ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Escapada de Moscou
O périplo de um bailarino brasileiro e sua spitz alemã
Thallys Braga | Edição 189, Junho 2022
Há alguns meses, um bailarino e uma cadela deixaram a Rússia pela fronteira com a Finlândia. Eram o brasileiro Evandro Bossle, de 24 anos, e a spitz alemã Phoebe. Foi o começo de uma viagem por sete cidades que durou sessenta dias. A dupla dormiu em sete casas diferentes e só sossegou depois de cinco audições em teatros da Europa.
Bossle foi promovido a bailarino solista do Teatro Stanislavski Nemirovich-Danchenko, em Moscou, no início do ano. Antes, integrou a companhia de dança do Teatro de Balé Jakobson, com a qual se apresentou nos principais palcos da Rússia, entre eles o tradicional Teatro Mariinsky, em São Petersburgo. Deixou o antigo grupo porque não tinha perspectiva de chegar ao posto de solista. “Desde menino sonhei em ser solista numa companhia de balé russo. Acreditei que em 2022 começaria um novo ciclo na carreira”, conta.
Os espetáculos no Stanislavski não foram interrompidos quando as tropas de Putin invadiram a Ucrânia, em 24 de fevereiro. No dia 27, um domingo, o diretor do corpo de baile, o francês Laurent Hilaire, comunicou Bossle e seus colegas que estava deixando a Rússia. Disse que não poderia permanecer em um país que invade outro em pleno século XXI. Foi a gota d’água: no mesmo dia, o brasileiro começou a arquitetar um plano para também deixar a Rússia.
Além do preço exorbitante das passagens aéreas, o bailarino encontrou outro problema: as companhias não permitiam transporte de animais. “Abandonar a Phoebe nunca foi uma opção”, diz Bossle. “Tive que mover céus e terras pra conseguir atravessar a fronteira com ela.” Restaram duas opções: trem e ônibus.
Em 3 de março, Bossle embarcou num trem em Moscou rumo a São Petersburgo, com duas malas e Phoebe acomodada em uma caixa de transporte para cães. Na antiga capital czarista, eles se abrigaram na casa do brasileiro Victor Caixeta, primeiro solista do Balé Mariinsky, que também planejava deixar a Rússia. Bossle o ajudou a cuidar da bagagem.
A casa de Caixeta havia se tornado um ponto de encontro de bailarinos em retirada. O melhor amigo de Bossle, o canadense Zachary Rogers, também passou a noite lá. Na manhã do dia 4, os dois se despediram de Caixeta e pegaram um ônibus para a Finlândia. “Naqueles dias, estávamos sempre nos despedindo de alguém”, diz Bossle. “Eram despedidas silenciosas, abraços rápidos. Precisávamos virar as costas antes que as emoções fluíssem.”
A viagem durou cerca de cinco horas. Na fronteira, uma agente do governo russo cismou que o documento de Bossle era falsificado. Ele explicou que a sua barba havia crescido e por isso estava diferente da foto. Precisou mostrar a carteirinha do Teatro Stanislavski, cuja fotografia era mais recente, para que a guarda liberasse sua passagem. Da Finlândia, Rogers e a suíça Laura Fernandez-Gromova, uma amiga que acompanhava Bossle, seguiram para seus países de origem. Bossle e Phoebe ficaram em Helsinque, esperando o avião para a República Tcheca.
Quando decidiu deixar o Teatro Stanislavski, Bossle perdeu a única fonte de renda que tinha. O bailarino ficou sabendo que os teatros europeus estavam abrindo as portas para os artistas que tinham deixado a Rússia. Seu plano era cruzar a Europa em busca de uma oportunidade de emprego. Sentado no aeroporto de Helsinque, ele listou mentalmente cada um dos lugares que poderia visitar à procura de trabalho.
Nas semanas seguintes, Bossle fez audições em companhias de dança em Praga e Brno, na República Tcheca; em Zurique, na Suíça; em Karlsruhe, na Alemanha. Por último, foi à região portuária da França tentar um contrato na Ópera Nacional de Bordeaux. Estava exausto, com o joelho dolorido. Sentia que seus saltos estavam abaixo da altura que geralmente alcança. Apesar de tudo, conseguiu o contrato. Em agosto, vai se apresentar com o corpo de baile da companhia francesa. Por ora, não pretende voltar à Rússia.
A primeira vez que Bossle pegou a estrada por causa do balé foi em 2006. Aos 9 anos, ele foi selecionado para dançar na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, em Joinville, a quase três horas de sua casa, no município de São José, em Santa Catarina. Nos primeiros dois anos de internato e treinamento rígido, telefonava para os pais toda semana para dizer que queria ir embora. No terceiro ano, teve aula com um russo pela primeira vez, o professor Dmitry Afanasiev, e se resignou. “Ganhar o respeito dele virou a minha obsessão”, lembra. “Decidi que queria dançar como os russos, estar entre os melhores do mundo.”
Bossle permaneceu na Escola Bolshoi por quase oito anos. Saiu na véspera da formatura porque se tornou o primeiro rapaz brasileiro selecionado para estudar na Academia Vaganova, escola de balé de elite em São Petersburgo. Em 2015, sem saber quase nada do idioma russo, passou dois meses na academia, mas não pôde permanecer porque os pais não tinham condições financeiras de mantê-lo fora do Brasil.
De volta, participou até do quadro “Agora ou Nunca”, do antigo Caldeirão do Huck, para conseguir o dinheiro necessário para estudar na Vaganova. Cumpriu as provas do programa, mas não arrecadou o suficiente para o projeto russo. Foi dançar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e depois conseguiu uma vaga num curso gratuito oferecido em Nova York pela bailarina russa Ekaterina Chtchelkanova.
Bossle viveu nos Estados Unidos entre 2016 e 2017. Foi Chtchelkanova quem conseguiu para ele uma ajuda de custo de 5 mil dólares que lhe permitiu voltar à Rússia para fazer audições nos teatros. “Era como se um ciclo tivesse se fechado”, lembra Bossle, com a voz embargada. “As coisas não saíram como planejei, mas os caminhos me levaram de volta ao sonho do balé russo.”
Ele nunca simpatizou com o regime de Vladimir Putin, mas isso só se tornou um problema de consciência com a guerra na Ucrânia: “Por mais que eu ame meu trabalho, continuar dançando lá seria como concordar com as bombas”, diz Bossle, que em maio veio visitar a família em Florianópolis. No apartamento onde morava em Moscou, o brasileiro esqueceu um casaco de lã feito por sua avó. Também deixou um sonho de menino, que não sabe se ainda poderá realizar: fazer uma audição para o corpo de baile do Teatro Mariinsky.