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    Hugo Fernandes no cenário de destruição do Pantanal queimado Foto de Diego Viana / acervo pessoal Hugo Fernandes

diários do pantanal

O resgate da sucuri amarela

Expedição avança no Pantanal Norte e se depara com centenas de animais mortos pelo fogo

Hugo Fernandes | 01 out 2020_08h53
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Num cenário que descreve como apocalíptico, com o Pantanal destruído pelas queimadas, o biólogo Hugo Fernandes relata os dias mais difíceis até aqui em sua expedição pela região. A equipe encontrou animais mortos, queimados pelo fogo, e se deparou com a tristeza de uma comunidade na qual uma criança, filha de um brigadista, morreu afogada. A pedido da piauí, Fernandes, professor da Uece (Universidade Estadual do Ceará), relata nesses diários o dia a dia da viagem, iniciada no dia 21 de setembro, com uma passagem por uma área preservada, refúgio de onças-pintadas. Agora seu grupo está no Pantanal Norte, cercado pelo fogo. Neste quarto relato, marcado pela tristeza, uma única vitória: o resgate de uma sucuri amarela, espécie típica do Pantanal.

 

(Em depoimento a Fernanda da Escóssia)

 

Domingo, 27 de setembro

O dia em Corumbá, fora do campo, poderia ter servido para dormir bem. Não serviu. Tive que passar milhares de fotos para o HD, atender a imprensa, responder e-mails e mensagens. Fui dormir às 3h40 da manhã. Às 8 horas, o piloto Chico Boabaid me esperava na recepção. No voo, mais um cenário desolador. Além de inúmeros focos de incêndio, a fazenda Novos Dourados, que tivera o incêndio parcialmente controlado na noite anterior, estava encoberta por um lençol de fumaça. Meus amigos e os brigadistas me aguardavam. Não seria nada fácil. Pousamos na fazenda Acurizal, e um barco nos esperava. Cinquenta minutos de navegação respirando fumaça. No nosso destino final, uma operação de guerrilha: quinze bombeiros militares do Paraná, cinco do Mato Grosso do Sul, seis brigadistas voluntários e nove fuzileiros navais que estavam para chegar. Falei operação de guerrilha, mas deveria ser de guerra. Os brigadistas são guerreiros, heróis, sem dúvida. Mas o número era absolutamente inferior ao necessário. Precisávamos de um exército – ou, quem sabe, do Exército.

Segui com três colegas biólogos e uma médica veterinária, liderados pelo médico veterinário Diego Viana. Fomos para a linha de fogo tentar resgatar animais e estimar o que já havia sido perdido pelos incêndios. Fui de quadriciclo, que quase virou no meio do caminho e precisou vencer árvores caídas. Em uma lagoa seca, que há pouco tempo continha água, a cena lembrava um filme apocalíptico. Entre centenas de animais mortos, uma vitória importante: uma sucuri amarela, espécie praticamente exclusiva do Pantanal, foi encontrada viva. O contraste triste foi que encontramos várias outras mortas.

Depois da análise clínica da equipe de veterinários, pegamos um barco e soltamos a serpente no Rio São Lourenço. Sorrimos. Pequenas vitórias precisam ser comemoradas.

 

Uma sucuri morta pelo fogo, a equipe de biólogos e uma sucuri amarela viva, resgatada pela equipe e posteriormente devolvida à natureza | Fotos: Hugo Fernandes

 

Na volta, encontro o documentarista Lawrence Wahba, participante da expedição, na base de comando. Ao fim do dia, voltamos para a fazenda Acurizal. Um banho para tirar a fuligem e um pouco da tristeza. Amanhã seguiremos para Porto Jofre, no Pantanal Norte, última fase da nossa expedição.

 

Segunda, 28 de setembro

Às 6 horas o avião do Chico já funcionava. Nós nos despedimos do coronel Angelo Rabelo (presidente do Instituto Homem Pantaneiro) e apertamos nossas bagagens na minúscula cabine. Porto Jofre é um lugar muito especial. Foi lá onde eu vi minha primeira onça-pintada. Nossa pequena dose de alegria se esvaiu na metade do caminho: zero visibilidade. Não havia teto. Não havia condições de voo. Chico olha pra gente, com seus 47 anos de profissão, e fala: “Pessoal, não vai dar. A gente vai ter que voltar.” Pousamos na Acurizal, o coronel Rabelo quase de partida no seu barquinho, vê o avião pousando e retorna. Não sabíamos o que fazer. Tentamos voar a partir de Poconé, mas não havia visibilidade sequer na cabeceira da pista local. Todos os barcos da Acurizal e da Novos Dourados estavam empenhados no combate ao fogo. A solução veio três horas depois: no dia seguinte, partiríamos num barco do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) que viria buscar mantimentos e combustível.

Já que estávamos ali, não íamos ficar parados. Entramos em um dos barcos que estavam acompanhando os brigadistas para tentar fotografar mais animais atingidos pelo incêndio. O motor do barco quebrou e ficamos naufragados durante algum tempo. Após algumas gambiarras, conseguimos fazer com que o motor funcionasse muito vagarosamente até chegarmos a uma comunidade – e confesso que eu preferia não ter chegado ali. Foi a comunidade que assistiu à perda de uma criança de dois anos que havia morrido afogada dois dias antes. Menos de uma hora antes da nossa chegada, os bombeiros haviam encontrado finalmente o corpo da criança.

Aquilo nos abalou profundamente e ainda nos abala. Não dormimos direito e provavelmente não vamos conseguir dormir tão cedo. Das maiores tragédias da vida, a tragédia da perda de uma vida sem dúvida é a maior.

Voltamos para a fazenda Acurizal tristes, desolados e impotentes. Não conseguimos fazer nada que pudesse ajudar, seja o combate ao incêndio, seja o próximo. É um dia que eu quero esquecer.

 

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Leia os outros diários do Pantanal: A primeira onça, No rastro das onças-pintadas e “Agora eu cheguei ao inferno”

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