a um funcionário da Santa Casa que o acompanhasse até o ponto, relativamente distante, em que o sepultamento estava sendo feito. Ao caminhar, ia lendo as lápides eloquentes no elogio dos que ali estavam enterrados: só havia bravos soldados, marinheiros resolutos, magistrados impolutos, esposas amantíssimas, mães extremosas, médicos incansáveis, professores desprendidos. Maravilhado diante de tanta e tão unânime virtude, perguntou ao coveiro: “Onde é que vocês enterram gente que não presta neste cemitério?”
Já em 1961, as coisas aqui no Brasil e lá, nos Estados Unidos, começaram a andar menos bem. Chegavam as contas da Novacap e um longo ciclo de inflação se instalava entre nós. Em Nova York, a malograda e malsinada invasão de Cuba fez Kennedy parecer inepto e, em alguma medida, ingênuo. Os Estados Unidos ampliavam sua presença – ruim desde o início e mais tarde desastrosa – no Vietnã. Os problemas de direitos civis vinham cada vez mais à tona e a resistência racista do sul se fazia mais violenta e estridente. Com a crise dos mísseis em Cuba, chegamos mais perto do que jamais estivemos de uma guerra nuclear.
Isto tudo iria culminar em uma saison de assassinatos em que morreram os dois Kennedy e Martin Luther King. Para nós, o desenlace do ciclo seria a interrupção da vida democrática, em abril de 1964, inaugurando um difícil percurso de quase vinte anos.
Em 1960 eu não via o caminho adiante, como não vejo hoje um palmo na frente do meu nariz. Não sabia ainda que “a função do futuro”, como disse Alfred North Whitehead, “é ser perigoso”. Perigoso ele continuará a ser. Divertido e surpreendente será também. E o meu único problema com ele é que, para mim, vai ficando curto.
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