ILUSTRAÇÃO: BERNARDO FRANÇA_2012
Tagarela de cinema
Já sofri muito bullying. Não são só os gritos de “Silêncio” e os rompantes de “Cala a boca!”. Tem gente que levanta, lança um olhar de polícia e troca de lugar
Renato Terra | Edição 69, Junho 2012
Odeio quem berra para pedir silêncio. Coisa de gente mal-educada. Ainda mais no escuro – assusta as pessoas. Pior são aqueles que fazem “chiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii” com tanta raiva que o chiado parece que não acaba nunca. Traumatiza, sabe? Semana passada, por exemplo, tive um pesadelo em que estava rodeada de chaleiras.
Tudo bem, eu falo no cinema. Admito. Mas falo baixinho, sou uma mulher civilizada. Além do mais, quem quer solidão e silêncio total que fique em casa, alugue um DVD, se afunde no sofá diante daquela infinidade de canais que não param de passar filmes. Cinema é magia coletiva. O pior é que tem gente que não entende isso.
Ontem mesmo, levei uma cotovelada do Arnaldo, meu marido. Justo na cena em que o protagonista mexia na gaveta da esposa e, sem querer, achou uma foto do amante. Não contive o instinto: saiu um “iiiiiiihhhhhhhh” bem fininho. Veio da alma. Quando vi o braço do Arnaldo na minha direção, pensei até que fosse um efeito 3D. Mas não era ficção.
O fato é que não consigo reprimir o som que me vem das profundezas toda vez que colírios do calibre de Andy Garcia, Antonio Banderas e Pierce Brosnan surgem na tela. Sou incapaz de conter os comentários sobre paisagens deslumbrantes, sobre roupas cafonas, sobre cortes de cabelo e certas decorações de apartamento. É como soluço, a gente simplesmente não controla.
Sou cinéfila desde os tempos em que as pessoas se emperiquitavam para ir ao cinema. Mamãe me deixava, toda perfumada, na porta do Cine Ryan para os encontros com Clark Gable, Marlon Brando e Humphrey Bogart. Acho que fui mais vezes ao cinema do que o Rubens Ewald Filho.
Com o tempo, desenvolvi a capacidade de antecipar as cenas. Minhas amigas têm inveja até hoje. Vim ao mundo com o dom de prenunciar paixões enrustidas, descobrir identidades secretas, pressagiar traições, apontar o assassino. Percebo logo quando o mordomo é inocente. É duro guardar tudo isso dentro de mim. Tem gente que somatiza as coisas e, de repente, cai dura na rua com um piripaque. Para o bem da minha saúde, eu não controlo essa minha simbiose com a sétima arte.
Mas é duro conviver com a impaciência dos outros. Já sofri muito bullying. Não são só os gritos de “Silêncio” e os rompantes de “Cala a boca!”. Tem gente que levanta, lança um olhar de polícia e troca de lugar. Mas o que incomoda mesmo são as cutucadas e beliscões do Arnaldo. Nunca vou esquecer o dia em que as luzes do cinema se acenderam para que pudessem identificar quem estava falando. Foi horrível.
A cruzada contra nossa minoria chegou a níveis alarmantes. Vi na CNN uma vez a notícia de um tagarela que foi alvejado por uma rajada de pipocas no cinema e, como não se intimidou, acabou levando um tiro no braço. Isso aconteceu na Filadélfia, mas podia ter sido aqui em Niterói. Desde então, não ando sem meu gás de pimenta na bolsa.
Já tentei todo tipo de tratamento: fitoterápicos, homeopatia, ioga e media training. Fui num centro espírita e cheguei a fazer análise. O psicólogo, durante as sessões, pedia para eu ficar em silêncio. Não aguentava! Semana que vem, acho que começo a acupuntura.
Por enquanto, desenvolvi uma rotina própria para conquistar a serenidade dos monges tibetanos. Levo sempre um bom pedaço de plástico bolha. Minha ansiedade diminui consideravelmente apertando aquelas bolinhas. Mas só começo depois de saborear a pipoca, a barra de chocolate crocante e abrir o saco de batata chips. Devo confessar: adoro dar aquela última sugada no canudo para ver se ainda tem guaraná no copo. À medida que o gelo derrete, faço novas sucções.
No começo do namoro, Arnaldo e eu saíamos de uma sessão para entrar em outra. Ele me fazia cafuné, pegava na minha mão toda vez que eu me exaltava: “Menos, menos”, sussurrava. Hoje tenho que arrastá-lo. Assim que balbucio a primeira sílaba no cinema, me lança um olhar fulminante. Depois fica me cutucando, impaciente. Deve haver algum parágrafo da Lei Maria da Penha que me defenda desse monstro. Tem dias que o homem fala mais alto que eu: “Fica quieta! Depois, no jantar, eu te explico essa cena!” Depois… Depois não tem graça. O Arnaldo não tolera quando viro para ele e digo: “Não entendi.” Ou: “O que ele quis dizer com isso?”, “É o mesmo personagem?”
Assisto de tudo, claro, mas gosto mesmo é de filme brasileiro. Adoro quando as cenas se passam em lugares que conheço. Aparece uma rua de Copacabana e já fico doida para adivinhar qual é. Às vezes, escapa alguma frase solta: “Gente, ali ficava a sorveteria Babuska.” Ou: “Naquela esquina conheci teu pai, Arnaldo, lembra? Ele vestia um terno xadrez.”
Tem artistas que eu faço questão de acompanhar. Por exemplo, é só aparecer o Selton Mello que eu, imediatamente, elenco a lista de filmes em que ele atuou. Tão jovem e tão maduro na profissão. O problema é quando o artista fica muito tempo fora das telas. Outro dia, na sessão de Tainá 3, fiquei na dúvida se o Nuno Leal Maia era ou não o padre garotão daquela novela de vampiros.
Os filmes infantis voltaram a integrar minha rotina desde que Doris, a minha netinha, completou 1 ano e meio. Sessões com crianças costumam ser mais tolerantes. O Arnaldo não aguenta. Nos deixa no cinema e vai para o clube – fazer sauna, ele diz. Eu aproveito para ir à forra. Virei PhD em leitura de legendas. Sim, porque levo a Doris em filmes legendados, para acelerar o desenvolvimento. Aprendi a fazer uma inflexão para cada personagem e a interpretar as frases mais importantes.
O último filme que Arnaldo viu conosco foi Rio em 3D. Um milagre ele ter ido. Doris ficou louca com aqueles pássaros. Levantou os bracinhos e, num momento inspirado, balbuciou “piu-piu”. Foram as primeiras palavras da minha neta. Fiquei tão emocionada. O Arnaldo levou as mãos à cabeça e falou: “Menos, Dorinha, menos.”
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