Homem de referência
Apesar de muitas resistências, está em curso no Brasil – a partir da observação de como vêm sendo escalados os melhores times do mundo – uma justa e tardia campanha contra volantes que não sabem jogar bola. Creio que está mais do que na hora de ampliarmos esse movimento e deslocá-lo para o comando do ataque.
Não será fácil, e o primeiro passo é dobrar a teimosia de técnicos e comentaristas que não vivem sem o bendito fulano que empurra a bola pra dentro.
Na caixa de comentários do post , publicado em 2 de setembro, o leitor Lucas Alves discordou da minha preferência pelo centroavante André numa comparação com Marcelo Moreno. Além de ser um reflexo da pobreza técnica que se instalou na Gávea e em São Januário, essa é uma discussão que alimenta o chavão do seis por meia dúzia. André enganou muita gente – eu, por exemplo – quando fez parte do time empolgante que o Santos montou no primeiro semestre de 2010. Ali, até os reservas Zé Love, Madson e Marquinhos jogavam bola. Quanto a Marcelo Moreno, esse nunca me enganou.
Na resposta ao comentário do Lucas, me comprometi em publicar um post tratando da minha aversão ao tipo de jogador que já foi chamado de “poste”, de “bonde” e que hoje atende pelo elegante nome de “homem de referência”. Ou seja: a discussão sobre André e Marcelo Moreno é triste, mas pode originar uma outra bem mais bacana.
Como não sou bobo nem nada, achei prudente recorrer ao auxílio luxuoso de um dos caras que melhor jogou futebol no Brasil e que é hoje um dos que melhor escreve sobre futebol no Brasil. Assim, abro o debate com quatro toques rápidos do grande Tostão, pinçados de seus textos na Folha de S.Paulo:
“Nesta semana escutei, mais uma vez, que a seleção jogou bem e ganhou a Copa das Confederações porque Felipão escalou um típico centroavante. O importante não foi ter um típico centroavante, e sim um ótimo centroavante, Fred.”
“Todo time precisa de um centroavante, o que não significa que tenha de ser, obrigatoriamente, alto, forte, estático e só para fazer gols. Messi não é um falso centroavante. É o centroavante do Barcelona, por jogar mais adiantado e pelo centro.”
“Quase todos os centroavantes fazem muitos gols, até Fernando Torres.”
“Há tempos defendo a tese, com ironia e seriedade, de que, se colocar de centroavante um zagueiro grandalhão, alto e forte, ele também vai fazer muitos gols.”
Depois que Tostão me colocou quatro vezes na cara do gol, fica fácil empurrar a bola pra dentro. Mas como promessa é dívida, vamos lá.
Às vésperas da decisão do Campeonato Brasileiro de 2000, entre Vasco e São Caetano, um repórter do jornal O Globo entrevistou Romário. O Baixinho elogiou o Azulão e citou três jogadores como destaques: o lateral César, o volante Claudecir e o meia Esquerdinha. O repórter provocou: E o Adhemar? Resposta curta e grossa: Chuta forte, né?
Adhemar era o centroavante do São Caetano que chutava uma barbaridade, e só. Tinha feito gols importantes na campanha, sempre com chutes violentos de fora da área e cobranças de falta de longa distância. Só que, na cabeça do Romário, era óbvio: se o cara não se mexe, não procura o companheiro melhor colocado e não tem malícia dentro da área, não pode ser tão difícil assim neutralizá-lo. Dito e feito. O primeiro jogo, no Palestra Itália, terminou um a um, e quem fez o gol do São Caetano foi César. Bem marcado por Odvan e Júnior Baiano, Adhemar não viu a cor da bola. O jogo que decidiu o campeonato, disputado no Maracanã, terminou três a um para o Vasco, e quem fez o gol do São Caetano foi Adãozinho. Adhemar não viu a cor da bola.
Se pegarmos a lista dos artilheiros do Campeonato Brasileiro na era dos pontos corridos, teremos surpresas. Ao lado de gente muito boa (Adriano, Diego Tardelli, Fred), aparecem alguns corpos estranhos (Dimba, Souza, Josiel). Com a pulverização dos gols assinalados pelo ultraofensivo Cruzeiro, despontam na artilharia do atual Brasileirão excentricidades como William, Fernandão e Hernane. Se um dos três jogasse no time mineiro, será que o líder disparado do campeonato criaria tantas oportunidades como tem feito? O que é melhor: ter um cara que faz gol quando a bola sobra, ou um que se movimenta com inteligência, confunde a zaga e sabe servir os companheiros?
Apesar de muitas resistências, está em curso no Brasil – a partir da observação de como vêm sendo escalados os melhores times do mundo – uma justa e tardia campanha contra volantes que não sabem jogar bola. Creio que está mais do que na hora de ampliarmos esse movimento e deslocá-lo para o comando do ataque.
Não será fácil, e o primeiro passo é dobrar a teimosia de técnicos e comentaristas que não vivem sem o bendito fulano que empurra a bola pra dentro. É inacreditável que profissionais do futebol não consigam perceber como esse tipo de jogador prejudica um time: pra ele aproveitar a chance de gol que aparece, dezenas de outras deixam de ser criadas, devido à falta de mobilidade e ao desprezo pela atuação coletiva. Entretanto, a gente cansa de ver comentaristas defendendo a inoperância dessas figuras, com o tolo argumento de que “a bola não está chegando”.
Ora, se a bola não chega, corra atrás dela. Saia da área, caia pra direita e pra esquerda, busque o jogo, confunda a marcação, abra espaço, inverta com o meia, faça tabelas, prepare jogadas. Era isso o que faziam – além de muitos gols, claro – os melhores centroavantes brasileiros que vi em campo: Careca, Reinaldo, Roberto Dinamite, Romário e Ronaldo Fenômeno.
Um cara grosso, que quase sempre mata na canela e atrapalha o andamento das jogadas, é um estorvo para seu time e um inimigo da bola. Se gostasse dela, não a maltrataria tanto.
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