Nossa velha conhecida, a retórica nos recebia em Havana. Em um mural, no qual um guapo cubano desafiava um Tio Sam decrépito e medroso, a veemência revolucionária era temperada pelo formalismo e pela cortesia da expressão Señores Imperialistas FOTO: ÁLVARO LEIVA_KEYSTONE
A encrenca
A renúncia de Jânio, o peso do Vietnã e de Cuba na vida brasileira, a Guerra Fria e o golpe militar – os riscos da política externa nos anos 60
Marcos de Azambuja | Edição 58, Julho 2011
Havana tinha, e suponho que continue a ter, um cheiro parecido com o do Rio de Janeiro. Falo do tempo em que a gente descia dos aviões por uma escada precária e caminhava até o terminal com a sensação, sempre agradável, de estar de novo em terra firme. Como a turbulência era a companheira natural das viagens de avião, pousar devolvia ao passageiro a perdida sensação de segurança. Os aeroportos nas duas cidades ficavam perto do mar e, ao cair da tarde, de olhos fechados e respirando a maresia tropical, eu não saberia dizer em que cidade estava.
Chegando da Cidade do México, de perfume e de alma tão diferentes, pousar em Havana era um pouco como voltar para casa. A retórica, tão nossa conhecida, já nos recebia com grandes letras assim que pisávamos em terra, anunciando que havíamos chegado ao Aeropuerto José Marti – Territorio Libre de America. A eloquência prosseguia em uma das ruas da cidade, num mural colorido no qual um guapo cubano anunciava a um Tio Sam medroso e caquético: Señores Imperialistas: no les tenemos absolutamente ningun miedo. Note-se que a veemência do desafio revolucionário era temperada pelo formalismo e pela cortesia da expressão Señores Imperialistas. A última vez que estive em Cuba o mural continuava lá.
Não estou certo se o que vou contar aconteceu em 1963 ou começos de 1964. Foi no tempo em que ainda mantínhamos relações diplomáticas plenas com o regime de Fidel Castro. Cuidávamos não apenas dos asilados refugiados na nossa embaixada, como de um número bem maior que se havia protegido em representações de países de relações diplomáticas cortadas com o regime cubano, e de cujos interesses tínhamos passado a cuidar.
Vasco Leitão da Cunha e Luís Bastián Pinto foram os nossos embaixadores nesses dias. E depois, como encarregado de negócios, ficou Carlos Jacintho de Barros, homem de bom gosto, de boa paz e incôngrua presença naquela fogueira revolucionária acesa por Fidel Castro.
Eram centenas os asilados e refugiados. Nas viagens que me traziam do México, onde os ventos da profissão me haviam ancorado, trazia comigo imensa bagagem de remédios, alimentos e outras encomendas para suprir as dificuldades que já afligiam o abastecimento em Cuba.
Tínhamos em Havana uma esplêndida chancelaria (na Avenida de los Presidentes) e uma não menos sedutora residência (em endereço do qual não me recordo mais). Perto de vinte anos depois, voltamos a ter relações diplomáticas com Cuba, e o governo de Fidel nos ofereceu a antiga chancelaria. Ela guardava, ainda que bem deteriorada, vestígios de seu antigo esplendor. Depois que a deixamos, ela foi, entre outras coisas, um hospital psiquiátrico – empreendimento talvez mais agitado, mas não tão diferente assim do cotidiano diplomático. Por boas razões, não a quisemos mais: a sua suntuosidade, apesar da degradação, não se coadunava mais com os novos tempos, não só dos cubanos como nossos.
Numa noite de Havana, reparei nos anúncios luminosos que continuavam a alegrar a noite caribenha. Ocorrera, contudo, mudança significativa. O nome dos produtos anunciados desaparecera. Além de não serem mais vendidos na ilha, eram também emblemas do detestado imperialismo ianque. Assim, um Aféitese todos los días não era mais acompanhado pelo nome “Gillette”. Beba la alegría de vivir não precedia “Coca-Cola”. Los mejores coches não anunciavam, como antes, carros da General Motors.
Os dizeres e as marcas de cada anúncio não seriam exatamente esses. Mas era bem assim o mecanismo de esvaziamento do significado, para que o significante vibrasse sozinho. O que antes era publicidade comercial havia passado a servir apenas como suporte para painéis luminosos que, ao evocar a tradição de vida noturna exuberante, supostamente ajudavam a manter alto o moral da cidade. E, ironicamente, serviam como plataforma para exortações inúteis, como a do uso de lâminas de barbear naquela cidade de tantas e tão engajadas barbas.
Lembro-me dos shows no Tropicana. A música, como sempre em Cuba, era da melhor qualidade. Já os figurinos, cerzidos e remendados, assim como os cenários precários, mostravam que o desabastecimento havia atingido até o espetáculo mais alegórico da vida noturna. O antes aristocrático Havana Country Club havia sobrevivido, mas reencarnado como um improvável centro artístico cujo nome homenageava Patrice Lumumba. Entendo que voltou hoje a ser o que havia sido em sua origem.
Desse período de frequente ponte aérea entre a Cidade do México e Havana, eu não teria senão boas recordações, para as quais muito contribuíram a Coppelia e seus sorvetes, entre os quais os de morango e chocolate (que deram título a um ótimo filme), e os mojitos de La Bodeguita del Medio, não fosse a encrenca que tudo isso me valeu.
Anos depois, fui indicado para minha primeira chefia no Itamaraty – a da Divisão das Nações Unidas. Fiquei dias e dias sem resposta, até que o nosso chanceler, Azeredo da Silveira, me chamou para dizer que o Serviço Nacional de Informações, o SNI, havia vetado o meu nome. A comunidade militar de espionagem informava que eu, em diversas ocasiões, havia sido treinado em campos de guerrilheiros em Cuba.
Silveira – que havia sido meu embaixador em Buenos Aires, e que também tinha tido problemas com o sistema de inteligência – e eu ficamos perplexos. A suspeita nos parecia um disparate. Durante uma espera, que me pareceu longuíssima, fiquei pendurado, sem atinar o que se passara. Aí as coisas se esclareceram.
Duas companhias faziam a ligação regular entre México e Havana, a Cubana de Aviación e uma empresa aérea mexicana. E os serviços de inteligência lhes compravam, com pequeno gasto, as listas de passageiros desses voos. Nelas, eu aparecia com frequência, em missões entre diplomáticas e humanitárias que os tempos reclamavam. Imagino que, em vários desses voos, viajavam pessoas que, de fato, iam fazer treinamento em Cuba. Sem maiores cerimônias, fui colocado no mesmo saco.
Não é à toa que começo este artigo sobre a diplomacia na década de 60 com recordações de Cuba. É difícil, para um jovem de hoje, imaginar o papel que Cuba e o Vietnã representaram no imaginário brasileiro naqueles anos.
A União Soviética e os Estados Unidos estavam paralisados pela capacidade nuclear dissuasória do adversário. Com base na certeza de que o antagonista seria capaz de destruir o seu potencial militar e industrial, e provavelmente a sua própria existência, as duas superpotências continuavam a ampliar seus arsenais de mísseis, submarinos e ogivas nucleares.
A escalada desatinada da corrida armamentista nuclear foi retratada num dos grandes filmes de qualquer época: Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick. Mas, para além da arte, também há siglas que não só identificam entidades, mas, em certos casos, revelam a insanidade de uma situação histórica. Tanto que, para designar a aniquilação recíproca das superpotências, criou-se então o acrônimo MAD, que correspondia às iniciais em inglês das palavras mutual assured destruction. Captura, à perfeição, a loucura subjacente.
No plano geopolítico, União Soviética e Estados Unidos transferiam a rivalidade nuclear para lugares com algum valor estratégico, onde podiam obter dividendos sem o risco de um enfrentamento atômico. Com isso, Cuba e Vietnã viraram símbolos daquilo que estava em jogo, e das apostas que as superpotências faziam para frustrar as ambições hegemônicas do adversário.
Ocorre que nem Cuba nem o Vietnã tinham um relacionamento bilateral significativo conosco, ou eram parte de nosso horizonte geográfico, cultural ou comercial. Não tínhamos fronteiras em comum com eles. Apenas um punhado de brasileiros teria visitado, em algum momento, a Indochina. E algumas centenas, no máximo uns poucos milhares de brasileiros teriam ido a Havana e seus cassinos. Mas o valor simbólico do que acontecia naqueles dois países fez com que se tornassem temas do nosso cotidiano, objetos de discussões extensas e iracundas. Em certos círculos, o Vietnã importava mais que o Sergipe, Cuba valia mais que o Maranhão.
Anos depois, e antes mesmo do fim do ciclo dos governos militares, foi eliminada de nossos passaportes a cláusula que especificava que aquele documento de viagem não era válido para Cuba. Havana passou a ser um destino quase obrigatório dos brasileiros desejosos de prestar homenagem ao país que, por tantos anos, haviam identificado como modelo, refúgio e aliado. Depois, como quase sempre acontece, o tempo correu, o ímpeto arrefeceu, a moda mudou e a visita a uma Havana cada vez mais empobrecida e irrelevante saiu do nosso roteiro.
Estive com Fidel Castro em várias ocasiões. Duas vezes jantei com ele, em sua casa em Havana. Tive como companheiro de mesa e de conversa Gabriel García Márquez, que mantinha com El Comandante en Jefe íntima amizade. Fidel, como sempre, falou sobre a condição do mundo e, apesar da longueur de seus comentários, o que dizia era relevante e perceptivo. Não gostava, pareceu-me, de falar sobre Cuba. As poucas vezes em que Cuba foi assunto – por provocação minha ou de outros convivas – mudou de conversa, e tornou a falar do mundo e dos grandes temas da agenda internacional. É como se achasse que, para um talento e uma ambição como as suas, Cuba fosse um palco insignificante, mais um constrangimento do que uma plataforma digna da sua estatura.
A última vez que o vi – já se vão alguns anos – usava ainda o uniforme de campanha, que começava a parecer uma fantasia imprópria para um senhor de avançada idade. Ao descer do carro, notei que não conseguia mais se inclinar e colocar o elástico das calças sobre os coturnos. Apareciam pedaços pálidos da sua canela, e um ajudante teve de se curvar para completar a operação.
Como Fidel, sua revolução envelhecera. O “homem novo” não surgira. O que parecia sustentar o regime eram os interesses criados por uma nova casta, que emergiu ao longo de quatro décadas. O seu melhor trunfo, a última fonte de legitimidade da revolução, continuava a ser a resistência ao poder norte-americano.
O Vietnã era um símbolo talvez ainda mais poderoso do que Cuba. O fato de que, depois de longos anos de combate, houvesse conseguido derrotar sucessivamente a França e os Estados Unidos havia criado uma mitologia em torno da astúcia e da tenacidade das forças militares vietnamitas e do estoicismo de seu povo. A derrota dos americanos criou a expectativa de que um, dois, três, muitos Vietnãs poderiam ser criados da noite para o dia, que insurreições artificiais seriam vitoriosas. Che Guevara morreu, isolado na Bolívia, por acreditar nessa miragem.
O Brasil não podia escapar das radicalizações e das paixões daqueles tempos. Mas, até a renúncia de Jânio Quadros, conseguira amortecer o impacto das ondas de choque que nos chegavam de todos os lados. De alguma forma, o país era protegido pelo que sobrava do otimismo, da agenda interna e da autoconfiança dos anos JK.
A renúncia de Jânio, em 25 de agosto de l961, foi um dos gestos mais surpreendentes e mais difíceis de perdoar da nossa história. Jânio não só conseguiu surpreender os adversários, o que costuma ser útil em política, como deixar desarvorados os seus aliados e perplexo o país inteiro, coisa que certamente ninguém recomenda.
No último governo de Getúlio Vargas, assim como no de João Goulart, durante semanas, e mesmo meses antes de seu fim, nuvens pesadas se acumularam sobre a atividade política. Os presságios eram de que os dois ciclos terminariam antes das datas constitucionalmente estabelecidas. No caso da deserção de Jânio, nada disso aconteceu. Tão inesperada foi que não recordo tivesse sido prevista pelos melhores analistas, ou pelos atores, principais ou secundários, da cena política. Não houve PhD, vidente, raposa mineira ou jogador de búzios que profetizasse aquilo.
Durante anos, a motivação da renúncia de Jânio (ou a falta dela) foi tema de discussões e especulações. No mais das vezes, se atribuiu o gesto a um surto de aguda instabilidade emocional, potencializado por ingestão robusta de álcool. Hoje se vê com clareza uma tentativa bisonha e desastrada de golpe político, para reforçar os poderes do presidente.
Um livro pequeno e luminoso, A Renúncia de Jânio Quadros, publicado por Carlos Castello Branco, muitos anos depois, em 1996, oferece uma explicação convincente, e a meu ver definitiva, sobre o que de fato aconteceu. O autor, que era assessor de imprensa do Planalto, esclarece a trama e os motivos de Jânio e de alguns de seus principais colaboradores.
Um recurso retórico dos nossos homens públicos quando renunciam – ou até mesmo quando se despedem da vida, como foi o caso de Getúlio Vargas – é o de não dar nomes aos bois. Preferem referências crípticas a “forças ocultas”, como na carta-testamento de Getúlio, ou às “forças terríveis” da carta (na verdade, mais um bilhete) de Jânio.
Talvez essas duas expressões servissem tão somente para identificar Carlos Lacerda, ele, sim, enfant terrible da política, flagelo de quem governava o Brasil, mas que, sabendo como ninguém derrubar presidentes, não soube articular sua própria elevação ao cargo que por tanto tempo, e com tanto afã, ambicionou.
Corrijo logo o que acabo de escrever. O fim de Getúlio teve ingredientes de uma verdadeira tragédia. O autogolpe de Jânio foi, a rigor, uma farsa. Mas que abriu um longo ciclo de instabilidade, autoritarismo, sofrimento. Repito: é difícil, senão impossível, perdoá-lo.
Jânio sabia o impacto que sua renúncia provocaria. Para aumentá-lo, escolheu o momento em que o vice-presidente Jango Goulart estava em Pequim. De uns anos para cá, estar em Pequim é coisa inteiramente natural. Costuma indicar a procura de oportunidades de investimento ou a negociação de pontos controvertidos de nossa cada vez mais densa e diversificada agenda bilateral. Ou, ainda, o reforço de nossa crescente aproximação, como sócios que somos – China e Brasil – do pequeno grupo de grandes países emergentes, seja no G-20, seja no círculo mais restrito do BRIC.
No início dos anos 60, contudo, estar em Pequim era sintoma de uma temerária identificação ideológica com a cidade que, com Moscou, era polo do comunismo internacional. A circunstância de Jango estar em Pequim o tornava ainda mais suspeito para setores amplos e retrógrados, militares e civis, da sociedade brasileira.
Se a história do Brasil está pontilhada de episódios que evidenciam a mediocridade ou a falta de visão de seus líderes do momento, a renúncia de Jânio é um ato singular nos nossos anais: ela se afasta das práticas habituais do bom-senso, mesmo que pedestre, que são uma constante de nosso comportamento político e diplomático.
É uma questão impossível de responder, e talvez inútil de formular, o que teria acontecido conosco se naqueles idos de agosto Jânio não renunciasse, e tivesse completado o mandato para o qual havia sido eleito com folgada maioria. Por um lado, é difícil conceber que o Brasil pudesse ter escapado da onda de autoritarismos que varreu a América Latina naquela quadra. Por outro, é possível imaginar um cenário menos dramático, com as nossas contas sendo saneadas (o que era promessa eleitoral de Jânio) e Juscelino Kubitschek regressando, não ao Catete, mas agora ao Planalto, para uma possível continuação dos anos dourados.
Em vez disso, tivemos os anos de chumbo. Pagamos todos pela maquinação de Jânio. Apesar de sua trajetória futura ter resgatado algo de sua credibilidade, continuo a vê-lo como o principal responsável por boa parte de nossos infortúnios. Quase me dei mal, muitos anos depois, quando insinuei que o suicídio de Getúlio, a renúncia de Jânio, a incapacitação de Tancredo Neves e o impeachment de Fernando Collor sugeriam que Deus era apenas ocasionalmente brasileiro.
Duas palavras sobre Jango Goulart. Ele não tinha estatura para ser presidente. E, no entanto, coube-lhe navegar em águas agitadas e traiçoeiras, que reclamavam no timão homem com qualidades que, infelizmente, ele não possuía. Seu exílio foi longo, demasiado, cruel. Embora no Uruguai estivesse perto das paisagens dos tempos de sua formação, foram anos de um melancólico decaimento físico e político. Não pôde, como deveria, terminar seus dias em terras brasileiras.
A década de 60 foi o auge da Guerra Fria, impasse que durou quarenta anos, desde o bloqueio de Berlim até a queda – ainda em Berlim – do muro que dividia aquela cidade e servia de fronteira para as duas superpotências. Foi um período em que todas as iniciativas de política externa eram pesadas e analisadas como lances no grande tabuleiro da disputa entre soviéticos e americanos. Quase nada podia ser examinado apenas em seus méritos intrínsecos, nem legitimado à luz apenas de interesses nacionais. Tudo era medido pela sua utilidade para cada um dos lados em luta.
Como a dissuasão nuclear havia proibido, de fato, que se chegasse a uma Terceira Guerra Mundial, os dois gigantes militares brigavam por meio de interpostos países. Promoviam os chamados “conflitos regionais”, nome que se dava aos enfrentamentos militares, geralmente de baixa intensidade e em regiões periféricas. A defesa da liberdade era a bandeira dos Estados Unidos, e a causa da paz e do socialismo, o emblema da URSS. Como num monumental jogo do bicho planetário, uns apostavam na águia americana e outros faziam fé no urso soviético.
Era, ao mesmo tempo, mais fácil e mais perigoso do que hoje fazer política externa. Mais fácil porque o mundo estava dividido em quadrantes: o Norte e o Sul, o Leste e o Ocidente. E predominava um considerável imobilismo e previsibilidade no jogo internacional. Perigoso porque todos os países eram enquadrados ao longo desses dois eixos, não havendo espaço para exercícios de autonomia nacional.
Por isso, no começo de 1961, quando o Brasil lançou, pela voz sempre eloquente de Afonso Arinos de Melo Franco, as bases do que viria a ser chamado de “política externa independente”, rótulo que hoje parece simplesmente natural, senão banal, o gesto teve grande repercussão externa e interna.
Formular e implementar uma política externa “independente” era um imenso, e talvez impossível, desafio. As duas alianças militares e ideológicas que se enfrentavam exigiam subordinação, cobravam adesão às ideologias que professavam, e reclamavam fidelidade aos modelos de organização econômica que capitalismo e comunismo representavam.
Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Araújo Castro tiveram que se haver com essa situação. Foram três homens públicos extraordinários. Eles formularam conceitos que até hoje me parecem apropriados para definir a inserção internacional do Brasil. Não havia em nenhum dos três (e disso posso dar um testemunho muito enfático, por ter convivido e trabalhado com eles) nada que não fosse a expressão de uma racionalidade desprovida de radicalismos ou simplismos. E essa racionalidade foi o instrumento intelectual de que se serviam para procurar definir um perfil à atuação externa do Brasil.
Não viveram o bastante, os três, para navegar nos mares mais serenos de hoje. Nem puderam ver o Brasil cumprir grande parte do seu projeto de inserção no mundo. Nos tempos tumultuados que foram os seus, essa meta lhes parecia remota e talvez inalcançável. Mas ela lhes serviu de norte. Como escreveu Kaváfis: Honra àqueles que Termópilas fixaram em suas vidas para as defender.
Fomos, desde o início, observadores do Movimento dos Países Não Alinhados. Pelas razões acima expostas, nunca nos oferecemos para ser um membro pleno do Movimento. Desde a reunião de sua criação, em Bandung, na Indonésia, encontramos na posição de observadores o nicho da nossa conveniência.
Quando chefiei a delegação brasileira durante a Cúpula dos Não Alinhados, em Nova Délhi, em 1983, o ministro das Relações Exteriores da Índia (e depois primeiro-ministro) Narasimha Rao disse-me, com um grão de ironia, que fazia perto de trinta anos que o Brasil observava os não alinhados. E que lhe parecia que já havíamos tido tempo suficiente para make up our minds e entrar como membros plenos do Movimento. Disse-lhe que nossa posição não era um ritual de passagem, mesmo que demorado, e que continuaríamos a ser apenas founding observers dos não alinhados. Com isso, pareceu dar-se por satisfeito.
O imperativo de pertencer, por convencimento ou coação, a um ou outro campo na Guerra Fria ou a necessidade de buscar no não alinhamento um espaço para respirar – e esse espaço era mais ilusório do que real – fazia com que as questões de política externa se fizessem intensamente presentes nos debates internos do país, e dificultassem que certos temas fossem vistos pelos seus méritos e tratados com o necessário distanciamento e objetividade.
Escolhi dois exemplos que me parecem melhor ilustrar o que procuro dizer, Vietnã e Cuba. Haveria outros, como o conflito entre árabes e Israel, certamente o mais rancoroso e intratável problema desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a batalha pela libertação da Argélia e o processo, ora pacífico ora violento, da liquidação dos antigos impérios coloniais.
Para nós, a questão mais conflituosa e emocional foi o desmonte do império colonial de Portugal. Ficamos por longos anos reféns de uma eficaz manipulação por parte do regime salazarista. Nossa posição foi, por muito tempo, há que reconhecê-lo, simplesmente indecorosa. Para nossa vergonha, também não tivemos política melhor, durante anos, sobre o regime de apartheid na África do Sul.
O Brasil procurou, nas décadas subsequentes, quitar a dívida contraída com os africanos e, sobretudo, com os países mais próximos a nós pela vizinhança do Atlântico Sul. Essa correção de rumos e o estabelecimento de uma confiança recíproca foram feitos. Como tantas vezes acontece, fazer o moral e o politicamente apropriado nos deu, e continua a dar, dividendos econômicos e comerciais.
Depois que Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Araújo Castro saíram de cena, a política externa nacional foi conduzida por pessoas que não tinham a qualidade extraordinária dos nossos triúnviros. Mas apenas em Juraci Magalhães observei uma adesão entusiasta à ideia de um alinhamento automático com os Estados Unidos. Seus sucessores – sobretudo aquele astuto e prudente Magalhães Pinto – sabiam que estávamos um pouco fora de rumo, e nos distanciávamos de teses que nos eram caras. Aquilo não podia durar. E não durou.
Faço esses comentários de natureza abrangente para mostrar como, naqueles tempos de intensa rivalidade ideológica – quando as metáforas dos grandes reduziam os países a dominós que poderiam cair um após o outro, e tombar finalmente na zona de influência da superpotência rival –, a realidade era, no fim das contas, mais rica que os esquemas das chancelarias.
É importante não esquecer que, na expressão que define aqueles tempos, a palavra “fria” apenas qualificava o substantivo “guerra”. No grande embate, quase tudo foi negligenciado ou manipulado para que um lado pudesse, no fim do ciclo, declarar-se vencedor e se identificar como o herdeiro da história. Como sempre acontece na lógica das grandes rivalidades e dos grandes conflitos internacionais, depois de certo momento os valores foram postos de lado. E o que se buscou foram alianças ou coligações capazes de alterar em benefício próprio o equilíbrio de forças.
Quando a Revolução Francesa fez 200 anos, Chu En-lai disse que era cedo para se fazer uma avaliação do que aquilo tinha representado na história. É por isso que procuro não fazer julgamentos peremptórios sobre a década de 60. Tenho apenas o impulso de corrigir uma impressão que vai se consolidando. Naquele tempo, no Brasil e no mundo em desenvolvimento, a batalha não me parecia ser entre a democracia e a ditadura. O que havia era uma luta entre dois modelos de autoritarismo: o de inspiração marxista-leninista e o que se concentrava na direita e nas forças militares.
O triunfo da democracia representativa, a defesa dos direitos humanos e a preocupação ambiental viriam anos mais tarde. Espero que, dessa vez, para ficar.
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