Injustiçados
Carioca, torcedor do Flamengo e morando há mais de oito anos em São Caetano do Sul, tenho dificuldade para compreender a idolatria dos corintianos por Marcelinho Carioca. Bom jogador, sem dúvida, conquistou títulos importantes com o Corinthians, mas já vi amigos paulistanos considerá-lo, exageradamente, um dos grandes injustiçados da história das seleções brasileiras. E a partir do momento em que isto é posto, todos passam a procurar explicações para o que não precisa ser explicado.
A última semana foi enriquecedora. Graças ao movimento , agora sei que, aqui no Brasil, biografias vendem uma barbaridade e biógrafos vivem à tripa forra. Assim, depois de algumas décadas de precariado e pindaíba, creio ter encontrado a fórmula da fortuna.
Devido à importância que ele teve – pelo menos lá em casa –, vou escrever a biografia do meu pai. E se algum parente quiser processar a editora, tanto melhor: fazemos um arranjo e nos locupletamos todos. Para poupar trabalho, já adianto pelo menos dois motivos capazes de sustentar a reclamação jurídica. 1) O evidente prejuízo de imagem causado pela revelação de que, embora médico, o biografado fumava três maços de Petit Londrinos por dia, o que o levou a morrer de enfisema. 2) Trata-se de inaceitável invasão de privacidade escancarar ao mundo que o Dr. Antônio Cláudio Murtinho levou bomba logo no primeiro ano do curso de medicina, por varar noites no Cassino da Urca em época de provas, e o que é pior: um de seus companheiros de farra era o professor que o reprovou. É causa ganha.
O que isso tem a ver com um blog sobre futebol? Bom, usando o codinome de Mosquito, meu pai chegou a jogar na ponta-direita do Fluminense, só que casou, precisava ganhar algum dinheiro e desistiu de vez quando foi atropelado, passando a mancar levemente. (Sim, o biografado conseguiu ser atropelado na década de quarenta, mas fiquem tranquilos: não há perna mecânica na história.)
Deixemos de digressões e, sem engavetar o milionário projeto da biografia, vamos voltar ao nosso tema. Meu pai médico me lembrou Afonsinho, meio-campista do Botafogo no final dos anos sessenta. Eu morava perto do estádio de General Severiano, e um dos programas da molecada que gostava de futebol era assistir aos treinos daquele timaço. Entre os titulares, Gérson, Paulo César, Jairzinho, Roberto, Rogério, Leônidas. Entre os reservas, um ótimo meio-campo formado por Nei Conceição e Afonsinho. Estudante de medicina, cabeludo, barbudo e articulado, Afonsinho não era bem-visto por técnicos e clubes, que sempre preferiram cordeiros e cortes de cabelo no estilo Príncipe Danilo. Brigou com Zagallo, o então treinador do Botafogo que não o engolia, saiu, passou por Vasco, Flamengo, Santos, Fluminense, e liderou um dos melhores times pequenos da história do futebol carioca, o Olaria de 1971. No campeonato estadual daquele ano, já nos acréscimos de um dos jogos contra o Botafogo, o placar estava zero a zero e o Olaria começou a tocar bola. Num gesto de ironia coletiva, os botafoguenses recuaram todos para seu próprio campo e passaram a bater palmas. Quando o juiz encerrou a partida, perguntaram a Afonsinho o que achara da atitude do adversário e ele respondeu com uma frase que virou bordão: “É isso aí. Quem sabe, sabe; quem não sabe, bate palma.” Contemporâneo de Gérson, Rivelino, Dirceu Lopes e Ademir da Guia, Afonsinho era muito bom de bola mas não teve chance na seleção brasileira, o que várias vezes foi atribuído à sua personalidade forte e aumentou-lhe a fama de injustiçado.
Se a medicina liga meu pai a Afonsinho, as supostas injustiças em termos de seleção ligam Afonsinho a Marcelinho Carioca, que na semana passada foi ao programa Agora é tarde, de Danilo Gentili, onde explicou sua ausência em Copas do Mundo por duas razões: a don-juânica disputa entre ele e Vanderlei Luxemburgo pelos carinhos de uma bela moça, e o fato de que ele, Marcelinho, pregava certas coisas e dentro de campo fazia outras. A primeira justificativa, além de mostrar a tola intenção de forjar fama de pegador, é uma bobagem: Vanderlei jamais dirigiu a seleção brasileira em Copas do Mundo, e nas competições em que o próprio Marcelinho se considerava apto a encarar a amarelinha – 1994, 1998 e 2002 – os treinadores foram Parreira, Zagallo e Felipão. A segunda explicação pode até ter um fundo de verdade, mas também não é motivo. Marcelinho Carioca chegou a atuar com uma bandana que glorificava Jesus, mas, como todo jogador de futebol que se preza, dava cotoveladas, simulava faltas, pedia escanteio mesmo sabendo que fora o último a tocar na bola. Ou seja: atitudes com as quais Jesus não compactuaria e que fazem do tal fair play uma aborrecida hipocrisia.
Carioca, torcedor do Flamengo e morando há mais de oito anos em São Caetano do Sul, tenho dificuldade paracompreender a idolatria dos corintianos por Marcelinho Carioca. Bom jogador, sem dúvida, conquistou títulos importantes com o Corinthians, mas já vi amigos paulistanos considerá-lo, exageradamente, um dos grandes injustiçados da história das seleções brasileiras. E a partir do momento em que isto é posto, todos passam a procurar explicações para o que não precisa ser explicado.
Da mesma forma que não dá pra dizer que meu pai só não jogou na seleção porque foi atropelado, não é verdade que Afonsinho tenha sido preterido por conta de seu espírito rebelde e que Marcelinho Carioca não disputou Copas do Mundo por ser mais sedutor que Luxemburgo. A explicação nos dois casos é bem mais simples: tinha gente melhor.
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