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    Ilustração: Carvall

questões jurídico-políticas

STJ mira na cabecinha de Witzel

Afastamento do governador do Rio precisa ser lido com as lentes da politização das instâncias da cúpula do sistema de Justiça

Rafael Mafei | 28 ago 2020_18h04
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De onde vem o fundamento para que um magistrado, sozinho, afaste um governador do exercício de suas funções, como aconteceu hoje com Wilson Witzel? Peço perdão pela circularidade: o fundamento vem dos próprios magistrados.

A Constituição de 1988 sonhou um futuro maior para a política dos estados. O regime jurídico imposto pela ditadura iniciada em 1964 havia tolhido grande parte da autonomia da política local, inclusive em nível constitucional: a emenda constitucional 1 de 1969, promulgada pela trinca de ministros militares que tocava o Brasil após o AVC de Costa e Silva, determinou, sem prévio aviso, a incorporação de uma série de dispositivos às constituições dos estados; governadores eram afastados e fugiam para o exílio; deputados estaduais foram cassados, presos ou mortos. Mesmo antes de 1964, era frequente o recurso à intervenção federal nos estados, para pôr ordem na casa em casos de conflitos persistentes entre facções políticas locais.

A atual Constituição deu aos estados liberdade para que aprovassem suas constituições, devendo apenas respeitar os princípios estabelecidos na carta federal. O Rio de Janeiro aprovou a sua em 1989. Nela está dito que governadores podem ser suspensos do cargo quando se tornarem réus – isto é, quando forem recebidas denúncias contra eles – em processos por crimes comuns ou de responsabilidade. Não é o caso, até o momento do fechamento deste texto, do governador Witzel: tanto seu impeachment quanto seu processo criminal estão em fases preliminares. Não é, portanto, o disposto na Constituição do Rio de Janeiro, a norma específica vigente sobre o tema, que fundamenta o afastamento determinado hoje pelo ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A decisão do ministro Gonçalves foi tomada por ele, isoladamente – é o que se chama de “decisão monocrática”. Em tribunais superiores, decisões individuais de ministros foram concebidas para ser exceção, mas tornaram-se a regra. No Supremo Tribunal Federal (STF), chegam à impressionante proporção de nove de cada dez decisões da corte. Em casos de medidas cautelares penais, há previsão no regimento das Casas para que o relator as tome sozinho, mas, em hipóteses de tamanha sensibilidade política, era de se esperar ao menos a cautela de uma decisão colegiada. A menos, claro, que o ministro Gonçalves queira colher monocraticamente os louros pelo duro golpe em Witzel. Na temporada de corrida escancarada pela preferência de Bolsonaro à próxima indicação ao STF, nada recomenda que se ignore essa hipótese.

A ordem invocou o artigo do Código de Processo Penal que permite a juízes impor medidas cautelares com o objetivo de impedir a continuidade de crimes, ou garantir a eficácia do resultado final do processo. A norma do código, no entanto, é genérica: permite a suspensão do exercício de funções públicas em geral e seguramente não foi pensada para casos com os de presidentes e governadores. Afinal, há normas específicas para eles, que estão previstas na Constituição federal, na lei do impeachment (que se aplica a governadores) e, eventualmente, nas constituições estaduais, como é o caso do Rio de Janeiro. A excepcionalidade se explica pela característica particular da legitimação dessas funções, cujo exercício pressupõe o amparo em milhões de votos. É razoável que o direito diferencie esses agentes políticos do restante dos funcionários públicos.

Em 2017, o STF decidiu um conjunto de ações diretas de inconstitucionalidade, nas quais eram impugnados dispositivos das constituições de diversos estados, inclusive do Rio de Janeiro, que espelhavam, para governadores, as proteções que a Constituição federal confere ao presidente da República. Uma delas exigia a prévia autorização das assembleias legislativas para a abertura de processo de impeachment contra o governador.

O Supremo decidiu que esses dispositivos eram inconstitucionais, entendendo que eles constituem prerrogativa de chefe de Estado, e que portanto são exclusivos do presidente. O Supremo errou, pois não é um atributo de soberania que explica a proteção. Trata-se de uma salvaguarda contra perseguições judiciais que é tão sensata para presidentes quanto para governadores: é prerrogativa de chefia de governo, não de Estado, que decorre do princípio da separação de poderes, que inequivocamente se espelha ao nível dos estados. Se hoje o cuidado nos parece excessivo, o contexto de trinta anos atrás, quando foram feitas as constituições, o justificava: na ditadura militar de 1964-85, a perseguição a opositores políticos foi em boa medida judicializada. 

Nesses mesmos julgados, o tribunal decidiu que o Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe o julgamento de governadores em ações penais, poderia também “dispor, fundamentadamente, sobre a aplicação de medidas cautelares penais, inclusive afastamento do cargo”. Não é um entendimento esdrúxulo, mas caberia ao menos a ressalva de que a cautelar de afastamento não estaria à disposição quando houver disciplina jurídica específica que a regulamente, como é o caso do presidente e de boa parte dos governadores.

A decisão relativa à Constituição do Rio de Janeiro foi tomada em 2017, época em que o Judiciário, capitaneado pelo próprio STF, enxergou-se investido de poderes relativos à classe política que até então ninguém havia se dado conta de que ele tinha. Poderes que decorriam de cláusulas abertas, como o princípio da moralidade e o princípio republicano, mas que negavam outras cláusulas abertas igualmente constitucionais, como a separação de poderes. Esses poderes autoconferidos permitiram ao tribunal mandar prender um senador em um estado de flagrância duvidoso, para não dizer inventado; ou afastar, em medida cautelar semelhante à de Witzel, o presidente da Câmara dos Deputados – entendimento do qual o tribunal foi forçado a recuar pouco tempo depois, quando tentou tirar Renan Calheiros da presidência do Senado. 

Em casos dessa natureza, nos quais proteções legislativas contra o Judiciário estavam em questão, o tribunal costumava dizer que agia com o propósito de “densificar a soberania popular”. Estranho esse modo de densificação da soberania, em que as autoridades diretamente escolhidas pela única entidade política interna a quem a constituição chama de soberana – o povo – são relativamente enfraquecidas perante juízes, à luz de poderes que eles foram atribuindo a si próprios por meio de jurisprudência crescentemente intervencionista em relação a agentes políticos.

A leitura do afastamento de Witzel não pode se limitar, por isso, à interpretação deste ou daquele dispositivo do Código de Processo Penal, desta ou daquela linha de uma ou outra decisão recente do Supremo Tribunal Federal. Ela há de ser contemplada, também, pelas lentes da politização da Justiça, e em especial das instâncias de cúpula do sistema de justiça.

Em primeiro lugar, quanto à PGR, a hipótese é tão óbvia que quase carece de ser enunciada: Augusto Aras é tido por todos como candidato a ministro do STF. É corrente a interpretação de que ele usa os poderes de seu cargo para demonstrar afinidade, para não dizer subserviência, aos interesses jurídicos de curto prazo da família Bolsonaro e de seus aliados. Seria de se estranhar se ele não mirasse na cabecinha de Witzel, adversário declarado do presidente que escolherá, em pouco tempo, o sucessor de Celso de Mello.

Para o ministro Benedito Gonçalves, os estímulos apontam todos para o uso ambicioso dos poderes cautelares que lhe foram conferidos pelo Supremo Tribunal Federal. Em 2016, Gonçalves foi apontado – até onde se sabe, impropriamente – por um dos delatores da Lava Jato como um dos ministros do STJ que supostamente favoreciam uma empreiteira corrupta. Para quem eventualmente almeje voos maiores, qualquer imagem de leniência com políticos corruptos seria fatal. A relatoria de um caso notório de corrupção, como este de Witzel, com a possibilidade que ela traz para a tomada de decisões individuais duras e combativas, pode ajudá-lo a projetar uma imagem renovada de si próprio em relação a esse tema. De quebra, ainda agrada a Bolsonaro. Não há, porém, nada que indique que esse cálculo tenha passado pela decisão do ministro Gonçalves. A especulação se fundamenta apenas na analogia com seu colega de tribunal, o ministro João Otávio de Noronha, que parece disputar com Aras e com o ministro da Justiça, André Mendonça, uma corrida de agrados à família presidencial. 

Já do ponto de vista do Judiciário como um todo, medidas duras tomadas contra políticos percebidos como corruptos funcionam como um mecanismo de lavagem de reputação institucional. Além de constrangimentos vexatórios no varejo, como o desembargador que falava francês ou a decisão que concluiu pelo pertencimento a organização criminosa “em razão da raça” do acusado, o Judiciário (como muitas outras instituições das carreiras públicas de elite) padece de evidentes déficits republicanos enquanto instituição: é elitizado em sua composição social; é racista em sua composição étnica; é sexista em seus critérios de promoção, haja vista o óbvio desequilíbrio de gênero em seus órgãos de cúpula; é privilegiado do ponto de vista de sua remuneração; e é pouco republicano não apenas em sua incapacidade atávica de respeitar as regras constitucionais para limites de remuneração da carreira, como também na sua disposição de se valer de meios sujos, como liminares que ficam escondidas na gaveta de seus relatores no STF, para garantir penduricalhos ilegais por anos. Nessas circunstâncias, talvez seja pedir demais a aplicação do direito em favor de políticos corruptos, os suspeitos e acusados a quem mais amamos odiar.

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