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    Desde o final de setembro, a PGR está sob o comando interino de Elizeta Ramos, que tem agora a oportunidade de se mostrar alinhada ao governo Lula Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

questões jurídico-políticas

Bolsonaro está na mira – e, desta vez, a PGR pode não ser tão amigável

Enquadrado pela CPI do 8 de janeiro, o ex-presidente não conta mais com a proteção de Augusto Aras. Talvez conheça, finalmente, o banco dos réus

Rafael Mafei | 18 out 2023_13h49
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A conclusão da CPI do 8 de janeiro, com a aprovação do relatório final nesta quarta-feira (18), marca mais um capítulo do acerto de contas entre as instituições democráticas e Jair Bolsonaro, juntamente com seu entorno político mais próximo. Independentemente dos efeitos jurídicos que venha a gerar, o relatório é, por si só, um importante ato solene, resultado de um mecanismo investigativo previsto na mesma Constituição que os golpistas tentaram solapar.

O documento, com suas 1.333 páginas, registra para a posteridade o projeto obstinado de degradação democrática levado a cabo pelo governo anterior, cujo ápice se deu em 8 de janeiro. Não se deve diminuir a importância desse feito. A responsabilização moral e histórica – isto é, uma instituição oficial dizer: “O que houve ali foi uma tentativa de golpe, urdida e tecida de forma deliberada por gente que traiu os cargos e funções que ocupavam” – tem grande valor, embora não substitua a responsabilização jurídica nem deva diminuir o ímpeto por ela.

Capitaneado pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA), o relatório se constrói a partir da conexão de acontecimentos que, hoje, passado o calor do momento, podemos ver como peças de um mosaico. O documento enumera os ataques às instituições de controle, sendo a principal delas o Supremo Tribunal Federal; a divulgação de mentiras sobre o processo eleitoral; a cooptação das instituições que monopolizam a violência estatal, como as Forças Armadas e as polícias; e as estratégias de comunicação que buscavam radicalizar pessoas e descredibilizar a imprensa. Todas essas peças serviam ao mesmo propósito: assegurar a permanência de Bolsonaro no poder, a qualquer custo.

Ao lado das conclusões da CPI da Covid, o relatório da CPI do 8 de janeiro ajuda a compor um juízo bíblico do governo Bolsonaro. Ambos funcionam como autos dos anos de um país que não esteve à deriva, mas sim preso a uma barca precária, arrastada por uma corredeira de golpismo da qual só se escapa com alguma sorte. 

Há, porém, uma importante diferença entre os produtos das duas comissões: o relatório de agora não cairá nas mãos de um inerte Augusto Aras – e, portanto, Bolsonaro não pode contar com um pronto arquivamento que o proteja do relatório desta comissão, diferentemente do que aconteceu em 2021.

 

Uma CPI não tem poder, ela própria, de indiciar alguém. Ela apenas indica à autoridade competente – no caso, o Ministério Público – as pessoas que, a seu juízo, devem ser responsabilizadas. O indiciamento é um ato formal no qual se enuncia que um certo crime aconteceu, e que há indícios suficientes de quem são os autores desse crime. Ao propor o indiciamento de Bolsonaro e outras sessenta pessoas – ex-ministros de seu governo, militares, assessores –, o relatório da CPI sugere dois caminhos: ou denunciam-se essas pessoas, caso o MP entenda que as investigações estão maduras para respaldar uma ação penal; ou aprofundam-se as investigações, para que fiquem claras as responsabilidades individuais de cada um deles. Caso o segundo cenário venha a se concretizar, o relatório da CPI, bem como as provas por ela coletadas, devem ser anexadas a outras investigações já em curso.

Bolsonaro, segundo a comissão, deve ser indiciado por quatro crimes: associação criminosa (art. 288 do Código Penal) pelo conluio entre ele, sua ajudância de ordens, militares (como o Exército) e civis (como a Polícia Rodoviária Federal) com o fim de cometer crimes contra o estado de direito; violência política (art. 359-P do Código Penal), porque a comissão entendeu que as blitze da PRF, no dia do segundo turno das eleições, equivalem a violência psicológica por razões políticas; e, por fim, a dobradinha golpe de Estado e abolição violenta do estado democrático de direito (359-M e 359-L do Código Penal), tipificações que se mostraram operantes nos primeiros julgamentos dos golpistas pelo STF.

Há algumas considerações a serem feitas. Primeiro, a caracterização do crime de violência política soa forçada. É difícil sustentar que as operações policiais no segundo turno das eleições configurem “violência psicológica”. O termo, em sua definição legal, diz respeito a atos que geram dano emocional, atacam a autoestima e visam controlar ações e decisões por meio da deterioração psicológica de alguém. Tipicamente, esse conceito é aplicado em casos de violência contra mulheres presas em relacionamentos abusivos. É preciso muita elasticidade metafórica – que não cabe na interpretação de tipos penais – para equiparar a conduta de Bolsonaro contra os eleitores nordestinos à de um marido tóxico. Faz mais sentido compreendê-la como parte de outras condutas, que configuram outros crimes já suficientemente graves, como os de golpe de Estado ou de abolição do estado de direito. Ou seja, são atitudes que continuam merecendo tratamento de crime, mas não como um delito à parte.

Se esses últimos dois crimes resultarem em denúncia, resta saber como a nova PGR se posicionará em relação ao argumento de que o crime de tentativa de golpe de Estado absorve o outro, de obstrução violenta ao funcionamento dos poderes constitucionais. Isso porque um golpe é, necessariamente, o impedimento violento ao funcionamento de ao menos um dos poderes constitucionais. Daí resultaria, portanto, a prática de um só crime. Nos primeiros julgamentos do 8 de janeiro, vimos que o STF, vencidos os ministros André Mendonça e Luís Roberto Barroso, acatou a tese da dupla incriminação, o que ajudou a elevar as penas dos condenados. Mas isso só foi possível porque a denúncia contra os primeiros réus, apresentada pelo subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, pediu condenações por ambos os crimes. A depender de quem vier a apresentar uma denúncia contra Bolsonaro, esse entendimento poderá mudar.

Uma futura acusação contra Bolsonaro, caso se confirme, vai renovar os debates sobre a punição de delitos nos quais autores poderosos, que pairam no topo de estruturas complexas de poder, valem-se de executores anônimos e fungíveis para praticar crimes em seu benefício. É uma discussão fundamental no caso do 8 de janeiro, em que uma tentativa de golpe foi executada por pessoas com quem Bolsonaro nunca teve contato direto, mas que seguiam sua agenda.

A senadora Eliziane Gama fez o possível para mostrar que os invasores eram engrenagens anônimas de uma máquina golpista, que servia inequivocamente aos interesses do ex-presidente. Essa engenhoca antidemocrática, argumenta o relatório, constituiu-se a partir de cargos governamentais, mas funcionava à margem deles, escapando, assim, de mecanismos de controle. Seu amálgama e sua estrutura não provinham de posições burocráticas, mas da omertá golpista-militar. Tratava-se, enfim, de uma organização criminosa, com diferenciação entre comandantes e executores, que operava como estrutura eficaz de poder, à margem do direito. Novamente, entrará em discussão a “teoria do domínio do fato”, que, de tão falada na época do julgamento do mensalão, por pouco não virou fantasia de Carnaval.

 

Os próximos capítulos estão na mão da PGR, que vive um momento de indefinição. Desde o final de setembro, quando Augusto Aras despediu-se do cargo, a procuradoria-geral está nas mãos de Elizeta Ramos. Ela é uma procuradora interina, e ficará na função até que uma indicação seja feita por Lula e aprovada pelo Senado.

A PGR não foi pensada para ser exercida a título precário. Sua independência só pode existir quando o procurador ou procuradora-geral está protegido por mandato estável. Do contrário, essa pessoa poderá se sentir estimulada a exercer a função de modo dócil e favorável ao governo, buscando permanecer no cargo. Bolsonaro foi ardiloso ao insinuar para Aras, desde o primeiro momento, que o procurador poderia ser indicado ao STF. Queria, com isso, obter sua complacência, e conseguiu. A condição interina de Elizeta Ramos pode criar uma situação similar, supondo que ela queira ser efetivada no cargo. O Planalto já deixou claro que essa é uma possibilidade.

Com a chegada do relatório da CPI, a procuradora-geral terá uma boa oportunidade de demonstrar alinhamento com o governo. Se é do interesse de Lula ver os golpistas no banco dos réus – e sabemos que é –, Bolsonaro talvez não tenha a mesma sorte que teve dois anos atrás, com o relatório da CPI da Covid, que morreu de tédio em alguma gaveta de Augusto Aras. O tratamento da PGR ao relatório do 8 de janeiro será o primeiro indicativo de como Elizeta Ramos deverá se posicionar, na seara penal, em relação à disputa política entre bolsonarismo e lulismo. 

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