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A próxima jogada

Eu e duzentas milhões de pessoas sabemos que nada muda em nosso futebol sem a anuência da Globo – desproporcional força alcançada devido a uma bem urdida combinação entre influência política e profissionalismo, só que às vezes a coisa desanda. Duvido muito que, em qualquer outro lugar do planeta, jogos oficiais de futebol comecem às dez horas da noite, apenas para não atrapalhar a programação de uma emissora de tevê.

| 23 jul 2014_12h17
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Na noite anterior ao anúncio oficial do novo técnico, o Jornal Nacional pôs no ar entrevistas com os principais comentaristas de futebol da emissora. A impressão que tive foi a de que se produziu uma edição tendenciosa – de resto, coisa de péssima lembrança –, em que as opiniões de todos eram positivas. O ex-jogador Roger chegou a declarar que Dunga “tem a cara da seleção brasileira”. E eu, tolinho, achando que quem tinha a cara da seleção brasileira era o Pelé, o Garrincha, o Nilton Santos, o Gérson, o Romário, o Ronaldo, o Rivaldo.

Ontem o UOL publicou um artigo com várias declarações sobre a escolha da CBF. Casagrande disse o seguinte: “Em 2002 era o Felipão; 2006 era o Parreira; depois o Dunga e não deu certo; agora o Felipão e o Parreira de novo; e então o Dunga. É aquele cachorro que corre atrás do rabo: fica girando, girando e não sai dali.” Bem diferente do que ele falou sobre Dunga no Jornal Nacional: “Eu acho que ele tem capacidade pra fazer um bom trabalho. Eu acho que ele não vai cometer os mesmos erros que ele cometeu em 2010. Então eu espero que o Dunga consiga fazer uma estrutura no futebol brasileiro, fazer uma mudança geral, desde as categorias de base.” Algo aí não bate.

Outra coisa gritante nas matérias veiculadas pela Globo: a inclusão em todas elas, sem exceção, da frase “ele aprendeu com os erros de 2010”. Mas, com quais erros, caras pálidas? Ele aprendeu que, numa seleção de futebol, grupo fechado é um atraso? Que não é possível convocar jogadores pelo critério do fundamentalismo? Que não dá para levar a uma Copa do Mundo quem jogue o que jogavam, em 2010, Gilberto Silva, Kléberson, Josué, Júlio Baptista, Grafite? E onde foi exatamente que Dunga demonstrou ter aprendido tudo isso, já que sua única experiência como treinador, após a demissão, foram os tais dez meses no comando do Inter? A sensação que tenho – e não há de ser só minha – é a de que o que Dunga aprendeu foi que todos os órgãos de imprensa são iguais, mas a Globo é bem mais igual que a concorrência.

Daí: será que Marin & Del Nero acertaram os ponteiros de Dunga com a Globo? Ou, ao contrário, será que a Globo percebeu que a vaca está indo solenemente para o brejo, com a percepção consolidada de que o futebol está nas mãos de empresários, estádios semidesertos, partidas de péssima qualidade técnica, audiências despencando e quem gosta verdadeiramente do esporte se interessando muito mais por Barcelona, Bayern de Munique e Real Madrid do que por Flamengo, Vasco e Palmeiras? Será que a Globo olhou para tudo isso, disse chega, peitou a CBF e as duas trocaram de mal? Ou estão todos jogando para a plateia, num desmesurado esforço para não tirar um centimetro do lugar tudo o que precisa ser mudado urgentemente?

Quanto à última hipótese, custo a crer que a Globo esteja entrando de gaiata nesse navio. Como toda empresa grande, planejada e bem-sucedida, ela sabe que não pode se contentar com os lucros que o futebol dará em 2014. Há que se pensar a longo prazo. E apesar da roubalheira fora de campo e da desilusão dentro dele, a Copa do Mundo provou que o futebol é capaz de arrebatar públicos, audiências e investimentos de mídia de um jeito que, pelo menos no Brasil, só ele é capaz de fazer. Matar essa galinha dos ovos de ouro, como cansava de dizer João Saldanha, representaria uma falta de visão que não combina com a maior empresa de comunicação do país.

Eu e duzentas milhões de pessoas sabemos que nada muda em nosso futebol sem a anuência da Globo – desproporcional força alcançada devido a uma bem urdida união entre influência política e profissionalismo, só que às vezes a coisa desanda. Duvido muito que, em qualquer outro lugar do planeta, jogos oficiais de futebol comecem às dez horas da noite, apenas para não atrapalhar a programação de uma emissora de tevê. O diretor executivo de Esportes da Globo, Marcelo Campos Pinto, é reconhecidamente um dos homens mais poderosos do futebol brasileiro.

Mas é aí que a porca torce o rabo. Por que, diante de tantas nulidades semelhantes e disponíveis no mercado, a CBF foi escolher logo o cara que ousou desafiar a Globo? Que chamou um dos queridinhos da emissora de frouxo e cagão? Que obrigou seu substituto, Mano Menezes, a passar pelo maior constrangimento que eu já vi em um treinador de futebol, quando resignadamente aceitou entregar uma camiseta da seleção a Alex Escobar, em desagravo pela atitude do técnico que o antecedera?

Poderia ser o Tite. Mas Tite tem ligações com o ex-presidente corintiano e atual adversário político da dupla Marin & Del Nero, Andrés Sanchez. Esqueça-se o Tite.

Poderia ser o Muricy. Mas Muricy fez uma enorme desfeita ao antigo (será mesmo?) chefe Ricardo Teixeira, ao não se empenhar de forma decisiva a fim de que o Fluminense o liberasse para assumir o comando técnico da seleção, após a queda de Dunga em 2010.

Poderia ser alguém de fora. Mas, na boa, Guardiola, Mourinho, Van Gaal, Manuel Pellegrini, Simeone, Bielsa, Sampaoli, qualquer um desses caras viria sem um contrato que lhes garantisse autonomia e independência, o que se chocaria com o absolutismo dos que dirigem o nosso futebol?

É verdade que a escolha de treinadores por Marin & Del Nero tem desobedecido aos mais simplórios critérios de recrutamento. Os últimos anos do currículo do gaúcho de bigode apresentavam fracasso no Chelsea, uma temporada de trabalhos forçados no Uzsbequistão e o encaminhamento do Palmeiras à segunda divisão. Mesmo assim, foi o escolhido. Agora, Dunga, comandante de duas experiências discutíveis: o selecionado brasileiro pós-caos de 2006 e dez meses de Internacional. Currículo aceitável para quem quisesse dirigir a seleção venezuelana – o que parecia ser o destino de Dunga antes de mais esse desvario mariniano.

Por outro lado, se Dunga saiu do cantinho do pensamento prometendo se comportar para ter direito ao pirulito do cargo, deixará órfãos os que não se conformam com a ausência do bedel raivoso da Copa na África do Sul. (E lá vamos nós, com nossa memória tão curta, já esquecendo o despojamento dos alemães no sul da Bahia e a escancarada alegria dos holandeses no Rio de Janeiro. Nosso futebol precisa de um monte de coisas, mas não de bedéis.) 

Além disso, nosso novo treinador será obrigado a conviver, mais uma vez, com um problema que ele mesmo ajudou a criar: a incoerência inerente ao conceito do futebol de resultados. Quando o cara é técnico da seleção brasileira e apregoa o futebol de resultados, não há escolha. Tem de ganhar. E não adianta ninguém vir com esse papo de que foram não sei quantos jogos, com tantas vitórias, tantos empates e tão poucas derrotas. Se jogar 60 vezes, vencer 59 e perder a final da Copa, um abraço. Quem pariu a baboseira do futebol de resultados que o embale.

Nos anos oitenta, na pele do repórter-personagem Ernesto Varela, Marcelo Tas fez algumas das mais desconcertantes entrevistas da televisão brasileira. Sempre acompanhado de seu câmera Valdeci – na verdade, Fernando Meirelles, cerca de vinte anos antes de Cidade de Deus –, Varela marcou época. Na última pergunta de uma tensa matéria com o então deputado estadual por São Paulo e vice-presidente da CBF, Nabi Abi Chedid, o atrevido personagem mandou na lata: “Qual é a sua próxima jogada?” Quase apanhou.

Para entender o embrulho todo, só vejo uma saída: que Marcelo Tas reencarne Ernesto Varela e enquadre, um por um, todos os personagens desse intrincado jogo de suposições e interesses com a pergunta que entrou para a história: qual é a sua próxima jogada?

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