Os estaduais agonizam mas não morrem
Domingo, depois do almoço, estava lendo a matéria “Sorriso de monge, carteira de yuppie”, feita por Nathan Heller para a revista The New Yorker, traduzida por Sergio Flaksman e publicada na última edição da piauí. O texto trata dos estilos de vida e modelos de negócios na cidade de São Francisco, Califórnia. Dei uma parada na leitura para ver a estreia do Flamengo no campeonato estadual e, juntando as duas coisas, me veio o estalo de lançar uma startup oferecendo um produto inovador, desprovido de química e certeiro contra os males da insônia. A ideia é montar uma coleção de blu-rays e DVDs com jogos do campeonato carioca, deixando a escolha do remédio ao livre-arbítrio do consumidor.
Domingo, depois do almoço, estava lendo a matéria “Sorriso de monge, carteira de yuppie”, feita por Nathan Heller para a revista , traduzida por Sergio Flaksman e publicada na última edição da piauí. O texto trata dos estilos de vida e modelos de negócios na cidade de São Francisco, Califórnia. Dei uma parada na leitura para ver a estreia do Flamengo no campeonato estadual e, juntando as duas coisas, me veio o estalo de lançar uma startup oferecendo um produto inovador, desprovido de química e certeiro contra os males da insônia. A ideia é montar uma coleção de blu-rays e DVDs com jogos do campeonato carioca, deixando a escolha do remédio ao livre-arbítrio do consumidor. Torce para o Flamengo e quer dormir assistindo a uma partida do adversário? Leve Vasco da Gama x Boavista. Prefere adormecer vendo seu próprio time em campo? Flamengo x Audax. Ou quer um jogo horroroso mas com muitos gols – o que quase sempre é confundido com jogo bom? Pois temos aqui um Fluminense x Madureira saindo do forno.
A ideia é simples, sei, mas o que dizer do alfinete, dos clips e do post-it? De qualquer forma, está lançada e aguardo aportes financeiros. Investidores anjos são bem-vindos. Crowdfunding pode ser uma saída.
Campeonato estadual é que nem o belo samba de Nelson Sargento. "Agoniza mas não morre, alguém sempre te socorre, antes do suspiro derradeiro". Mas dá dó.
Ao contrário do que aconteceu na Europa, nosso futebol foi alimentado pelas rivalidades entre vizinhos. Lá, poucas cidades têm mais de um time de peso. Milão, Roma, Londres, Manchester, Lisboa e Madri, essa última não apenas pela ressurreição do Atlético na atual temporada, mas, sobretudo, por causa da apaixonada torcida do clube. (Vale a pena dar uma olhada nesse vídeo.) De qualquer modo, mesmo em Madri a rixa maior fica por conta dos times de duas cidades – Real Madrid e Barcelona.
Já no Brasil tudo sempre foi de outro jeito. Igual a qualquer pessoa da minha geração, comecei a gostar de futebol por causa da paixão que os campeonatos estaduais provocavam e de muitos dos seus momentos inesquecíveis – tanto para o bem como para o mal. Mas as coisas mudam, a fila anda e já que não conseguimos encontrar uma fórmula capaz de devolver aos estaduais o interesse e a importância que tinham, parece não haver luz no fim do túnel. Há cerca de três anos vi uma reportagem com Rogério Ceni, no canal SporTV, em que o capitão do São Paulo dizia que, se dependesse dele, só jogava a Libertadores e o Campeonato Brasileiro. A partida em que o Botafogo garantiu o título carioca de 2013, derrotando o Fluminense por um a zero, foi disputada em Volta Redonda, diante de 15.500 pessoas. Está na hora de desligar os aparelhos.
Tudo leva a crer que os estaduais só não acabam devido aos interesses das federações, mas parece que os grandes clubes também não estão lá tão dispostos a mudar o rumo dessa prosa. Em texto publicado recentemente no ótimo Urublog, Arthur Muhlenberg afirma que “torcida tem idade mental de uma criança de 3 anos”. E o raciocínio de Muhlenberg nos leva a outro: o estadual é o jeito simples e seguro de iludir a criançada. Enquanto os torcedores fizerem festa e cantarem que o campeão voltou, só porque o Vasco esmagou o Nova Iguaçu ou o São Paulo goleou o Penapolense, vai ficar fácil fingir que o clube contratou bem, que o time está tinindo e que ganhar as três primeiras rodadas, alcançando os risíveis 100% de aproveitamento, é uma façanha.
Entretanto, a abertura do estadual do Rio nos trouxe uma boa notícia: a volta do atacante Michael, do Fluminense, que teve reduzida de 16 para 8 meses sua suspensão por uso de cocaína. Vi Michael jogar poucas vezes e, apesar de esperto e objetivo, não me pareceu que dali sairá um centroavante extraordinário. Nesse caso, pouco importa.
Temos vários exemplos de que os nossos clubes, sempre abarrotados de professores, médicos, psicólogos e o escambau, não levam o menor jeito para lidar com dependência química. Penso que está claro para todos que Flamengo e Corinthians não fizeram grandes coisas para ajudar Adriano. Quando Jobson jogava no Botafogo, Romário chegou a declarar que ele merecia uma chance em nossa seleção. Da última vez que foi visto em público, em terras brasileiras, Jobson estava criando confusão na acanhada delegacia aqui de São Caetano. Semana passada saiu a notícia de que o ex-atacante vascaíno Valdiram fora dispensado do Comercial de Viçosa, Alagoas, porque tivera uma recaída em sua dependência e era suspeito de furtar o iPhone de um companheiro de time. Em 2008 o Fluminense contratou o meia-atacante pernambucano Ciel. Levava jeito, tinha boa técnica e batia bem na bola, mas sofria de alcoolismo, pouco se fez por ele, foi dispensado, sumiu.
O pior é que, apesar de todos nós termos casos de dependência química entre amigos ou familiares ou colegas de profissão ou conhecidos, sempre que vem à tona algo semelhante com um jogador de futebol os torcedores não perdoam – o que é compreensível para quem tem idade mental de 3 anos –, tampouco boa parte da imprensa. Vi muita gente aqui em São Paulo chamar Adriano de moleque e vagabundo, na passagem do imperador pelo Corinthians. Pois em vez de tratar Michael como moleque ou vagabundo, coisa que nenhum desses caras é, o Fluminense o está tratando como doente – o que todos eles são.
Mesmo que os jogos aconteçam em gramados feios como o de Moça Bonita ou que o irretocável tapete do Maraca receba uma pelada estupefaciente como foi Flamengo e Audax, a volta de Michael compensa. Embora, para o campeonato em si, continue valendo a letra de Agoniza mas não morre. “Mudaram toda a sua estrutura / Te impuseram outra cultura / E você não percebeu.”
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí