ILUSTRAÇÃO: CARVALL
Aborto remoto, preconceito de perto
Como funciona um inédito serviço de aborto legal por telemedicina que virou alvo de conservadores
Foi numa tarde de novembro do ano passado que a menina chegou com a mãe ao Hospital de Clínicas de Uberlândia. Foram direto ao Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual). A mãe contou a história da garota à ginecologista Helena Paro: a filha fora a uma festa sem a mãe saber, um rapaz lhe ofereceu uma bebida… no meio da noite, a garota foi encontrada desmaiada por uma amiga num quarto, sozinha. Semanas depois, contou para a mãe sobre o atraso da menstruação. Estava grávida. Tinha 13 anos. E, com o apoio da mãe, queria interromper a gravidez.
A partir daquela primeira consulta, a garota tornou-se uma das dezessete pacientes atendidas pela equipe de Paro para fazer o aborto legal por telemedicina – procedimento que, no Brasil, só é realizado no Nuavidas. A legislação brasileira autoriza o aborto em caso de estupro, de anencefalia fetal (fetos que não desenvolvem o cérebro) e risco de vida à mulher. O Nuavidas, criado em 2017, firmou-se como um dos centros de referência para o aborto legal no país. Funciona no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia. Recebeu, em 2020, 138 mulheres e 244 meninas de até 12 anos vítimas de violência sexual – sim, mais meninas que adolescentes e adultas. O padrão etário vem se repetindo este ano: 48 adultas e 105 meninas, pelos dados até 12 de março. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que quase 60% das vítimas de violência sexual no Brasil tinham no máximo 13 anos – em 2019, 38 mil crianças foram alvo desse tipo de crime.
Em 2020, com os leitos do hospital ocupados pela Covid, o Nuavidas se viu ameaçado de não conseguir receber as pacientes. A equipe então se lembrou de que, justamente por causa da pandemia, o uso da telemedicina foi expressamente autorizado pela Lei nº 13.989/2020, em caráter emergencial, e pela portaria nº 467/2020 do Ministério da Saúde. Com a lei debaixo de um braço e a portaria debaixo do outro, Paro começou a batalha para implantar o atendimento híbrido, parte presencial, parte por teleconferência. Em agosto de 2020, com a concordância da direção do hospital universitário, da Comissão de Ética da instituição e do Ministério Público Federal em Uberlândia, o protocolo do aborto assistido por telemedicina – relatado na medicina desde 2006, mas até então inédito no Brasil – saiu do papel. É aplicado para interromper gestações de até 63 dias (nove semanas) e apenas quando for possível fazer o aborto legal induzido por medicamentos, sem procedimento cirúrgico.
A paciente faz a primeira consulta presencial no hospital com as ginecologistas e recebe acompanhamento multidisciplinar da equipe do Nuavidas, que tem também psicólogas, assistente social e advogadas. É informada sobre a possibilidade de manter ou interromper a gravidez. Caso decida pela segunda opção, sai com as pílulas abortivas, na quantidade exata para o procedimento. O remédio é utilizado em casa, nas doses e nos horários prescritos, e tudo é acompanhado 24 horas pelas médicas do Nuavidas. A paciente vai relatando os sintomas e recebendo orientação. As complicações de um aborto medicamentoso são raríssimas, diz Paro, mas, a qualquer sintoma fora do normal, a paciente é orientada a ir ao hospital ou ao pronto-socorro de sua cidade. Nos casos acompanhados pelo Nuavidas, houve 95% de eficácia para interromper a gravidez – 80% com uma dose, 15% com duas. Só uma paciente precisou fazer a interrupção cirúrgica. “Isso está absolutamente dentro do padrão dos resultados com esse tipo de medicamento”, diz Paro. Procedimentos cirúrgicos são realizados exclusivamente no hospital. Quatro semanas depois, a paciente faz novos exames para confirmar que não está mais grávida.
Quem sofre estupro é vítima de um crime. Ao buscar o aborto legal, exerce um direito previsto em lei. Apesar disso, o aborto legal após estupro é tão estigmatizante que tudo que se refere a ele precisa ser validado como se legislação sobre isso não existisse. Por lei, a mulher não é obrigada nem mesmo a realizar o boletim de ocorrência na delegacia para realizar o aborto – mas muitos serviços exigem o documento, e enfrentar a desconfiança é parte da rotina. No Nuavidas, uma das dificuldades para o procedimento por telemedicina foi a liberação do misoprostol, a pílula abortiva. A paciente (ou um responsável, se ela for menor de idade) assina um termo se comprometendo a usar o medicamento apenas para interromper a própria gravidez, precaução necessária diante da resistência da equipe de farmácia a entregar doze pílulas abortivas a uma única pessoa. “A gente ainda encontra esse tipo de resistência. Foi a mesma coisa que eu senti quando abrimos o Nuavidas. Não precisa de BO? E se a mulher estiver mentindo? O que ela vai fazer com a medicação? E se ela vender? A nossa resposta: essas pessoas nunca conversaram com uma mulher vitima de violência sexual e grávida, desesperada para interromper a própria gravidez.”
O Nuavidas, a Anis – Instituto de Bioética e a Rede Médica Pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice Brasil) elaboraram uma cartilha sobre o aborto legal por telemedicina a fim de tirar dúvidas de pacientes, profissionais de saúde e serviços que recebem mulheres vítimas de violência sexual. O manual explica que tanto a mulher que aborta após estupro como o médico que a ajuda a abortar não estão cometendo crimes. Por isso, manter essa mulher longe de tantos julgamentos morais é uma das vantagens que Paro vê no procedimento por telemedicina. Outra é reduzir a ocupação hospitalar em tempos de pandemia, permitindo que o procedimento seja concluído em casa, com segurança. “O que mata é o aborto inseguro, clandestino”, diz Paro. Segundo dados da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), de 2008 a 2015, foram registradas no Brasil 200 mil internações anuais por procedimentos relacionados ao aborto, sendo que apenas 1.600 delas tiveram motivos médicos e legais. O protocolo da Febrasgo para interrupção legal da gravidez já traz orientações explicando como, em casos de aborto induzido por medicamentos, é possível recorrer à telemedicina.
Se ganhou a confiança de mulheres da região do Triângulo Mineiro, o trabalho do Nuavidas não passou despercebido por integrantes da Defensoria Pública da União (DPU) e do Ministério Público Federal. No dia 17 de maio, o defensor nacional dos direitos humanos, André Ribeiro Porciúncula, e o procurador Fernando de Almeida Martins, lotado em Minas Gerais, enviaram uma nota ao Ministério da Saúde, à Anvisa e ao Conselho Federal de Medicina (CFM) recomendando a contraindicação do aborto por telemedicina. Eles afirmam que a prescrição do misoprostol, pílula abortiva usada pela equipe de Helena Paro, “é algo extremamente temerário” quando feita fora do ambiente hospitalar. O simples fornecimento de um remédio para o aborto, segundo eles, “não é solução compatível com a dignidade da pessoa humana”. A nota se baseia em reportagens publicadas no Uol e na revista Capricho sobre o Nuavidas.
O documento enviado ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, sugere que o governo publique uma nota técnica sobre os riscos do aborto por telemedicina e recomende que os médicos do SUS não adotem esse procedimento. Já o texto enviado ao presidente do CFM, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, pede a abertura de um processo administrativo para investigar a conduta da equipe do Nuavidas, sugerindo que ela seja punida por ter realizado, até então, quinze “procedimentos ilegais de aborto por telemedicina”.
André Porciúncula se tornou defensor nacional de direitos humanos em março, nomeado pelo novo defensor público-geral da União, Daniel Macedo. O chefe da DPU foi empossado pelo presidente Jair Bolsonaro em janeiro deste ano. Ele ficou em segundo lugar na lista tríplice eleita pelo conjunto dos defensores, mas acabou sendo escolhido para a função, apoiado por lideranças evangélicas. Em outubro, a piauí mostrou que, para se cacifar ao cargo, Macedo – frequentador da Comunidade Presbiteriana da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro – prometeu criar na DPU “um grupo de trabalho em defesa dos direitos do nascituro”. Na época, ele afirmou que, “se uma parte da Defensoria defende o aborto, temos que ter outra parte que defenda a vida. Senão vira um patrulhamento de um lado só”.
O grupo de trabalho “em defesa do nascituro” não foi criado até o momento. Defensores ouvidos pela piauí veem a manifestação contra o aborto por telemedicina como um primeiro passo da nova gestão da DPU nesse sentido. A recomendação assinada por Porciúncula e pelo procurador Fernando Martins pode servir de base para que o Ministério da Saúde e o CFM criem notas técnicas para barrar esse tipo de procedimento abortivo.
O procurador Fernando Martins, por sua vez, é conhecido por sua abordagem mais conservadora em assuntos comportamentais. Uma de suas especialidades é acionar canais de televisão por conteúdo que considera inadequado para crianças. Volta e meia processa a Globo por veicular novelas em horários que não batem com a classificação etária do programa. Em 2018, pediu à Netflix que o desenho animado Super Drags, protagonizado por três super-heroínas drag queens, não fosse disponibilizado no catálogo infantil da plataforma por discutir assuntos do “mundo adulto”.
A manifestação contra o aborto por telemedicina criou um racha na DPU – órgão que historicamente apoia mulheres pobres em situação de risco que recorrem à interrupção da gravidez. Após sofrer críticas de colegas, Porciúncula publicou um vídeo em suas redes sociais reforçando os argumentos contra o aborto a distância. No fim do vídeo, ele canta trechos da música Não Pare, da cantora e pastora evangélica Midian Lima.
Um grupo de 41 defensores e defensoras assinou uma recomendação conjunta que contraria totalmente a posição de Porciúncula. O texto, igualmente enviado para o Ministério da Saúde e o CFM, destaca que o aborto por telemedicina já foi adotado por países como Inglaterra e Estados Unidos e que a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a segurança do procedimento. Nos Estados Unidos, embora ainda seja proibido em alguns estados, o teleaborto, como é chamado, tem crescido, e o programa permite o envio das pílulas pelo correio. Na nota, o grupo de defensoras pede, entre outras coisas, que o governo e o CFM tomem as medidas necessárias para garantir que os profissionais de saúde “não sofram qualquer constrangimento” ao praticar o aborto por telemedicina.
Dias depois, defensoras públicas de nove estados brasileiros assinaram nota técnica afirmando que é obrigação do poder público não apenas assegurar a continuidade do aborto por telemedicina, como expandir o alcance desse serviço – medida em estudo por outros núcleos de pesquisa pelo país.
“Chama atenção o defensor nacional de direitos humanos ter feito essa recomendação sem nenhum diálogo com a carreira, sendo que o Ministério Público em Uberlândia já tinha se manifestado em favor do procedimento”, afirma Alessandra Wolff, defensora que coordena o Grupo de Trabalho Mulheres da DPU, focado na defesa dos direitos das mulheres. Ela é uma das signatárias da recomendação em favor do aborto por telemedicina. “O aborto legal não é só um direito da mulher, é um dever do Estado. Se o defensor acha o assunto grave, deveria ao menos ter debatido com outros defensores. Essa polêmica, que resultou em duas recomendações opostas por parte da DPU, enfraquece a instituição”, conclui Wolff.
Procurados pela piauí, a DPU e o defensor André Porciúncula não se manifestaram até a conclusão desta reportagem. Já o procurador Fernando Martins, ao ser questionado sobre o conflito de decisões do Ministério Público, afirmou que a recomendação do MPF em Uberlândia, assinada pelos procuradores Cléber Eustáquio Neves e Leonardo Andrade Macedo, tem caráter local, enquanto o documento que assinou com Porciúncula tem alcance nacional. Ele alegou ainda que, quando os procuradores de Uberlândia escreveram sua recomendação, ainda não haviam sido publicadas as novas portarias do Ministério da Saúde sobre aborto. A portaria 2.561/2020, assinada em setembro pelo então ministro Eduardo Pazuello, determina que os médicos devem acionar a polícia quando houver indício ou comprovação de estupro. “A alteração do arcabouço legislativo sobre o tema muda completamente a forma com que se deve enfrentá-lo”, justificou Martins. A questão policial, porém, não é citada nem na recomendação assinada pelos procuradores de Uberlândia, nem naquela assinada por Martins. Quanto ao misoprostol, Martins afirmou que a proibição de uso do medicamento fora do ambiente hospitalar continua em vigor, e que “essas recomendações posteriores não têm o condão de afastar a incidência dessas normas”.
Em Uberlândia, a equipe do Nuavidas tem acompanhado as reações a seu trabalho, mas não foi notificada das manifestações do MPF e da DPU. O serviço de aborto assistido por telemedicina segue em funcionamento e, no último fim de semana, recebeu sua 17ª paciente: uma jovem de 19 anos, grávida do seu estuprador.
Jornalista e professora da Uerj. Foi editora da piauí, editora de Política do Globo e repórter da Folha de S.Paulo. Autora de Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento (Ed.FGV, 2021).
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