Não sendo enunciada por ninguém em particular, a frase pertence a qualquer um. A sensação de que Não fui eu fala de nós é uma confirmação de que, dado o alheamento geral, o melhor é jogar a toalha e cuidar da própria vida FOTO: RICARDO BORGES_2018
Anotações sobre uma pichação
Inocência, culpa e responsabilidade nas ruas do Rio de Janeiro
João Moreira Salles | Edição 139, Abril 2018
1_Não revi a cena, mas guardo na lembrança o sentido geral. Estava em casa, assistindo às provas de atletismo da Olimpíada do Rio. Elas aconteciam no Engenhão, o estádio do Botafogo (meu time), o que para mim tinha certo encanto. O Brasil não ia bem, e, como de hábito, naquela e em outras arenas de nossa aventura nacional, estávamos todos – torcedores, comentaristas, eu em casa – reconciliados com o fato de sermos um país de 200 milhões de coadjuvantes. Eram as classificatórias do revezamento 4 x 100 masculino, modalidade em que temos certa tradição, se não de vencer, ao menos de chegar entre os melhores. Foi o que aconteceu. Com o oitavo tempo do dia, o quarteto brasileiro passou para a final.
Não é fácil terminar entre as oito melhores equipes do mundo. Num evento global que tem como matéria-prima a potência humana máxima, o feito sem dúvida era motivo de alegria. O que os velocistas exibiram na tevê, contudo, logo depois da prova, foi o contrário: uma espécie de descarrego público da humilhação de ser brasileiro, de ter de lutar sozinho, dia após dia, sem apoio nem reconhecimento, sem moeda sonante ou simbólica.
O espetáculo não era novo. “Nós somos guerreiros!”, gritava um atleta para o repórter. Eles acordavam cedo, trabalhavam duro, perseveravam, não recuavam diante dos incontáveis obstáculos. Eram eles contra o mundo, e agora o país teria de reconhecer o sacrifício. O repórter aquiescia com entusiasmo, enquanto no estúdio o comentarista famoso dobrava a aposta, executando piruetas ornamentais na retórica do brasileiro-que-não-desiste.
O que os atletas diziam era simples: eles tinham contado apenas com a própria garra para chegar até ali. Afora o punhado de companheiros de heroísmo da equipe técnica, o resto era um deserto de comunidade. Nada de federação, patrocinador, imprensa, torcida. Nada da rica teia de conexões que baliza o caminho dos que prosperam. Não havia ali escola, clube, igreja, associação, estado. Nada de país.
Gravei o episódio não porque me lembrasse iterações mais rancorosas do mesmo sentimento de vitimização – “Vocês vão ter que me engolir” –, mas, estranhamente, por ecoar uma frase que começava a aparecer nos muros do Rio de Janeiro. Ela dizia: Não fui eu. Ao menos para mim, as duas coisas – desabafo e pichação – eram manifestações distintas de uma mesma ideia: se cheguei aqui apesar dos outros, o que diz respeito ao mundo não me concerne. Natural, portanto, que eu me exima de toda responsabilidade coletiva. O infortúnio alheio não me pesa. Não fui eu.
Em seguida ao 4 x 100 masculino, veio a eliminatória para a final feminina dos 5 mil metros, que teve entre as finalistas três atletas do Quênia e mais três da Etiópia. Elas pareciam felizes.
Uns dias depois, o etíope Feyisa Lilesa conquistaria a medalha de prata da maratona. Lilesa, membro do povo dos oromos, duramente perseguido pelo regime de seu país, cruzou os braços acima da cabeça ao passar pela linha de chegada. Um gesto político, não uma diatribe.
Aos locutores brasileiros não ocorreu nenhum comentário a propósito dos obstáculos que quenianos e etíopes, atletas de países bem mais pobres que o nosso, têm de enfrentar para se tornarem corredores de ponta.
2_Faz provavelmente uns dois anos que topei com a frase pela primeira vez, num muro qualquer da cidade. Em pouco tempo, era impossível deixar de vê-la. Da noite para o dia, como uma infecção, onde houvesse um tapume, muro, parede, empena ou porta de ferro, ela aparecia: Não fui eu.
É certo que, pichada num muro de Estocolmo, os sentidos que ganharia seriam outros, e não há dificuldade em imaginar que conteúdos ela traria à tona em Berlim. História e geografia aqui são determinantes. O passado é tudo.
Minha hipótese é de que, no Brasil, a frase é imediatamente lida como um protesto de inocência. A um brasileiro não ocorrerá interpretá-la como manifestação de modéstia, como recusa de um crédito indevido – Não, essa honra não me cabe, ou Não, o mérito não é meu. Como violência, desigualdade e desordem formam a teia da nossa existência cívica, o que se insinua nas entrelinhas de Não fui eu não é a virtude, mas o delito.
Delito dos outros, no caso. A transferência de ônus é o que parece dar força ao enunciado, na medida em que fundamenta uma verdade incômoda sobre nossa condição de cidadãos brasileiros. Como tantos de nós, o autor está tirando o corpo fora.
3_Dizem que a primeira virtude de um cidadão é a vigilância. O sujeito de Não fui eu discorda: é a negação. Ele não se inclui entre os canalhas. Não é responsável.
Mas responsável pelo quê? Pelo buraco de rua? Por quem fura o sinal, por quem molha a mão do guarda, por quem não cumpre o que diz? Pela feiura das nossas cidades? Pela gestão da saúde, da educação, do transporte? Pela violência? Pela desigualdade? Por corruptos e corruptores? Pelas obscenidades do atual governo? Pelas indignidades do antigo? Responsável pelo Congresso? Pelo impeachment? Pelo golpe?
Em Uma História Natural da Curiosidade, o escritor Alberto Manguel, argentino naturalizado canadense, menciona uma conversa que teve na época dos desaparecimentos políticos em seu país de origem:
“‘Em tempos de injustiça como esses’, disse-me uma vez outro amigo, ‘você tem duas alternativas. Ou fingir que nada está acontecendo, que os gritos que você ouve na porta ao lado são de vizinhos brigando e que a pessoa que parece ter desaparecido está provavelmente num longo e ilícito feriado, ou você pode aprender a atirar com uma arma. Não existem outras opções.’ Mas, talvez, tornar-se testemunha seja outra opção. Stendhal, que achava que a política era uma pedra amarrada no pescoço da literatura, comparou opiniões políticas numa obra de ficção a um tiro disparado no meio de um concerto, endossando implicitamente a terceira opção.”
Não fui eu não é testemunha de nada. Ao negar até esse gesto, a frase se torna essencialmente antipolítica. Ela presume um apartamento do mundo, um “Isso não me diz respeito”. O sujeito da frase discorda da tese de que a política dirá sempre respeito a quem vive em sociedade. Ele se vê mais como átomo do que molécula, uma unidade isolada, livre de vinculações.
Hannah Arendt atribui esse retraimento moral à ascensão do cristianismo, quando “a ênfase deslocou-se inteiramente da preocupação com o mundo e os deveres a ele ligados para a preocupação com a alma e sua salvação”. Nesse processo, ocorre a passagem do coletivo para o individual.
Se Não fui eu está ou não preocupado com sua alma, pouco importa. O certo é que se preocupa consigo mesmo e que isso lhe basta. Inexiste nós. Existe eu. E eu é inocente.
4_Aos domingos e feriados, a estrada das Paineiras, no Rio de Janeiro, fica fechada aos carros. É uma via estreita e sinuosa que avança por dentro da Floresta da Tijuca, oferecendo vistas magníficas da cidade lá embaixo. Nos fins de semana, ela é tomada por ciclistas, corredores, skatistas e famílias que passeiam com os filhos. Muitas crianças se arriscam ali pela primeira vez numa bicicleta. Nos frequentes dias de serração, não se enxerga além de 5, 6 metros à frente do nariz.
Nos últimos meses, principalmente quando chove, tenho visto carros e motos circulando nas Paineiras aos domingos. Devem presumir que haverá pouca gente por ali. Eles levantam a cancela no início da estrada e seguem adiante, cortando caminho em direção ao bairro de Santa Teresa. Numa dessas ocasiões, um ciclista dobrou a curva acelerado e escapou por pouco do veículo que vinha rápido em sentido contrário.
Já vi carros de luxo e carros populares. Civicamente, alguns ligam o pisca-pisca e seguem devagar, como se para abrandar a ilegalidade. São talvez os mais desprezíveis, porque não têm coragem de assumir sequer para si mesmos a própria brutalidade. Vejo-os passar e penso que provavelmente se indignam com as mazelas do país. Sobre as quais devem dizer: Não fui eu.
5_O antropólogo Luiz Eduardo Soares identifica uma categoria da cultura política brasileira que considera muito significativa. Trata-se do pronome eles: “A gente ouve o tempo todo. Você conversa com o taxista e ele dirá: ‘O senhor tá vendo isso? Tá aqui há um tempão, eles não querem nem saber.’ Daí a gente pergunta: ‘Meu amigo, eles quem?’ ‘Ora, eles.’” Sujeito indeterminado, coletivo, sem rosto.
Soares observa que, diante de um eles tão abstrato, não há como se produzir um nós, razão pela qual, em nossa cultura cívica, costumamos terceirizar responsabilidades e agência humana – são eles lá. “Num país mais comunitário, que pensasse a responsabilidade coletiva, os problemas ou seriam definidos a partir da capacidade de cada um de resolvê-los, ou seriam atribuídos de maneira mais precisa àqueles diretamente responsáveis por solucioná-los.”
6_Não fui eu é um prodígio de indeterminação. Do que se está falando? Falando para quem? E quem fala? As respostas são virtualmente incontáveis. Em relação à primeira pergunta, por exemplo, elas cobrem a faixa que vai do menos interessante – um comentário irônico sobre a própria prática da pichação (“Não fui eu que emporcalhei o seu muro”) – ao mais potente – a condensação de uma verdade contundente sobre nós mesmos.
Ignora-se a identidade do autor dessa frase com a qual o carioca convive há anos e que continua a se disseminar pelas superfícies da cidade. Numa reportagem de 2017 da Veja Rio, ele afirma que se manterá no anonimato: “Se a pichação funciona como uma assinatura que reivindica a autoria, meu trabalho é uma assinatura que nega a própria autoria. Comecei a me interessar pela potência poética que surgia disso e pelas diferentes leituras que a frase poderia ter na rua.”
Fez bem. Não sendo enunciada por ninguém em particular, a frase pertence a qualquer um. A sensação difusa de que ela exprime um éthos, de que essas três palavras falam de nós, é uma confirmação de que, dado o alheamento geral, o melhor mesmo é jogar a toalha e ir cuidar da própria vida.
7_Outro modo de dizer a mesma coisa: é como se tivéssemos deixado a praça, onde todos se encontram, pelo beco, onde poucos passam. E talvez nem pelo beco, mas pelo prédio engradado. O horror do urbanismo brasileiro contemporâneo é uma tradução eloquente da frase.
Os exemplos não estão apenas nos bairros mais ricos, embora neles o solipsismo arquitetônico adquira contornos épicos. Não raro, as grades que separam a propriedade privada do resto da cidade avançam sobre a calçada e incorporam para si o que é de todos. Do lado de dentro, é certo que haverá moradores indignados com os descaminhos do país.
Nos bairros pobres e nas favelas, o desinteresse pelo comum se apresenta de outra maneira. Mesmo as moradias mais simples costumam estar arranjadas por dentro, mas quase nunca por fora. As duas décadas que se encerraram com a crise de 2014 foram um período em que saldamos uma modesta parcela da nossa dívida social. Sobrou algum dinheiro e as pessoas foram atrás da dignidade que lhes era devida. O teto ganhou forro; o piso, revestimento; as paredes, tinta ou ladrilho. Do lado externo, na face que dá para os outros, permaneceu o tijolo à vista. É um arranjo diferente do das platibandas, ornamentos e cores que enfeitam o casario de certos vilarejos pobres do interior.
Será sempre mais fácil compreender o tijolo exposto do que a chaga das grades, e não só pelo argumento econômico. Que solidariedade às coisas comuns poderá existir quando o espaço público é sinônimo de falta – de saneamento, de transporte, de creche, de escola, de hospital, de segurança – e a proximidade com a riqueza dos outros é tão agressiva? Michel Houellebecq escreve em Submissão: “Para pessoas que viveram e prosperaram sob determinado sistema social, é provavelmente impossível imaginar o ponto de vista daqueles que, sem jamais ter tido nada a esperar desse sistema, assistem sem maiores receios à sua destruição.” Não enfeitar, não tornar belo, pode ser entendido como um comentário político involuntário.
Seja qual for a razão, Não fui eu se tornou um dos princípios básicos de ordenamento das nossas cidades. Num país de escassa coesão social, a feiura urbana é das poucas obras coletivas em que ricos, pobres e remediados se irmanam.
8_Tomado pelo valor de face, Não fui eu é uma afirmação de inocência. Seria ausência de culpa ou de responsabilidade? Hannah Arendt estabelece uma distinção importante entre uma coisa e outra. A culpa é sempre pessoal, a responsabilidade pode ser do grupo. No ensaio “Responsabilidade coletiva” ela escreve:
“Diria que duas condições têm de estar presentes para a responsabilidade coletiva: devo ser considerado responsável por algo que não fiz, e a razão para a minha responsabilidade deve ser o fato de eu pertencer a um grupo (um coletivo), o que nenhum ato voluntário meu pode dissolver […] Esse tipo de responsabilidade, na minha opinião, é sempre político, quer apareça na forma mais antiga em que toda uma comunidade assume a responsabilidade por qualquer ato de qualquer de seus membros, quer no caso de uma comunidade ser considerada responsável pelo que foi feito em seu nome […] Nesse sentido, somos sempre considerados responsáveis pelos pecados de nossos pais, assim como colhemos as recompensas de seus méritos; mas não somos, é claro, culpados de suas malfeitorias, nem moral nem legalmente, nem podemos atribuir os seus atos a nossos méritos.”
A culpa, então, pertence ao campo da moral, enquanto a responsabilidade é do domínio da política. No centro das considerações morais da conduta humana está o eu; no centro das considerações políticas da conduta está o mundo.
A culpa exige participação direta. Na Alemanha do pós-guerra, escreve Arendt,
“o grito de ‘Somos todos culpados’, que a princípio soou muito nobre e atraente, serviu de fato apenas para desculpar num grau considerável aqueles que eram realmente culpados. Quando somos todos culpados, ninguém o é. A culpa, ao contrário da responsabilidade, sempre seleciona, é estritamente pessoal. Refere-se a um ato, não a intenções ou potencialidades”.
9_Primeiras estrofes de um dos grandes poemas da polonesa Wisława Szymborska:
Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregados de corpos.
Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro,
e em trapos ensanguentados.
Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar as janelas.
A cena não rende foto
e pode levar anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.
[…]
É o que disse Hannah Arendt, só que de outro modo. Não fui eu possivelmente teria dificuldade em compreender o poema.
10_Não fui eu tem caligrafia caprichada. É letra de quem estudou. Cursiva, firme, com um quê de vintage, mais feminina do que masculina. Caligrafia de normalista. É certamente parte da informação, não um aspecto acidental. Dado o histórico dramático do ensino do país, é razoável supor que a frase seja escrita por quem teve acesso a uma boa escola, o que, no Brasil, costuma ser um forte marcador de classe. Para usar o léxico do momento, o autor pertence ao privilégio. Normalistas, desde sempre – ou, pelo menos, desde Nelson Rodrigues –, são a encarnação da falsa inocência. Afetam pureza para seduzir melhor. É como se Não fui eu dissesse: Será que não mesmo? Vejam de onde venho.
11_À luz da normalista, o sentido mais imediato da pichação – essa burla perpetrada por alguém que, não contente em sujar o muro alheio, ainda se dá ao desfrute de protestar inocência – adquire uma qualidade de paradoxo, como quem dá um nó em si mesmo. O pichador nega com seu ato a frase que picha. Afirmar que Não fui eu com tinta escorrendo pelas mãos, por assim dizer, é a prova de que, sim, foi você.
De um golpe, estamos diante de um objeto mais complicado. A pichação agora pode ser lida seja como transgressão banal – ocupação sarcástica e indevida do espaço do outro –, seja como gesto autoincriminatório e confessional de quem diz Não acreditem em mim (e, por extensão, em ninguém que se diga inocente). De um lado, sujeira; de outro, sociologia. São interpretações legítimas e complementares. A segunda é a que mais interessa aqui.
12_O historiador alemão Joachim Fest conta uma história sobre o pai, Johannes Fest. Conservador, patriota, prussiano até a raiz, Fest pai reverenciava Goethe e Kant, segundo ele as duas figuras pelas quais o espírito alemão se exprimia de forma exemplar para o mundo.
Diretor de escola primária, Fest levava a vida confortável de um pequeno-burguês berlinense. Era mais um entre muitos. Quando Hitler chegou ao poder, em janeiro de 1933, parte importante desse contingente de bons alemães assumiu postos na burocracia estatal. Raça, cultura e entusiasmo pangermânico os tornavam espécimes ideais para uma carreira no Estado nacional-socialista. Fest não foi um deles.
Poucos meses após a instalação do novo regime, quando o governo mandou que as escolas compilassem listas de todos os alunos judeus matriculados, Johannes Fest se negou a cumprir a ordem. Era o início de um processo de resistência em que sacrificaria posição social e estabilidade econômica, além de submeter a família ao risco permanente de coação. Fest foi demitido do emprego e proibido até de dar aulas particulares. Seus filhos foram expulsos da escola e a família passou a integrar as hostes dos proscritos.
Fest era profundamente católico – chegou a celebrar a anexação da Áustria, julgando que a incorporação de milhões de católicos ao Reich acabaria por temperar o fanatismo protestante de seus concidadãos – e sua fé desempenharia um papel importante na forma como veio a se comportar. Se a comunidade humana a que pertencia se desviara da decência, ele passaria a consultar apenas a si mesmo; aceitaria os ditames de sua consciência, não importando se, do lado de fora, fossem outros os princípios agora impostos pelo Estado e sancionados pela maioria.
Uma vez, convocou os cinco filhos – o mais velho era ainda adolescente – e, com voz grave, disse que estava ali para torná-los adultos. Décadas mais tarde, o filho Joachim Fest se recordaria do episódio. Era essencial, disse-lhes o pai,
“jamais sofrer com o isolamento que inevitavelmente acompanha quem se opõe à opinião das ruas. Para tanto, ele nos daria uma máxima latina que nunca deveríamos esquecer; o ideal seria escrevê-la, gravá-la na memória e jogar fora a anotação. A máxima o havia ajudado muitas vezes, até o salvara de tomar algumas decisões erradas, porque ele raramente se enganara ao seguir o próprio juízo. Pôs então um papel diante de cada um de nós e ditou: ‘Etiam si omnes, ego non! É do Evangelho segundo Mateus’, disse, ‘a cena no Monte das Oliveiras.’”
Mesmo se todos os outros, eu não! Quem protesta assim é Simão Pedro, afiançando a Cristo que ele, o primeiro dos apóstolos, não o abandonará.
É interessante comparar Ego non com Não fui eu. Duas negações, dois sujeitos que se distanciam dos outros e buscam conforto na própria consciência, recolhendo-se dentro de si. Contudo, enquanto a falta de responsabilidade pelas tribulações alheias – “Isso não me diz respeito” – explica a frase nos muros do Rio, é exatamente o oposto que motiva o Eu não de Fest. Ao negar, ele não dá as costas à comunidade dos homens, antes se engaja nela sob risco de vida. Seu gesto, essencialmente moral, é também político.
Terminada a guerra, Fest teria o direito de dizer Não fui eu. Seria plenamente legítimo, mas somente porque antes ele pagara o preço pelo Eu não. Num mesmo contexto, então, os sentidos que Não fui eu adquire são diferentes. Dito por Fest, expressaria um enfrentamento. Dito pelos funcionários do regime, seria mera variação do “Eu apenas cumpri ordens” ou “Eu não sabia”.
Quando a histeria e o horror tomam conta da esfera pública, os dividendos para quem insiste em resistir são mínimos. Resumem-se ao sentimento íntimo de seguir sendo quem se é. Para Fest, bastava. Para Simão Pedro, não. Como sabemos, quando veio a hora ele negou Jesus três vezes.
É difícil ser fiel a Ego non. Simão Pedro vacilou. Johannes Fest, não.
13_Uma das imagens mais extraordinárias da história da pintura é O Beijo de Judas, pintado por Giotto por volta de 1305 na cidade italiana de Pádua. O apóstolo envolve Jesus com seu manto amarelo enquanto os soldados fecham o cerco. No centro da cena, alheios à fúria do entorno, estão os dois, o traidor e o traído, de olhos cravados um no outro, num dos grandes silêncios já pintados. A expressão de Judas diz: Não fui eu; a de Cristo devolve: Eu sei que foi.
O manto que envolve Cristo é uma das maiores invenções de Giotto. É como se o ato da traição se infiltrasse nos objetos, tornando-os vis. Aplicando um conceito que mais tarde Leonardo da Vinci chamará de “regra de ocupação”, advogando-a como um bom princípio da pintura, Giotto descobre que uma imagem é forte quando o espírito da cena se derrama como um pigmento sobre a totalidade dos elementos pintados, tingindo-os a todos. Na representação do gesto de Judas, até as peças do vestuário traduzem o crime. Nada fica alheio à intenção: não só os olhos, os braços e o corpo, mas também, acolá, a multidão que se aperta à volta de Jesus. Ao fundo, a massa negra composta por um grupo indistinto de homens é como um poço escuro. Os paus, clavas e lanças que sacerdotes e soldados trazem erguidas quase ultrapassam os limites da cena. Dispostas como hastes de um leque aberto, convergem em direção a Jesus. Lembram a coroa de espinhos que já não tarda, ou uma alça de mira cujo centro é o homem que acaba de ser traído e em breve morrerá.
A regra de ocupação pode também ser entendida da seguinte maneira: não há esconderijo, não se escapa das consequências do ato. Mesmo quem é ou se julga inocente sofrerá os desdobramentos da traição de Judas. Não fui eu equivale ao gesto de Pilatos de lavar as mãos. Sabemos o resultado disso.
14_Vivendo como pária, Johannes Fest passava os dias na sala de estar, numa existência estéril. Perdera tudo. Sua intransigência total se manteria durante os doze anos do regime. Não fazia a saudação nazista, negou-se a celebrar as datas cívicas, a se filiar ao Partido, a inscrever a prole na Juventude Hitlerista. Não cederia uma só vez. Aos filhos, ensinava o preceito de desconfiar dos que tinham certezas – “em caso de dúvida, escolha a dúvida” – e mandava-os fazer companhia aos judeus da vizinhança, que já não podiam sair à rua.
Anos depois, quando a Alemanha do pós-guerra decidiu saldar suas dívidas históricas e iniciou um programa para indenizar as vítimas do nazismo, Fest, que chegou ao fim da Segunda Guerra com um filho morto e outro preso, não reclamou compensação alguma. Diante da insistência da família, indignou-se: “Vocês querem que eu seja pago pelas decisões políticas que tomei?” No livro que dedicou ao pai – Not I. Memoirs of a German Childhood, sem edição no Brasil –, Joachim Fest escreve: “Por recompensa, meu pai tinha apenas a consciência de haver mantido os seus rigorosos princípios.”
Uma cena se tornara recorrente durante os anos de resistência. À mesa do jantar, na casa cada vez mais pobre que um dia abrigara uma família de classe média, os filhos, agora sem brinquedos e vestindo roupas remendadas, perguntavam ao pai se ele não estaria pagando um preço alto demais pelos seus princípios. Largando os talheres sobre o prato, o pai explodia num desabafo. Não admitia que o tratassem como mártir: era verdade, vinha sofrendo havia anos, agora não passava de um inútil; fizera o sacrifício necessário em nome da consciência de cada membro da família sentado ao redor da mesa, mas e daí? Qual a grandeza daquilo? Amaldiçoar o regime do jardim para dentro, ouvir a bbc e rezar pelos necessitados, isso não era nada: “Sim, eu não me envolvo! Como todo mundo, aliás. E tenho boas razões para isso. Acontece que agora eu sei que nas condições atuais não existe separação entre o bem e o mal. O ar está envenenado. Estamos todos infectados!”
Johannes Fest não era talhado para ser herói e não se julgava como tal. Antes de ser testado, não o distinguiriam de um homem convencional. Sair na rua com uma sacola em cada mão para evitar fazer a saudação nazista, expediente que adotara desde 1933, era pouco diante da tarefa de lutar ativamente contra um regime iníquo. Para Johannes Fest, todos estavam implicados. A passividade era impossível, dizia, “ninguém pode ser absolvido”. O que, evidentemente, é o oposto de Não fui eu.
Guardadas as gigantescas diferenças entre o mundo de Fest e o nosso, um elemento comum perpassa nossa experiência e a dele. Sociedades que se organizam em torno de injustiças estruturais dificilmente deixam alguém desimplicado. O fato se torna ainda mais evidente agora que temos gravado em nossas retinas um assassinato político cometido para ser visto por todos. Diante disso, difícil imaginar que se possa ficar à margem.
15_Philip Roth, em recente ensaio autobiográfico, refletindo sobre sua relação com os Estados Unidos:
“O fascínio pela singularidade do país foi especialmente forte nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, quando, como aluno do ensino médio, comecei a frequentar as estantes da Biblioteca Pública de Newark para ampliar minha percepção do lugar onde morava. Apesar da tensão, ou mesmo ferocidade, dos antagonismos de classe, raça, geografia e religião que subjaziam à vida nacional, apesar do conflito entre capital e trabalho que acompanhava o desenvolvimento industrial […], entre 1941 e 1945 a América se unificara, como nunca antes, em torno de um propósito. Mais tarde, o sentimento coletivo de ser a América o centro do mais espetacular dos dramas em andamento no pós-guerra adveio não apenas de chauvinismo triunfalista, mas de uma avaliação realista da empreitada por trás da vitória de 1945, uma proeza em termos de sacrifício humano, esforço físico, planejamento industrial, gênio administrativo e mobilização laboral e militar – a convocação de um espírito comunitário que parecia inalcançável na década anterior, durante a Grande Depressão.”
É difícil encontrar momentos da vida brasileira em que algum experimento nacional tenha promovido coesão social semelhante. Nossas conquistas – econômicas, sociais, científicas, tecnológicas, culturais, diplomáticas – são poucas, desproporcionais às nossas mazelas, incapazes, portanto, de gerar sentimentos aglutinadores que perdurem.
Para o bem ou para o mal, é improvável que nos anos descritos por Roth a frase Não fui eu aparecesse nos muros de Newark, Chicago, São Francisco ou Detroit. O contrário seria mais plausível: Tenho parte nisso. Eu também. Nesse sentido, Não fui eu é um dístico para tempos de desagregação crônica.
16_Em 2015, o economista André Lara Resende publicou no jornal Valor um ensaio influente que pôs em circulação o conceito de capital cívico. É, em síntese, a medida com a qual avaliamos aqueles que não conhecemos. É a fé, ou a falta dela, que depositamos nos outros. Se estamos dispostos a acreditar nos anônimos com os quais entramos em interação social, então vivemos numa comunidade de alto capital cívico. Quando é a desconfiança que prevalece, o capital cívico é baixo.
Sociedades de alto capital cívico são prósperas, consequência de as pessoas se mostrarem mais propensas a cooperar entre si. Não apenas não se sentem isoladas, mas são ricas de um sentimento de vínculo comunitário que nada mais é do que a convicção de que todos partilham de um mesmo código moral pelo qual não enganar é a garantia de não ser enganado.
Assim deve ser entendida a afirmação de Lara Resende de que a confiança importante para o bom funcionamento de uma sociedade é a confiança nos desconhecidos. Quando isso acontece, denominadores comuns passam a prevalecer sobre singularidades irredutíveis. Se existe confiança no outro desconhecido, é porque ele não será muito diferente de mim. A coletividade, portanto, é obra de semelhantes, e, embora seja possível e até frequente que eu não me reconheça no ato singular de um indivíduo específico, é pouco provável que eu negue minha responsabilidade no projeto comum.
Em sociedades com alto capital cívico, Não fui eu tenderá a vir com o complemento que esclarece a natureza do ato do qual se é inocente. A seco, sem predicação, Não fui eu aplica-se a um agrupamento de indivíduos que não formam conjunto.
17_“Não me representa” é outra variante de Não fui eu. Em tempos mais serenos, expressão legítima de desavença política contra este ou aquele personagem, hoje, à luz da crispação atual, a frase é quase sempre pronunciada para afirmar a ilegitimidade do sistema que tornou tais personagens possíveis. O mesmo sistema cujo despudor, pouco antes, era aceito com algum constrangimento e quase nenhuma hesitação. Camus dizia que o homem não é totalmente culpado, pois não começou a História, nem totalmente inocente, visto que a continua. É o que basta para turvar a pureza cristalina com que o Não me representa costuma ser proclamado.
18_Voltando à Olimpíada. Quando a água da piscina de saltos ornamentais passou de azul-claro a verde-musgo, assustando os atletas e impedindo a visão das câmeras subaquáticas, usaram-se produtos químicos para tentar reverter o processo. Num primeiro momento, não funcionou. Diante de um espinhal de microfones, o diretor de Comunicação do Comitê Rio-2016, Mario Andrada, declarou: “Descobrimos, entre outras coisas, que a química não é uma ciência exata.”
Comentário de um locutor brasileiro a propósito do mau desempenho dos nossos nadadores: “A frequência das braçadas foi muito boa.”
Do superintendente técnico da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, Ricardo de Moura, explicando por que não conseguimos um só pódio na natação: “A nossa perspectiva eram as finais, nada além disso. A evolução é forte.” Isso apesar de o planejamento para os jogos ter previsto de três a cinco medalhas. Cingapura e Cazaquistão, por sua vez, conquistaram ouro.
As palavras deveriam valer alguma coisa, mas não.
19_Não fui eu corresponde ao gesto típico do atual jogador de futebol brasileiro. “Não fui eu, eu não fiz nada”, diz ele erguendo as mãos espalmadas, a despeito da falta que acabou de cometer ou daquela que fingiu receber. Em ambos os casos – entrada faltosa ou simulação –, o que está em curso é uma artimanha pela qual um culpado se transforma em vítima. Não fui eu equivale a Foi ele. Trata-se, portanto, de uma categoria da razão cínica.
20_Ser vítima tem algumas vantagens. Fica-se dispensado de muita coisa, inclusive do fracasso.
A vitimização está cada vez mais presente na fala de atletas e técnicos. Quando perdem, de duas, uma: ou houve roubo, ou faltou incentivo. Boa parte dos esportistas brasileiros deve, de fato, sofrer com a falta de apoio, mas não os da Seleção Brasileira. No entanto, ao menos até a desastrosa Copa de 2014, o sentimento de abandono vinha sendo a tônica nas declarações de jogadores e comissão técnica. As vitórias, poucas e sem expressão, aconteciam sempre com rancor.
Em cinco minutos de YouTube, qualquer masoquista dedicado pode reviver com gosto as grosserias protagonizadas por Zagallo, Dunga, Jorginho, Felipão. É uma fieira de queixas vulgares contra a imprensa, a falta de patriotismo, a solidão deles que se sacrificam pelo país. As derrotas são assimiladas com irritação, como se, no fundo, o mau resultado fosse consequência de perseguição e adversidades, nunca de incompetência.
Se pudessem dizer o que obviamente lhes passava pela cabeça, acusariam: Não fomos nós, foram vocês.
21_Numa carta ao escritor Karl Ove Knausgård, seu amigo, o jornalista e também escritor Fredrik Ekelund descreve o Rio de Janeiro no dia seguinte à derrota por 7 a 1 para a Alemanha:
“Às oito da manhã, vou à banca de jornal, as pessoas têm o olhar vazio, olham para o asfalto e aquele dia impossível, no qual nenhum brasileiro queria viver, está desfraldado diante de todos e na banca de jornal a manchete vem estampada com as letras da guerra: vergonha – vexame – humilhação – vá pro inferno, felipão, e a capa do Extra, um jornal do Rio, traz uma fotografia enorme de Moacir Barbosa caído de bruços enquanto o chute de Ghiggia acerta a trave na final de 1950, e por fim um muito obrigado a todos os que jogaram aquela partida. Para muitos jogadores daquela Seleção a vida se tornou um verdadeiro inferno, e não tenho dificuldade nenhuma em imaginar que a mesma coisa deve acontecer com muitos desses caras de agora, pois a humilhação que trouxe ao povo brasileiro, de acordo com todos os jornais – todos! –, está além de qualquer tentativa de explicação.”
Compreendo por que Ekelund chegou a essa conclusão. O Brasil que ele tem em mente é outro, antigo e mais simples, um país que, se um dia existiu, desapareceu faz tempo. A sua é a visão romântica de um estrangeiro fascinado pelo nosso futebol. Como o turista determinado a suspirar diante do Grand Canyon mesmo em dia de nevoeiro denso, ele quer ver confirmada nas ruas a fantasia de que a Seleção e o país são entes intercambiáveis, a tragédia de um sendo também a do outro.
Passados quatro anos, sua profecia não se confirmou. Nenhum derrotado de 2014 sofreu na carne o que os jogadores de 1950 enfrentaram. David Luiz e Marcelo, escudeiros da mais porosa linha de defesa de que se tem notícia; Thiago Silva, o capitão que chorava na hora da decisão; Daniel Alves e Paulinho, que na prática não fizeram diferença; Fred, centroavante incapaz de agredir, todos eles e mais os outros seguem ganhando bem, e, ao contrário de vários atletas de 1950, ninguém precisou se confinar em casa para não lidar com o rancor das ruas.
Melhor assim, embora não se deva ver aí um avanço civilizatório. Nós simplesmente já não nos importávamos tanto. Diferentemente da derrota de 1950, o 7 a 1 foi mais uma vergonha do que uma tragédia. Tragédias precisam de heróis, e o que tínhamos eram atletas mimados sob o comando de adultos pernósticos. Da Suécia, Ekelund não teria como perceber a própria idealização. Ele precisaria ter acompanhado o festival de incompetências e vulgaridades que marcaram a vida da Seleção nessas últimas décadas. Ou escutado os gritos de Não vai ter Copa na convulsão de 2013. Ou testemunhado a progressiva desconexão dos jogadores com os clubes brasileiros, efeito da assimetria cada vez mais acentuada entre as forças econômicas daqui e as de fora.
O fato é que em 1950, assim como em 1982, 1986, indo talvez até 1998, a Seleção nos dizia respeito mais de perto. Em 2014, não mais. O que é outra versão do Não fui eu.
22_Ainda as palavras. Da ex-presidente Dilma Rousseff, dias depois do desastre de Mariana: o rio Doce, depois da recuperação, ficará “melhor do que ele estava antes.”
Passados quase três anos da tragédia, pouco mudou. Pergunte-se de quem é a responsabilidade. Dilma, Temer, Ministério de Minas e Energia, governo de Minas, governo federal, Samarco, Vale, cada um deles dirá: É deles.
23_Empresários, financistas, investidores também são vítimas. Querem a sua desoneração de impostos, seus juros subsidiados, um governo que os proteja. Senão, como competir? Que a proteção de um setor implique numa conta a ser arcada por todos é questão secundária. O essencial é que o pato seja pago alhures. Em caso de bancarrota, adota-se a fala dos atletas: faltou apoio. Foram eles.
24_Em fevereiro deste ano, O Globo publicou uma coluna que apontava a incompetência dos órgãos fiscalizadores, os quais não viram nos excessos comportamentais do ex-governador Sérgio Cabral motivo suficiente para investigá-lo:
“Sérgio Cabral está preso, condenado a 87 anos de cadeia, e ainda responde a mais de catorze processos por desvios de algumas centenas de milhões de reais dos cofres estaduais. Seus sinais externos de riqueza são escandalosos. Como o Coaf e a Receita não viram nada disso com todo o poder que detêm, inclusive de fuçar as contas das pessoas? Como a Receita, que fareja altos padrões de consumo e conduta até em colunas sociais de jornais, pode ter deixado passar despercebida tamanha extravagância?”
É um bom ponto. Faltaria apenas acrescentar: e como pôde O Globo, o jornal do Rio por excelência, ter sido tão indulgente com o então governador?
O artigo, intitulado “Os cegos que não viram o Brasil ser saqueado”, veio assinado por Ascânio Seleme, que em 2001 assumiu uma das editorias executivas do jornal e em 2011 se tornou diretor de redação, função que exerceu até 2017. Sérgio Cabral foi eleito governador do Rio de Janeiro em 2006 e reeleito quatro anos depois, deixando o Palácio Laranjeiras apenas em abril de 2014, quando se desincompatibilizou do cargo para concorrer ao Senado.
Sempre se poderá sacar dos arquivos uma ou outra reportagem crítica, mas quem viveu na cidade durante os anos cabralinos não ignorava que a cobertura do Globo recendia a triunfalismo provinciano. Das páginas noticiosas aos editoriais, passando por colunas e suplementos de bairros, o sucesso do estado era celebrado com o entusiasmo daquelas moças de pompons que salpicam as torcidas americanas. Batia-se bumbo para o empresário em vias de se tornar o homem mais rico do mundo, para o secretário de Segurança que pacificara as favelas, para o festivo círculo carioca do governador mineiro que preferia o Rio.
Batia-se bumbo, sobretudo, para Sérgio Cabral. Durante aqueles anos, a despeito dos tais sinais externos de riqueza (escandalosamente visíveis a olho nu, diga-se), abrir as páginas do Globo significava encontrar, a cada dia, razões para aplaudir o governador.
25_Conveniências políticas, econômicas, ideológicas ou, às vezes, mero paroquialismo levam a imprensa a comprar o que não deveria. Não é um privilégio brasileiro. Nos anos que precederam a invasão do Iraque em 2003, por exemplo, o New York Times aderiu à narrativa beligerante do governo americano. Contudo, quando se identificaram as mentiras do discurso oficial, o mais influente jornal do mundo publicou um extenso mea-culpa:
“Ao longo do ano passado este jornal se empenhou em rever minuciosamente as decisões que levaram os Estados Unidos a invadir o Iraque. Examinamos as falhas da inteligência americana e de seus aliados. Estudamos as acusações de como o governo se tornou vulnerável à desinformação e à má-fé. Era mais do que hora de dirigir o foco sobre nós mesmos […].”
Em vez de apontar o dedo para este ou aquele repórter, o jornal afirma que o erro foi sistêmico. Editores não questionaram repórteres; relatos de dissidentes iraquianos não foram submetidos ao escrutínio que se fazia necessário, visto que tais personagens tinham interesse na queda de Saddam Hussein; artigos baseados em afirmações bombásticas contra o Iraque ganhavam destaque, enquanto matérias que punham em questão o artigo original desapareciam nas seções internas do jornal.
O NYT publicou seu ato de contrição em 2004, um ano depois do início da guerra. Quatro anos depois de Cabral deixar o governo e dezessete meses depois de ser preso, ainda não veio o mea-culpa do Globo. Aparentemente, o jornal não julga necessário prestar contas de seus erros. Ou talvez considere que não errou: se Sérgio Cabral pôde agir com tanta desenvoltura durante os anos em que esteve no poder, a responsabilidade é apenas do Coaf e da Receita Federal.
26_No momento em que escrevo, Não fui eu aparece na fachada de um prédio da avenida Ataulfo de Paiva com a Bartolomeu Mitre, no Leblon. A menos de 10 metros dali ficava o Antonio’s, o restaurante dos malditos do Rio de Janeiro nos anos 60 e 70. Eram os boêmios, os adúlteros, os bêbados, os comunistas, os jornalistas indomesticáveis, os artistas censurados, os que em breve pegariam em armas. Imagino que todos eles se ofenderiam se alguém os acusasse de inocentes.
27_Em julho de 2016, na mesma época em que comecei a reparar em Não fui eu, fotografei num muro de Botafogo uma frase que não voltei a ver em nenhum outro lugar: Todo mundo é bom. Pouca gente se espantará com o fato de que essa não pegou, enquanto a outra, sim.
28_Li não sei onde que os recentes eventos políticos nos Estados Unidos – Black Lives Matter, Make America Great Again, #MeToo, #MarchForOurLives – são sintoma de que, lá, as pessoas estão negociando os termos de quem é poderoso. As notícias que têm chegado das periferias brasileiras, primeiro com o ingresso na universidade de quem nunca tinha pisado lá, depois com os eventos de 2013 e, agora, com o assassinato de Marielle Franco – fúria combativa, assertividade identitária e de classe, multiplicação de coletivos de arte e de mídia, articulações para criação de novos partidos políticos – sugerem que alguma coisa semelhante pode estar em curso por aqui.
Dependendo de onde se está, não é fácil reconhecer a movimentação. A distância social atrapalha. Além do quê, o processo é lento (até deixar de ser). A se confirmar, contudo, estaríamos diante de uma força oposta ao alheamento de Não fui eu. Que talvez nada disso se resolva sem convulsões é um fato com o qual teremos de lidar. Outro dia conheci uma frase de Shakespeare: “Um céu assim tão carregado não clareia sem uma tempestade.” Acho que é isso.
29_Tenho consciência de que a realidade que nos cerca é danada de complexa. E de que aquilo que o ensaísta e meu amigo Pedro Meira Monteiro chama de “a grande narrativa civilizacional nos trópicos” deriva do amálgama entre o melhor e o pior da nossa construção comum: criatividade e violência, mistura e intolerância, injustiça e festa. Ante essa visão de um paraíso colado ao inferno, ante essa geleia em que as partes nunca deixam de se interpenetrar, talvez fosse possível imaginar um escrito que dissesse o contrário deste aqui. Não fui eu como um comentário luminoso sobre o que deu certo entre nós: a alegria, o acolhimento, a invenção na precariedade. Talvez, mas não hoje. Por limitação dos tempos ou, possivelmente, apenas minha.
30_Não fui eu é um prodígio de forma. Três palavras, das mais elementares do idioma: o verbo mais comum – ser –, o primeiro pronome – eu –, o advérbio fundamental – não. Fosse matemática, seriam números primos, aqueles na base de todo o resto. Talvez seja difícil expressar com maior concisão o contrato que firmamos com o país. Enquanto a verdade que a frase traduz nos disser respeito, a história por aqui será o que é: uma coisa que se move, mas não avança.
Leia Mais